DJtador
Comédia em um ato.
Personagens:
- Hugo, o aniversariante
- DJ
- Churrasqueiro
- Barman
- Vidal, o convidado stalinista
- Arturo, o convidado trotskista
- Yudi, o convidado anarquista
- primo do Yudi, também anarquista
- Bob Marley, esquerdista com modos pacíficos
- João von Reichenau – convidado burguês
- Maria strozzelli – convidada burguesa, namorada de João
- Sepúlveda de Nóbrega – convidado burguês
- Carolina Kimura – convidada burguesa, namorada de
Sepúlveda
CENA ÚNICA
Na parte central do palco encontra-se o DJ, sentado numa cadeira enorme
que o deixa acima dos demais. Também no centro fica o barman. O churrasqueiro
encontra-se num ponto mais afastado do palco. No lado direito estão os
burgueses; no lado esquerdo os esquerdistas. O DJ está tocando Molejo. Os
burgueses, muito bem vestidos, conversam sem animação. Os esquerdistas, com
seus enormes blackpower, estão com a cara fechada.
Hugo – Maravilha, chegaram os últimos convidados. Fala,
Joãozinho! E aí, Maria!
João von Reichenau – Parabéns, meu parceiro! Trouxe cerveja
e esse presente pra você.
Hugo – Brigadão, amigo, não precisava.
João e Maria vão para
a mesa do lado direito.
Yudi - Parabéns, irmão! Trouxe o meu primo, ele também é
anarquista, sabia? Inclusive é black bloc, não espalha não.
Hugo, virando-se para o primo do Yudi – É mesmo? Muito prazer! Eu escrevi
um texto defendendo os black blocs quando eles atuaram em defesa dos
professores, mas uma galera da minha família e da religião onde eu fui criado
achou que eu fosse um black bloc, inclusive alguém da igreja falou pra todo
mundo que eu quebrei um caixa-eletrônico, hahaha. Mas, me diga, por que você
decidiu se tornar um black bloc?
Primo do Yudi – Porque nessa
manifestação dos professores vi que a polícia tava metendo a porrada nos
estudantes, e como eu gosto de uma boa briga, resolvi cobrir o rosto e meter a
porrada na polícia. Bati em vários policiais, foi muito bom!
Hugo – Então você só virou black bloc por isso?
Primo do Yudi – Sim.
Hugo – Compreendo... Olha, fica à vontade, tá, tem cerveja,
coca-cola...
Yudi e o primo se
sentam à mesa da esquerda.
Vidal – Essa música tá uma merda!
Molejo não dá, achei que rolaria um samba de verdade, um Cartola...
Bob Marley – Po, brother, podia tocar um Bezerra da Silva,
mas Molejo tá suave, na paz.
Vidal – Só quero ver que música
vai tocar quando a galera começar a se animar. Aposto que vai ser um popzinho
barato, esse DJ é burguês e essa festa tem burguês demais pro meu gosto...
Arturo – Pode crer, vamos ouvir o papo dos caras!
Os esquerdistas param
de falar e prestam atenção à conversa dos convidados burgueses.
Sepúlveda de Nóbrega – Blablabla Royalties! Blablabla
energia!
Maria Strozzelli – Blablabla iniciativa privada Blablabla
iate! Blablabla excelente safra!
Arturo, gargalhando
– Olha essa galera, os caras só pensam em dinheiro!!!
Todos concordam e
riem.
Carolina Kimura – Aí, gente,
vocês tão vendo aquele pessoalzinho estranho ali? Olha o cabelo deles! Parecem
até mendigos... Guardem seus celulares, sério. O Hugo é amigo de cada coisa...
Sepúlveda de Nóbrega – Olha
aquele ali com camisa da Hering! Playboy se passando por revolucionário. Ser comunistinha
sustentado pelos pais é mole, né?
João von Reichenau – É verdade.
Vamos ouvir a conversa deles, aposto que só vão falar de drogas e Che Guevara!
Os burgueses param de
falar e prestam atenção à conversa dos convidados esquerdistas.
Bob Marley – Blablabla Maconha! Blablabla Miçanga!
