Há um tempo atrás existia um pequeno reino chamado Sofosberg. O nome era em homenagem ao Rei Sofos, um homem considerado por todos bom, justo, sábio e humilde, principalmente porque, graças a ele, não havia pobres nem ricos ali, todos compunham uma única classe social.
Um dia, o Rei resolveu fazer um passeio sozinho. Chegando à praça central, Sofos teve uma surpresa: ele viu, pela primeira vez, um homem sem uma perna. O Rei observou a reação das pessoas que rodeavam o aleijado e percebeu que todas estavam também surpresas com aquela novidade no pacato reino. “Pobre homem!”, pensou o Rei, “o que será que ele fez de tão grave para receber tamanho castigo?”.
No caminho de volta ao simples e diminuto palácio, Sofos veio pensando naquilo que vira. O semblante triste daquele homem sem uma das pernas não saía da mente do monarca.
Dois dias depois, o Rei resolveu voltar à praça central, e, chegando lá, viu o mesmo homem, no mesmo lugar, sem a mesma perna. Como esse fato marcou o Rei! Para ele, algo parecia não estar certo naquela situação. “Eu, o defensor da igualdade, vocábulo que é sinônimo de justiça no meu dicionário, não posso aceitar que esse homem viva sem uma perna, enquanto todos os outros possuem as duas”.
O Rei passou a fazer visitas diárias àquela praça, apenas para rever o aleijado. Sempre que Sofos via aquele homem, ele se sentia envergonhado. “Que cara de pau a minha! Cada vez que cruzo com esse infeliz é como se eu debochasse dele, dizendo: ‘Olha pra mim, seu tolo azarado, eu tenho as duas pernas, mas você só tem uma!’. Isso não está nada certo...”.
Esse pensamento começou a provocar no Rei a pior espécie de dor que existe: a dor moral. Sofos sofria por dentro, pois não sabia o que fazer. E, como se não bastasse (injustiça divina), a dor moral gerou dores físicas no monarca: Dor de cabeça, tonturas e dor no estômago infernizavam a vida dele.
O Rei já estava no seu limite! Algo deveria ser feito e já! Foi quando ele pensou: “E se eu cortasse a minha perna? As pessoas costumam dizer que sou bom e justo... Já provei isso eliminando a divisão de classes no reino, porém, é hora de provar mais uma vez que, de fato, detenho essas qualidades. Se não posso curar aquele homem, darei uma lição a todos me igualando ao pobre aleijado”.
Em seguida, o Rei chorou de soluçar. Ele sabia que não seria nada fácil cortar a própria perna. Porém, não havia escolha, aquilo era o certo!
Ele já imaginava a repercussão de seu ato, que representava o domínio da igualdade perante tudo e todos: Ricos de todo o mundo se sentindo mal vendo pessoas pobres e, conseqüentemente, dividindo com eles suas riquezas; poderosos de todo o mundo se sentindo mal vendo indivíduos abaixo deles e, conseqüentemente, renunciando o poder que detinham outrora!
Pronto, estava decidido: Adeus, perna esquerda! O Rei pegou um serrote e se trancou no seu quarto sozinho. Lá, ele abriu uma garrafa de vinho e bebeu três cálices, no intuito de sentir menos dor e criar coragem para fazer o que tinha que ser feito. Enquanto bebia, o rei foi até o piano tocar músicas no sistema dodecafônico, sistema esse que considera cada uma das doze notas como sendo iguais. “Que bebida saborosa, vou tomar a quarta dose só pra garantir!”, disse o Rei. Após tomar o quarto cálice, o ébrio Rei olhou pela última vez sua perna esquerda no corpo e, naquele momento, teve a impressão de que ela era uma peça estranha ao todo, que realmente não era para estar ali.
Então, o Rei respirou fundo, cerrou os olhos e serrou a perna esquerda.
O Rei berrava de dor, e parecia que o vinho que bebera não parava de sair de seu corpo. João, um criado de Sofos, estava próximo ao quarto e ouviu os berros de dor. Ele não sabia o que havia acontecido com o querido Rei, que sempre o tratava gentilmente e de igual para igual. João, assim como acontece com os criados em geral, não tinha o costume de pensar. Porém, naquele momento, isso foi extremamente importante, pois ele, sem raciocinar, deu um chute na porta do quarto do Rei com toda a sua força. A porta despencou na hora, e João pode ver aquela triste cena: O Rei gritando todo ensangüentado sem uma das pernas.
