quinta-feira, 21 de maio de 2020

VIDA DE FELINO

     Oba, papai chegou! Que saudade! O que será que ele trouxe pra mim? Peixinho Schesir e uma cama gourmet de trezentos reais! Merece muitos carinhos com a cabeça, vou me esfregar todo nele. Olha, a cama até parece legal, mas ainda prefiro aquela caixa de sapato velha ali. O que??? É whiskas??? Absurdo, sou nobre, eu quero salmão da Schesir!!! Vou fazer greve de fome...

...

     Comi em dois segundos minha parte, agora vou devorar a porção desse gato gordo e lerdo aqui. Mostrar quem é o alfa da casa. Quem mandou ser lerdo? Opa, papai está jantando, acho que vou aproveitar e descolar uma sobremesa pra mim. Caramba, estou quase com a cara dentro do prato dele, hehehe. Reclama não que eu sou bonzinho, até te deixo morar na minha casa... Hum, o que temos aqui: Alface, gosto (lembra aquela planta da varanda que eu adoro comer); babata doce, manda pra cá. Cara, sem brincadeira, eu como até papel e poeira. Manda um franguinho também, preciso de sustância. 

...

     Estou quase explodindo, vou ter que dar aquela cagada. Olha, esse cara tá comprando areia vagabunda agora! Só pra economizar, que vergonha... ora, se a crise tá aí, papai que economize nas compras das coisas dele! Eu gostava mais daquela areia do Garfield, que fazia torrões mais firmes quando eu mijava. Lá vai, força, uuuugh! Pára de olhar pra cá enquanto eu cago. Vc acha que é uma cena fofa, mas eu fico constrangido. Que cocozão nojento, vou tomar o máximo de cuidado pra não encostar nisso. Vamos enterrar bem esse cocô na areia...enterrar ainda mais um poquinho. Pronto, tá feito. Agora vou correr feito um maluco pela casa, pulando e pegando impulso na parede e sofá. Sei lá, fico felizão quando cago, me sinto leve e dá uma vontade de correr em disparada. 

...

     Hora de brincar com a bolinha, meu segundo brinquedo favorito (o que eu mais gosto é o cordãozinho). Eu, modéstia à parte, jogo muito. Inclusive pego a bolinha com a boca e trago pro terráqueo melhor que os cachorros. Mas não vou ficar aqui me gabando. É, vou sim. 

...

     Cinco minutos de atividade física, cansei, vou dormir. Ih, papai tá indo dormir também, vou dormir na perna dele. Carinho agora não, papai, e logo na barriga? Toma uma mordida pra ficar esperto. Repare que eu poderia, mas não mordi forte. Boa noite, papai, até que você é um terráqueo legal. Pára de mexer a perna. 

...

     8 horas depois: Uááá, aquela bocejada gostosa com aquele bocão que parece querer engolir o mundo. Bom dia, papai! Comece esse lindo dia contemplando a minha bunda. Ih, parece que ele não gostou muito da vista. Vou levantar logo, porque eu tenho muito que fazer hoje: Comer, cagar, brincar e dormir. Vamos começar com a comida. A ração tá velha! Absurdo! Eu que não sou bobo de comer isso, vou esperar ele repor com a nova. Tomara que esse mão fechada tenha comprado da super premium. 

...

     Hora do banho, vou aquecer a água. Mentira, odeio água. Eu é que me dou banho com minha língua especial. Dizem que gato é sujo, mas eu me banho todo dia e sempre estou mais cheiroso que meu pai. 

...

     Ah, não, vai cortar minhas unhas? Minhas cimitarras que uso contra aquele gato obeso? Assim ficarei indefeso, vou fugir. Droga, ele me cercou. Tá fazendo carinho na minha cabeça, nossa, gostei tanto que até ronronei, parecia um motorzinho. Acho até que esqueceu das minhas unhas. Ah, safado, me agarrou do nada e e está com o cortador na mão. Ooou, tá cortando muito rente ao dedo! Ah, vai tomar um mordidão!

...

     Hora de espiar os vizinhos. Nós gatos não somos fofoqueiros, só queremos estar bem informados. Olha, uns caras trabalhando numa obra, olha, aquele cachorro barulhento latindo alto, olha, as crianças jogando bola no play. Bando de perebas, jogo mais que eles. 