Primo do Yudi – Blablabla luau! Blablabla paredão! Blablabla
molotov!
João von Reichenau – Viu só? Bando
de vagabundos viciados! Depois falam que é preconceito, esteriótipo! Hahahahah!
Esteriótipos não são criados à toa...
Maria Strozzelli – Verdade, meu
amorzinho, me dá um beijinho aqui! Vou ali pegar uma caipirinha e já volto!
Maria vai até o
barman.
Maria Strozzelli – Oi, tem caipirinha de lichia?
Barman – Poxa, meu anjo, de lichia
vou ficar te devendo, mas tem de limão, maracujá, morango e abacaxi.
Maria Strozzelli – Deixa pra lá, só gosto da de lichia, não
vou querer não.
Barman olha com uma cara de “Ah, burguesinhas...”. Maria volta à mesa. Hugo
vai para a parte da esquerda.
Vidal – Que sonho, hein, Hugo, um
cara fazendo um bom churrasco e me servindo, o outro preparando drinks pra
mim... Festa da burguesia é outra coisa, né! Hahahahah.
Hugo – Não sou burguês!
Vidal – É, mas você também não é
um dos nossos! Um dia a vida vai te forçar a escolher um lado.
Hugo – É possível, mas até lá vou continuando em cima do
muro.
Bob Marley – Galera, vou ali no meio fumar um cigarro.
Hugo – Cigarro, sei...
Bob Marley acende um cigarro na parte central do palco. João von
Reichenau avista a cena de longe e se aproxima lentamente.
João von Reichenau – Ô cabeludo! Opa, desculpa perguntar,
mas... você vende maconha?
Bob Marley – Po, brother, tá achando que eu sou trafica só
por causa do meu dread?
João von Reichenau – Não, jamais!
Bob Marley – Tá de boa então. Pra falar a verdade eu tenho
maconha aqui.
João von Reichenau – Então você vai me vender?
Bob Marley – Não, porra! É pra gente fumar junto, se você
quiser.
João von Reichenau – Poxa, valeu
mesmo! Somos bastante diferentes, mas a maconha nos une! Tem coisa que todo
mundo gosta, independente da classe social.
Bob Marley – É verdade...
Bob e João vão para um canto isolado fumar. Bob fuma com vontade e
passa para João, que fuma com cara de nojinho. João volta para a mesa da
direita.
Carolina Kimura – Maria, olha o
olho vermelho do seu namorado! Que que você andou fazendo, hein, João?
João von Reichenau – Eu...eu me emociono sempre que ouço
essa música.
Sepúlveda de Nóbrega – Brincadeira de criança, do Molejo?
João von Reichenau – Tudo que mexe com infância me traz
nostalgia, sabe...
Carolina Kimura – Vai mentir pra outro, rapá! Eu vi você de
papo com o doidão de dread. Juro, parecia o encontro de dois mundos distintos. É
como se vocês fossem feitos de uma massa diferente.
João von Reichenau – Isso é
verdade, mas a gente só trocou uma ideia. Até que aquele crackudo é gente boa.
O churrasqueiro serve
carne aos burgueses.
Maria Strozzelli – Ih, moço, pode voltar com essa carne, tá
muito mal passada!
O churrasqueiro fecha a cara e serve os esquerdistas, que atacam a
carne como se fosse a última refeição de suas vidas.
Vidal – Boa, churrasqueiro! Essa carne tá vermelha do jeito
que a gente gosta!
Todos à mesa gargalham. Sentindo que o clima da festa era propício, o
DJ solta a primeira música mais animada da festa: Barbie girl. O DJ canta e
dança empolgado.
Yudi – Porra,
Barbie girl é sacanagem!
Vidal – Sim, é um insulto! Hugo, vem cá!
Hugo – Fala, Vidal.
Vidal – Cara, olha a música que esse DJ tá colocando! Eu
quero uma festa punk!
Arturo – É, Hugo, fala pro DJ tocar Garotos podres, Gangrena
gasosa...
Vidal – Do contrário, vamos ter que tomar uma providência...
Vidal brinca com a
faca de plástico.