João ficou assustadíssimo, e, rapidamente, tirou sua camisa, amarrou-a no ferimento e levou o Rei até Ruy, o melhor médico que havia no reino. O médico não acreditou no que estava vendo. Após ouvir de João que o Rei havia feito aquilo consigo mesmo, o médico pensou: “Bom, justo, sábio, humilde e louco!!!”. Entretanto, mais uma vez não havia tempo para pensar, pois o Rei sangrava muito e poderia morrer. Ruy então resolveu amputar o cotoco real, ou seja, o que restava da perna do monarca, e, se valendo desse procedimento, conseguiu salvar o paciente.
Quando finalmente o Rei recebeu alta, ele disse ao seu criado: “Mande todos irem à praça central hoje à noite. Farei um discurso explicando tudo o que aconteceu”.
A noite chegou e, na praça, a multidão reunida estava ansiosa pelas palavras de Sofos. O Rei apareceu andando apoiado em dois cetros, usados como muletas improvisadas. O povo aplaudiu timidamente, pois a cena era chocante, principalmente porque aquele era somente o segundo aleijado da história do reino. Sofos subiu num palanque e começou a discursar, dizendo em alta voz: “Amado povo! Não se assustem! Sei que confiam em mim de coração, portanto, reflitam acerca de minhas palavras: Dias atrás, vi pela primeira vez aqui no reino um homem que não possuía uma das pernas. Fiquei profundamente triste e me sentia mal sempre que passava por ele. Vocês conhecem o valor que a igualdade possui! Sabem que ela é a perfeição e a justiça, e que, por isso, deve continuar reinando aqui. Após pensar muito, cheguei à conclusão de que o certo seria cortar uma de minhas pernas para me igualar ao aleijado. Isso não é lindo? Existe maior demonstração de amor do que essa? Porque sim, meu querido povo, eu amo cada um de vocês, com o mesmo amor, pois somos iguais, somos todos seres humanos!”.
O povo não entendia como era possível que alguma coisa, qualquer coisa, fosse capaz de justificar o fato de o Rei cortar sua própria perna. Mas, enfim, eles confiavam na sabedoria e bondade dele. Até que um da multidão gritou: “Viva a igualdade!!!”, e todos disseram: “Viva!!!”.
Sofos ficou muito feliz com aquele apoio e passou a amar o povo ainda mais. “Eles compreenderam tudo”, falou o Rei cheio de euforia, “Esse é um dia que vai ficar na história de Sofosberg”.
O Rei então resolveu baixar o seguinte decreto:
“DECRETO Nº 123
Da amputação obrigatória
Art. 1.º Todo cidadão desse reino é obrigado a ter uma de suas pernas amputadas, recaindo a escolha da perna à própria pessoa.
Art. 2.º Os amputadores serão servidores do reino aprovados em concurso público de provas e títulos.
Da penalidade
Art. 3.º O cidadão que descumprir essa norma será enforcado em praça pública.
Parágrafo Único. Fica isento de pena aquele que se opor à amputação, pelo fato de já não possuir uma das pernas”.
Em seis meses, todos os habitantes daquele reino tiveram uma de suas pernas amputadas. O Rei voltou a ficar contente vendo todos novamente iguais. O povo é que pareceu não ter gostado muito... Era muito difícil se locomover com apenas uma perna. Euzébio Jabuti, o homem mais rápido do reino, campeão em todas as modalidades de corrida, disse aos amigos, inconformado: “Maldita igualdade! Graças a ela nunca mais correrei como antes... Jogos paraolímpicos, aí vamos todos nós”.
Ruy, o melhor médico do reino também ficou especialmente irritado: Trabalhar sem uma perna era algo deveras penoso. Ele continuava achando que o Rei era louco: “Imagina se um reino declara guerra a nós... Vamos combater usando um exército de sacis!”. Porém, Ruy continuava trabalhando arduamente pelo bem daquele reino.
Até que um dia algo incrível aconteceu. Ruy, ao examinar um paciente, teve um ataque e começou a gritar descontrolado: “Meu Deus! Não! Você tem um tumor no pênis! É câncer! Não é possível! Por que???”. O homem ficou boquiaberto devido à reação do médico, e mesmo recebendo essa horrível notícia, disse: “Fica calmo, doutor!”. Ruy, totalmente desesperado, berrou dizendo: “Você não está entendendo! Eu terei que amputar seu pênis! Amputar! Oh, meu Deus!”. O homem olhou fixamente o médico. Ruy tremia e tinha o aspecto de um alucinado. Após dois minutos de silêncio total, Ruy disse ao paciente: “Já volto”. Então ele saiu dali e entrou numa salinha que havia naquele mesmo corredor. Sozinho na sala, o médico abriu o armário, pegou 1mg de cianureto e ingeriu sem titubear. Morreu na hora.
FIM
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