...

     Pára tudo: Papai trouxe o cordãozinho! Aí que eu fico maluco mesmo! Papai balança o cordão fingindo que é uma cobrinha e eu corro atrás da cobra feito um alucinado. Eu mordo o cordão, meto as unhas nele (o que sobrou das minhas unhas). Papai deixou o cordãozinho no chão e foi tomar banho; é, acho que é uma boa ideia eu ingerir esse cordão de aproximadamente um metro e meio. Não foi especialmente saboroso, mas comigo não tem frescura, botei pra dentro. Agora vou tirar uma sonequinha. 

...

     14 horas depois:  Aai, que dor, não estou conseguindo cagar! Parece que estou obstruído, o que pode ter acontecido? Não paro de chorar... Porque papai me colocou dentro da caixa de transporte? Agora é que você vai me abandonar na rua, né, seu canalha??? Estou no transporte em um táxi. Estou chorando, com medo e o carro está balançando muito. Vomitei o táxi todo do terráqueo. Ele ficou bem nervoso. Se ele me soltar eu como todo esse vômito e limpo o carro dele. Adoro comer vômito, meu e dos outros gatos. Parece o patê que meu pai compra pra mim. 

...

     Chegamos num lugar inóspito. Uma sala branca, com cheiro forte de ácool e cheia de vidros. Me soltaram do transporte. Estou acuado, com dor e muito medo. Petrificado é a palavra, meu rabo está completamente eriçado. Quem é essa terráquea que se aproxima? Vai tomar logo um rosnadão. Dei uma encarada nela com meu miado "uivo" mais temível. Socorro, ela quer me pegar! Preciso fugir dessa câmara de tortura agora mesmo! Já sei, vou tentar escalar a parede dessa sala fechada, parece ser uma boa ideia. Estou desesperado!!! Não deu certo e ainda quebrei todos os potes de vidro. Agora pulei gritando pra cima da minha oponente, mas ela conseguiu desviar da minha investida e me segurou por trás. Quando pegam essa minha pelanca traseira eu fico todo travado, é o meu ponto fraco e os terráqueos sabem. Me largaaa, como ousa tocar num nobre??? Eu disse que ela era minha inimiga, a desgraçada não teve a audácia de me espetar? Tá me dando um sono, vou tirar um ronco...

...

     6 horas depois: Onde estou? Por que estou usando essa roupa estranha? Olha, papai está segurando a cordinha que eu engoli. Será que eu consegui cagar ela inteira? Será que eu posso comê-la novamente? Eu adoraria! Ai, que dor na barriga, parece até que me cortaram. Mas que bom que estou no transporte de novo voltando pra casa. Chega de aventura, gosto mesmo é do meu cotidiano caseiro. Sou um bichano conservador, prezo pela segurança e por manter meu status quo. Quero voltar logo pra casa, afinal, tenho muita coisa pra fazer: Comer, cagar, brincar e dormir!

     

quinta-feira, 9 de abril de 2020

LULA (O ANIMAL MARINHO)

Tal qual a lula, tenho três corações:
Um principal e dois subsidiários.
O principal bate por Rosa de Camões,
O segundo pela Carla do Rosário,
O último bate por ti, Jurema.

Não me queira mal, Jurema, minha paixão,
pois também te levo em (um) meu coração!

No oceano profundo há uma guerra infinita;
quando um predador avança em uma das três
Recebe na cara meu jato de tinta

(veneno que repele veneno)

Com meus oito braços poderia até abraçar a Eva Paz,
caso eu tivesse um coração a mais.
Não, não chore, Jurema minha!
O mar já tem água salgada em demasia.

Queres que eu seja só seu, Jurema,
mas creio que há um problema,
Entenda de uma vez o que agora lhe explano:
O amor líquido impera no oceano.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O GOLPE (DO CUPIDO)

Que saudade, amor!
Que saudade, sentimento amor!
Pensei que tivesse pra sempre me abandonado.
Ah, doce sabor... o mais doce sabor
Cuja existência eu havia olvidado...
Quando tu reinas soberano,
Tudo o mais vira segundo plano,
Inclusive a política.
Sim, o amor é maior até que a política!
Veja você, um golpe está em curso na nação,
Porém, só consigo pensar no golpe
Que a flecha do cupido deu no meu coração...