Hugo – Ih, vai ser difícil, mas vou falar com ele.
Hugo vai até o DJ; os esquerdistas
estão atentos à conversa.
Hugo – Aí, DJ, a galera da esquerda ali tá pedindo um som
mais pesado, um punk rock...
DJ – Tá maluco? Punk rock num
churrasco? Cara, eu sou o DJ e as pessoas vão ouvir o que eu quiser colocar...
e elas vão gostar, porque existe uma fórmula infalível para músicas de
churrasco: Primeiro, um sambinha; depois, quando o efeito do álcool começa a
bater, pop, hip-hop e dance; e quando o álcool já está dominando a todos, funk.
É um padrão, é um ritual. Não queira estraga-lo.
Hugo – Tudo bem, vou dar a má notícia a eles.
DJ – Sim, faça isso! Eu tenho uma reputação a zelar...
Hugo vai até os
esquerdistas.
Vidal – Já ouvimos tudo. Quer
dizer que é assim? “As pessoas vão ouvir o que eu quiser colocar?”. Ditador
maldito! Se ele não ouve as reivindicações das massas ele é um inimigo do povo
e tem que morrer!
Vidal pega um espeto
de churrasco.
Hugo – Tá maluco, Vidal? O DJ é meu amigão, vai querer
passar o cara no espeto?
Vidal – Não tem essa de amigão...
onde você vê amigão eu vejo opressão! E opressão é opressão e deve ser
combatida, seja no Estado, no ambiente de trabalho, numa relação amorosa... ou
nas carrapetas de um DJ de churrasco! Me admiro você, Hugo, compactuando com
isso...
Hugo – Não tô curtindo as músicas também, só não quero que você
mate o meu amigo. E no dia do meu aniversário!
Vidal – Posso mata-lo amanhã, se ficar melhor pra você...
Hugo – Porra, não foi isso que eu quis dizer! Ah!
Hugo vai até o barman.
Hugo – Opa, quero uma dose de cachaça pura.
Barman – purinha mesmo?
Hugo – Sim, manda.
Hugo entorna o copo de
cachaça aparentando nervosismo.
Hugo, pensando alto
– Vai dar merda, to vendo...
Sepúlveda de Nóbrega – Po, Hugo, você nem tá dando muita
atenção pra gente! A gente tava falando aqui que o PT é muito corrupto,
precisamos colocar o Aécio na presidência! O PT está acabando com esse país, o
euro está mais de quatro reais, só pude ir uma vez pra Europa esse ano!
Hugo – Desculpa, Sepulvedinha, mas sabe como é, o
aniversariante é sempre muito requisitado. Vou pegar uma bebida.
Hugo vai até o barman
e repete a dose.
Hugo, pensando alto
novamente – Porra, tá pra rolar uma revolução sangrenta e esses tucanos nem
se tocam! Bando de tapados mesmo.
Vidal – Galera, vamos decidir o que
a gente tem que fazer. Eu acho que tem que usar de violência mesmo, revolução é
assim. Cada um pega um espeto e a gente bota esse DJ opressor pra correr.
Arturo – Não, sem violência. Esses stalinistas só pensam
nisso.
Vidal – E vocês, trotskistas vivem
fugindo da raia quando a chapa esquenta. Típico! Você acha que Stalin trouxe a
violência pro mundo? Trotsky era o cãozinho do Lênin, e os dois mataram muita
gente. Stalin aprendeu a usar a violência política com eles.
Arturo – Nada disso, Vidal. Estamos no aniversário do nosso
amigo. Temos que tirar o cara sem violência, e eu vou ser o novo DJ. Estou com
meu pen drive aqui.
Vidal – Ei, por que você vai ser
o novo DJ? O meu HD externo está comigo e sou um DJ muito melhor que você. Na
chopada do IFCS você colocou Macarena e quase te espancaram por causa disso, eu
lembro! Bob, dá a sua opinião aí.
Bob Marley – Po, mano, na paz, deixa a música rolar aí, tô
tranquilão.
Vidal – Na paz??? Pqp... E você, Yudi, fala aí!
Yudi – Eu acho que não tem que ter DJ, cada um coloca a
música que quiser ouvir.