Mas, chega de escrever, já o fiz em demasia
Enquanto Cupido errava sua pontaria.
Sendo assim, com licença, caro leitor,
Que melhor que escrever sobre o amor
É VIVER O AMOR!

quinta-feira, 14 de julho de 2016

PELE É UM REAL, PELE (UMA CENA NO TREM)

GOSTO DE VER A ALEGRIA DO POVO
QUANDO ESTÁ COMENDO.
AS CONTAS TERRÍVEIS BATEM À PORTA,
O MARIDO RODOU NO TRÁFICO,
FILHOS JÁ SÃO OITO
E O NONO ESTÁ POR VIR,
MAS, QUANDO A SENHORINHA HUMILDE
MORDE COM VONTADE A SUA PELE
(ESPÉCIE DE BACONZITOS MAIS ACESSÍVEL)
OS PROBLEMAS SOMEM NUM PASSE DE MÁGICA.
 UM LEVE SORRISO INVOLUNTÁRIO E PURO
BROTA EM SEU SEMBLANTE ANTES CARREGADO.
APÓS, ELA ADOÇA SUA VIDA DANDO UM GOLE
NUM GUARAVITA BEM GELADO
(BEBIDA SAGRADA QUE CUMPRE UMA FUNÇÃO SOCIAL).
ENTÃO A SENHORINHA SUSPIRA COM OS OLHOS FECHADOS
E FINALIZA DEGUSTANDO A SOBREMESA:
UMA JUSTA E DIGNA BANANADA TIJOLÃO.
AGORA A PAUSA ACABOU, E VOLTA A VIDA MISERÁVEL...


PERCEBE-SE O MOTIVO DESTA SENHORINHA SER DIABÉTICA:
ELA FAZ ESSE LANCHE NADA SAUDÁVEL DIARIAMENTE.
E O PIOR, ASSIM TAMBÉM ALIMENTA SEUS FILHOS.
CONTUDO, ISSO NÃO IMPORTA.
NA VERDADE IMPORTA E MUITO, MAS NÃO AGORA...
AQUI FOQUEMOS NO BELO E HUMILDE SORRISO.
QUE LINDO E ESPONTÂNEO SORRISO DE MERECIDO ALÍVIO!
AH, VOCÊS TINHAM QUE TER VISTO...






quarta-feira, 27 de abril de 2016

ONDE ESTÁ WALLY DA SILVA?


"AI!", gritou alguém (?) no meio dos sacos de lixo
 na rua São Francisco Xavier agora pouco.
"Desculpa!", disse eu, constrangido,
após acertá-lo por engano com meus sapatos velhos.
Não pude ver que ali havia um ser humano (?),
pele negra entre os sacos pretos.
Era Wally da Silva, vestindo trapos, toca preta
e um óculos com apenas uma lente e quebrada.
Ele não disse mais nada, e calçou meus sapatos velhos,
Pois estava descalço, os pés completamente imundos.
No lixo jogamos o que descartamos:
Sapatos velhos, garrafas vazias, Wally da Silva...

Onde está sua casa, Wally da Silva? Debaixo do viaduto.
Onde estão seus pais, Wally da Silva? Mortos pelo crack.
Onde está Wally da Silva? Ninguém sabe, ninguém viu,

Ninguém quer saber

Onde está Wally da Silva? Ninguém sabe, ninguém viu

O invisível.


sexta-feira, 30 de outubro de 2015

METAPOEMA

Minha meta é escrever um poema
Que seja lido e compreendido por todas as gerações,
Que extraia rios de lágrimas dos olhos
De todas as raças e classes sociais

A tua meta é enriquecer
e para atingi-la tu gastarás tua vida,
tua saúde e tua verdade.
Contudo, somos velhos amigos, e te desejo boa sorte.

A minha meta é escrever um poema
Tal qual um colosso, um titã,
que abarque toda a nossa era,
e seja uma mistura de amor e abalos sísmicos

Pela análise de nossas metas, conclui-se o seguinte:
Há uma enorme incompatibilidade entre nós.
Porém, sei que sempre seremos bons amigos,
relembraremos nossas histórias e daremos gargalhadas.

A minha meta é escrever um poema,
e por isso tu dizes que não sou ambicioso.
Nada mais equivocado, meu amigo...
A ambição não é monopolizada pelo dinheiro

Quero que façam uma estátua minha,
com um violão debaixo do braço,
sentado numa pilha de livros.
Podem colocá-la em frente à Cachaça da Lapa.

Quero que os pombos boêmios me batizem
cagando suas bostas sagradas em minha cabeça.
E, na diminuta placa, favor não escrever que fui grande,
pois minha época não permite que eu assim o seja.

Escrevam apenas: "Eis um homem que viveu plenamente".

terça-feira, 8 de setembro de 2015

DJTADOR

DJtador

Comédia em um ato.

Personagens:
- Hugo, o aniversariante
- DJ
- Churrasqueiro
- Barman
- Vidal, o convidado stalinista
- Arturo, o convidado trotskista
- Yudi, o convidado anarquista
- primo do Yudi, também anarquista
- Bob Marley, esquerdista com modos pacíficos
- João von Reichenau – convidado burguês
- Maria strozzelli – convidada burguesa, namorada de João
- Sepúlveda de Nóbrega – convidado burguês
- Carolina Kimura – convidada burguesa, namorada de Sepúlveda

CENA ÚNICA

Na parte central do palco encontra-se o DJ, sentado numa cadeira enorme que o deixa acima dos demais. Também no centro fica o barman. O churrasqueiro encontra-se num ponto mais afastado do palco. No lado direito estão os burgueses; no lado esquerdo os esquerdistas. O DJ está tocando Molejo. Os burgueses, muito bem vestidos, conversam sem animação. Os esquerdistas, com seus enormes blackpower, estão com a cara fechada.

Hugo – Maravilha, chegaram os últimos convidados. Fala, Joãozinho! E aí, Maria!

João von Reichenau – Parabéns, meu parceiro! Trouxe cerveja e esse presente pra você.

Hugo – Brigadão, amigo, não precisava.

João e Maria vão para a mesa do lado direito.

Yudi - Parabéns, irmão! Trouxe o meu primo, ele também é anarquista, sabia? Inclusive é black bloc, não espalha não.

Hugo, virando-se para o primo do Yudi – É mesmo? Muito prazer! Eu escrevi um texto defendendo os black blocs quando eles atuaram em defesa dos professores, mas uma galera da minha família e da religião onde eu fui criado achou que eu fosse um black bloc, inclusive alguém da igreja falou pra todo mundo que eu quebrei um caixa-eletrônico, hahaha. Mas, me diga, por que você decidiu se tornar um black bloc?

Primo do Yudi – Porque nessa manifestação dos professores vi que a polícia tava metendo a porrada nos estudantes, e como eu gosto de uma boa briga, resolvi cobrir o rosto e meter a porrada na polícia. Bati em vários policiais, foi muito bom!

Hugo – Então você só virou black bloc por isso?

Primo do Yudi – Sim.

Hugo – Compreendo... Olha, fica à vontade, tá, tem cerveja, coca-cola...

Yudi e o primo se sentam à mesa da esquerda.

Vidal – Essa música tá uma merda! Molejo não dá, achei que rolaria um samba de verdade, um Cartola...

Bob Marley – Po, brother, podia tocar um Bezerra da Silva, mas Molejo tá suave, na paz.

Vidal – Só quero ver que música vai tocar quando a galera começar a se animar. Aposto que vai ser um popzinho barato, esse DJ é burguês e essa festa tem burguês demais pro meu gosto...

Arturo – Pode crer, vamos ouvir o papo dos caras!

Os esquerdistas param de falar e prestam atenção à conversa dos convidados burgueses.

Sepúlveda de Nóbrega – Blablabla Royalties! Blablabla energia!

Maria Strozzelli – Blablabla iniciativa privada Blablabla iate! Blablabla excelente safra!

Arturo, gargalhando – Olha essa galera, os caras só pensam em dinheiro!!!

Todos concordam e riem.

Carolina Kimura – Aí, gente, vocês tão vendo aquele pessoalzinho estranho ali? Olha o cabelo deles! Parecem até mendigos... Guardem seus celulares, sério. O Hugo é amigo de cada coisa...