Primo do Yudi – Ta aí uma boa ideia!
Vidal – Porra, mas aí vira bagunça!
Primo do Yudi, exaltado
– ô, rapá, bagunça não, vê lá, hein!
Hugo, gritando de
longe – Yudi, acalma o porradeiro do seu primo aê.
Vidal, com calma – Yudi, eu já te falei, você tem que ter organização! Vai
tirar o DJ como, sozinho? Quebrando o equipamento dele?
Primo do Yudi – Tá aí outra boa ideia...
Yudi – Organização? Tô vendo a
organização de vocês, um quer matar o DJ, o outro quer expulsá-lo sem violência
e o Bob ali tá sempre de boa com tudo, nem parece que é esquerdista!
Bob Marley – Sem estresse, mano!
Vidal – Bom, como eu não sei, mas
a gente vai ter que mudar essas músicas. Quanta desanimação! Olha só em volta,
tá todo mundo sentado e calado!
Vidal aponta para a plateia.
Vidal – Se ninguém chega num acordo eu vou lá resolver
sozinho.
Vidal faz uma pose
imponente e vai até o DJ. Chegando lá, sozinho, ele fica intimidado e baixa a
bola.
Vidal – Po, brother, me perdoa,
mas será que você deixaria eu colocar uma música? Aqui meu HD externo.
DJ – Vou guardar aqui seu HD, depois eu ponho, ok?
Vidal – Beleza, muito obrigado, viu?
Vidal volta para a
mesa dos seus amigos.
Vidal – Aquele safado me enganou direitinho! Vai deixar meu
HD mofando ali...
Arturo – Se ferrou, Vidal! Hahahahahah.
Vidal – Você tinha que ter ido comigo, isso sim! Juntos
somos fortes! Que a vontade da maioria prevaleça! Olha lá, temos uma pessoa a
mais que eles.
Yudi – Errado, o DJ já provou que
é burguês, então empata. O Hugo, como sempre, em cima do muro... E o
churrasqueiro e o barman, coitados, certamente são pobres e apolíticos.
Bob Marley – Olha o preconceito,
Yudi! Por que os caras são apolíticos?
Yudi – Eu sei das coisas. Essa
galera mais humilde ou despreza a política ou faz comentários “Bolsomito”, como
os taxistas.
Arturo – Camaradas, pra que
contar quem é maioria? O DJ tem o poder, não importa o número dos presentes.
Vidal – Tem o poder por pouco tempo... vou ali pegar uma
carne sangrando.
Vidal vai até o churrasqueiro. Nesse ínterim o DJ coloca MMM bop, dos
Hanson. O DJ dança muito empolgado.
Yudi – Aí já é demais, galera.
Botar Hanson é como xingar a minha mãe! Vamos tirar o ditador do poder!
O primo do Yudi
esconde o rosto com um lenço. Chega o churrasqueiro na ala esquerda.
Churrasqueiro – Pessoal, uma faca minha sumiu. Alguém viu?
Vidal – Não, mas se eu souber de algo eu te aviso.
O churrasqueiro olha Vidal
desconfiado e volta à churrasqueira.
Arturo – Isso tá com cheiro de Vidal, pode falar!
Vidal, mostrando a faca – Meu lema é: Esteja sempre preparado! Agora sim,
vamos fazer justiça, galera!
Os cinco esquerdistas
vão decididos até o DJ.
Bob Marley, cruzando
os braços – Qual vai ser, DJ? Dá o papo!
O DJ olha aquele bando
de black power rodeando ele e morre de medo.
DJ – Pessoal, já que vocês queriam
colocar outras músicas, podem colocar. Preciso ir, tenho que... pegar minha
filha na creche.
Yudi – Domingo à noite?
DJ – Sim. Fui!
DJ sai levando sua enorme cadeira. Esquerdistas rapidamente assumem o
poder, colocam Smells like teen spirit no volume máximo e começam a gritar “Aê!”
e “Viva la revolucion!”, depois fazem uma rodinha animada, pulando e se
empurrando. Os burgueses ficam chocados e decidem ir embora.
FIM