Sepúlveda de Nóbrega – Olha aquele ali com camisa da Hering! Playboy se passando por revolucionário. Ser comunistinha sustentado pelos pais é mole, né?

João von Reichenau – É verdade. Vamos ouvir a conversa deles, aposto que só vão falar de drogas e Che Guevara!

Os burgueses param de falar e prestam atenção à conversa dos convidados esquerdistas.

Bob Marley – Blablabla Maconha! Blablabla Miçanga!

Primo do Yudi – Blablabla luau! Blablabla paredão! Blablabla molotov!

João von Reichenau – Viu só? Bando de vagabundos viciados! Depois falam que é preconceito, esteriótipo! Hahahahah! Esteriótipos não são criados à toa...

Maria Strozzelli – Verdade, meu amorzinho, me dá um beijinho aqui! Vou ali pegar uma caipirinha e já volto!

Maria vai até o barman.

Maria Strozzelli – Oi, tem caipirinha de lichia?

Barman – Poxa, meu anjo, de lichia vou ficar te devendo, mas tem de limão, maracujá, morango e abacaxi.

Maria Strozzelli – Deixa pra lá, só gosto da de lichia, não vou querer não.

Barman olha com uma cara de “Ah, burguesinhas...”. Maria volta à mesa. Hugo vai para a parte da esquerda.

Vidal – Que sonho, hein, Hugo, um cara fazendo um bom churrasco e me servindo, o outro preparando drinks pra mim... Festa da burguesia é outra coisa, né! Hahahahah.

Hugo – Não sou burguês!

Vidal – É, mas você também não é um dos nossos! Um dia a vida vai te forçar a escolher um lado.

Hugo – É possível, mas até lá vou continuando em cima do muro.

Bob Marley – Galera, vou ali no meio fumar um cigarro.

Hugo – Cigarro, sei...

Bob Marley acende um cigarro na parte central do palco. João von Reichenau avista a cena de longe e se aproxima lentamente.

João von Reichenau – Ô cabeludo! Opa, desculpa perguntar, mas... você vende maconha?

Bob Marley – Po, brother, tá achando que eu sou trafica só por causa do meu dread?

João von Reichenau – Não, jamais!

Bob Marley – Tá de boa então. Pra falar a verdade eu tenho maconha aqui.

João von Reichenau – Então você vai me vender?

Bob Marley – Não, porra! É pra gente fumar junto, se você quiser.

João von Reichenau – Poxa, valeu mesmo! Somos bastante diferentes, mas a maconha nos une! Tem coisa que todo mundo gosta, independente da classe social.

Bob Marley – É verdade...

Bob e João vão para um canto isolado fumar. Bob fuma com vontade e passa para João, que fuma com cara de nojinho. João volta para a mesa da direita.

Carolina Kimura – Maria, olha o olho vermelho do seu namorado! Que que você andou fazendo, hein, João?

João von Reichenau – Eu...eu me emociono sempre que ouço essa música.

Sepúlveda de Nóbrega – Brincadeira de criança, do Molejo?

João von Reichenau – Tudo que mexe com infância me traz nostalgia, sabe...

Carolina Kimura – Vai mentir pra outro, rapá! Eu vi você de papo com o doidão de dread. Juro, parecia o encontro de dois mundos distintos. É como se vocês fossem feitos de uma massa diferente.

João von Reichenau – Isso é verdade, mas a gente só trocou uma ideia. Até que aquele crackudo é gente boa.

O churrasqueiro serve carne aos burgueses.

Maria Strozzelli – Ih, moço, pode voltar com essa carne, tá muito mal passada!

O churrasqueiro fecha a cara e serve os esquerdistas, que atacam a carne como se fosse a última refeição de suas vidas.

Vidal – Boa, churrasqueiro! Essa carne tá vermelha do jeito que a gente gosta!

Todos à mesa gargalham. Sentindo que o clima da festa era propício, o DJ solta a primeira música mais animada da festa: Barbie girl. O DJ canta e dança empolgado.

Yudi – Porra, Barbie girl é sacanagem!

Vidal – Sim, é um insulto! Hugo, vem cá!

Hugo – Fala, Vidal.

Vidal – Cara, olha a música que esse DJ tá colocando! Eu quero uma festa punk!

Arturo – É, Hugo, fala pro DJ tocar Garotos podres, Gangrena gasosa...

Vidal – Do contrário, vamos ter que tomar uma providência...

Vidal brinca com a faca de plástico.

Hugo – Ih, vai ser difícil, mas vou falar com ele.

Hugo vai até o DJ; os esquerdistas estão atentos à conversa.

Hugo – Aí, DJ, a galera da esquerda ali tá pedindo um som mais pesado, um punk rock...

DJ – Tá maluco? Punk rock num churrasco? Cara, eu sou o DJ e as pessoas vão ouvir o que eu quiser colocar... e elas vão gostar, porque existe uma fórmula infalível para músicas de churrasco: Primeiro, um sambinha; depois, quando o efeito do álcool começa a bater, pop, hip-hop e dance; e quando o álcool já está dominando a todos, funk. É um padrão, é um ritual. Não queira estraga-lo.

Hugo – Tudo bem, vou dar a má notícia a eles.

DJ – Sim, faça isso! Eu tenho uma reputação a zelar...

Hugo vai até os esquerdistas.

Vidal – Já ouvimos tudo. Quer dizer que é assim? “As pessoas vão ouvir o que eu quiser colocar?”. Ditador maldito! Se ele não ouve as reivindicações das massas ele é um inimigo do povo e tem que morrer!

Vidal pega um espeto de churrasco.

Hugo – Tá maluco, Vidal? O DJ é meu amigão, vai querer passar o cara no espeto?

Vidal – Não tem essa de amigão... onde você vê amigão eu vejo opressão! E opressão é opressão e deve ser combatida, seja no Estado, no ambiente de trabalho, numa relação amorosa... ou nas carrapetas de um DJ de churrasco! Me admiro você, Hugo, compactuando com isso...

Hugo – Não tô curtindo as músicas também, só não quero que você mate o meu amigo. E no dia do meu aniversário!

Vidal – Posso mata-lo amanhã, se ficar melhor pra você...

Hugo – Porra, não foi isso que eu quis dizer! Ah!

Hugo vai até o barman.

Hugo – Opa, quero uma dose de cachaça pura.

Barman – purinha mesmo?

Hugo – Sim, manda.

Hugo entorna o copo de cachaça aparentando nervosismo.

Hugo, pensando alto – Vai dar merda, to vendo...

Sepúlveda de Nóbrega – Po, Hugo, você nem tá dando muita atenção pra gente! A gente tava falando aqui que o PT é muito corrupto, precisamos colocar o Aécio na presidência! O PT está acabando com esse país, o euro está mais de quatro reais, só pude ir uma vez pra Europa esse ano!

Hugo – Desculpa, Sepulvedinha, mas sabe como é, o aniversariante é sempre muito requisitado. Vou pegar uma bebida.

Hugo vai até o barman e repete a dose.

Hugo, pensando alto novamente – Porra, tá pra rolar uma revolução sangrenta e esses tucanos nem se tocam! Bando de tapados mesmo.

Vidal – Galera, vamos decidir o que a gente tem que fazer. Eu acho que tem que usar de violência mesmo, revolução é assim. Cada um pega um espeto e a gente bota esse DJ opressor pra correr.

Arturo – Não, sem violência. Esses stalinistas só pensam nisso.

Vidal – E vocês, trotskistas vivem fugindo da raia quando a chapa esquenta. Típico! Você acha que Stalin trouxe a violência pro mundo? Trotsky era o cãozinho do Lênin, e os dois mataram muita gente. Stalin aprendeu a usar a violência política com eles.

Arturo – Nada disso, Vidal. Estamos no aniversário do nosso amigo. Temos que tirar o cara sem violência, e eu vou ser o novo DJ. Estou com meu pen drive aqui.

Vidal – Ei, por que você vai ser o novo DJ? O meu HD externo está comigo e sou um DJ muito melhor que você. Na chopada do IFCS você colocou Macarena e quase te espancaram por causa disso, eu lembro! Bob, dá a sua opinião aí.

Bob Marley – Po, mano, na paz, deixa a música rolar aí, tô tranquilão.

Vidal – Na paz??? Pqp... E você, Yudi, fala aí!

Yudi – Eu acho que não tem que ter DJ, cada um coloca a música que quiser ouvir.

Primo do Yudi – Ta aí uma boa ideia!

Vidal – Porra, mas aí vira bagunça!

Primo do Yudi, exaltado – ô, rapá, bagunça não, vê lá, hein!

Hugo, gritando de longe – Yudi, acalma o porradeiro do seu primo aê.

Vidal, com calma – Yudi, eu já te falei, você tem que ter organização! Vai tirar o DJ como, sozinho? Quebrando o equipamento dele?

Primo do Yudi – Tá aí outra boa ideia...

Yudi – Organização? Tô vendo a organização de vocês, um quer matar o DJ, o outro quer expulsá-lo sem violência e o Bob ali tá sempre de boa com tudo, nem parece que é esquerdista!

Bob Marley – Sem estresse, mano!

Vidal – Bom, como eu não sei, mas a gente vai ter que mudar essas músicas. Quanta desanimação! Olha só em volta, tá todo mundo sentado e calado!

Vidal aponta para a plateia.

Vidal – Se ninguém chega num acordo eu vou lá resolver sozinho.

Vidal faz uma pose imponente e vai até o DJ. Chegando lá, sozinho, ele fica intimidado e baixa a bola.

Vidal – Po, brother, me perdoa, mas será que você deixaria eu colocar uma música? Aqui meu HD externo.

DJ – Vou guardar aqui seu HD, depois eu ponho, ok?

Vidal – Beleza, muito obrigado, viu?

Vidal volta para a mesa dos seus amigos.

Vidal – Aquele safado me enganou direitinho! Vai deixar meu HD mofando ali...

Arturo – Se ferrou, Vidal! Hahahahahah.

Vidal – Você tinha que ter ido comigo, isso sim! Juntos somos fortes! Que a vontade da maioria prevaleça! Olha lá, temos uma pessoa a mais que eles.

Yudi – Errado, o DJ já provou que é burguês, então empata. O Hugo, como sempre, em cima do muro... E o churrasqueiro e o barman, coitados, certamente são pobres e apolíticos.

Bob Marley – Olha o preconceito, Yudi! Por que os caras são apolíticos?

Yudi – Eu sei das coisas. Essa galera mais humilde ou despreza a política ou faz comentários “Bolsomito”, como os taxistas.

Arturo – Camaradas, pra que contar quem é maioria? O DJ tem o poder, não importa o número dos presentes.

Vidal – Tem o poder por pouco tempo... vou ali pegar uma carne sangrando.

Vidal vai até o churrasqueiro. Nesse ínterim o DJ coloca MMM bop, dos Hanson. O DJ dança muito empolgado.

Yudi – Aí já é demais, galera. Botar Hanson é como xingar a minha mãe! Vamos tirar o ditador do poder!

O primo do Yudi esconde o rosto com um lenço. Chega o churrasqueiro na ala esquerda.

Churrasqueiro – Pessoal, uma faca minha sumiu. Alguém viu?

Vidal – Não, mas se eu souber de algo eu te aviso.

O churrasqueiro olha Vidal desconfiado e volta à churrasqueira.

Arturo – Isso tá com cheiro de Vidal, pode falar!

Vidal, mostrando a faca – Meu lema é: Esteja sempre preparado! Agora sim, vamos fazer justiça, galera!

Os cinco esquerdistas vão decididos até o DJ.

Bob Marley, cruzando os braços – Qual vai ser, DJ? Dá o papo!

O DJ olha aquele bando de black power rodeando ele e morre de medo.

DJ – Pessoal, já que vocês queriam colocar outras músicas, podem colocar. Preciso ir, tenho que... pegar minha filha na creche.

Yudi – Domingo à noite?

DJ – Sim. Fui!

DJ sai levando sua enorme cadeira. Esquerdistas rapidamente assumem o poder, colocam Smells like teen spirit no volume máximo e começam a gritar “Aê!” e “Viva la revolucion!”, depois fazem uma rodinha animada, pulando e se empurrando. Os burgueses ficam chocados e decidem ir embora.

FIM