quarta-feira, 11 de maio de 2011

O CASO DO RANCA CLITÓRIS


- Egon Adamais, o senhor está sendo acusado de ter cortado com uma tesoura o clitóris de suas duas ex-namoradas Maria e Madalena, estando portanto incurso no art. 129, §2º, III do Código Penal Brasileiro, que trata da lesão corporal gravíssima causadora de perda ou inutilização de membro, sentido ou função. É verdadeiro esse fato ao senhor imputado?
        - Sim, doutora juíza, nunca ouvi verdade mais cristalina.
        - Meu Deus... E por que o senhor cometeu um crime tão bárbaro como esse?
        - Bárbaro? Doutora, não faça tempestade em copo d’água! Eu não matei minhas ex-namoradas. Eu apenas cortei um pedacinho mínimo do corpo delas. Sou bem piedoso. Elas ainda podem andar, falar, sorrir, cantar... Pense bem, até transar elas podem!
        - Responda minha pergunta! Por que você cometeu essa atrocidade?
        - Bom, elas terminaram comigo. E receberam a pena que mereceram, segundo a lei. Essa pena foi a escolhida porque ex boa não é ex morta. Para vencermos nosso inimigo não é necessário acabar com a vida dele. De acordo com Clausewitz basta que desarmemos nosso inimigo. Foi exatamente o que eu fiz. Desarmei as duas! Doutora, ex boa é ex sem clitóris!
        - O senhor é um monstro! Fez justiça com as próprias mãos! Isso é crime! Exercício arbitrário das próprias razões! Art. 345 do CP!
        - Bom, se é crime estou devendo uma ao ilustre promotor, que não mencionou esse crime na denúncia.
        - Como pode o senhor achar que possui competência para legislar? O senhor criou um crime e sua respectiva pena!
        - Ah, a capacidade de criação... Sabe, se a mim não fosse dado o poder de criar, eu nada seria... Doutora, compreenda, o Direito é uma criação humana deveras falha. Por que? Ora, porque não há certo nem errado nesse mundo. Nada se modifica mais do que o conceito de certo e errado. A escravidão era algo completamente aceito. Hoje em dia, se eu reduzo alguém à condição de escravo cometo um crime! As penas antigamente eram mais cruéis e ninguém reclamava disso. Atualmente temos a humanidade das penas, e muitos a tratam como se ela fosse o certo e as penas cruéis algo errado. Nada disso! Simplesmente as penas cruéis não estão mais na moda. O Direito segue a moda! A próxima geração vai fazer piada das nossas normas, costumes e valores, da mesma forma que nós fazemos troça da geração passada. O ocidente todo pode, por exemplo, aderir à poligamia (que hoje é até mesmo um crime) e não entender como nós, podendo possuir várias mulheres, praticávamos a monogamia antigamente. A diferença entre o homicídio e os demais crimes não reside de modo algum no chamado Direito Natural. Na verdade, o homicídio é semelhante à calça jeans: nunca sai de moda. Doutora, não quero ser motivo de chacota das gerações vindouras! Seria uma estupidez me submeter ao Direito, sabendo que ele é mutável, já que não há certo ou errado. Aceito ser considerado brega, nada fashion, mas nunca alguém mau.
        - Eu só gostaria de saber o que essas lindas garotas fizeram para sofrer tamanha brutalidade.
        - Nada. Nada mesmo. As duas foram até boas namoradas. Porém, resolveram terminar comigo. Daí incorreram no crime de Término, cuja pena é a extração do clitóris.
        - Eu já imaginava que elas não haviam feito nada para o senhor. Conversei com elas e percebi que são moças doces e especiais; e mesmo que elas tivessem feito algum mal ao senhor, nada justificaria sua atitude brutal e desumana.
        - Doces e especiais... Vocês mulheres são muito engraçadas! Vivem falando mal umas das outras, estão sempre se comparando. Vocês se odeiam, contudo quando uma mulher sofre, as demais tomam as dores de sua semelhante. Pura hipocrisia!!!
        - Devo lembrar que o senhor está sendo processado. Seu desrespeito só servirá para lhe prejudicar.
        - Perdão, doutora, mas eu não suporto ver injustiça!
        - Ora essa, logo você querendo vir falar de justiça?
        - E por que não? Ouso dizer que entendo mais disso que vocês chamam de justiça do que a doutora juíza.
        - Ah é?
        - Perfeitamente. Analise comigo: quando eu for condenado, receberei uma pena privativa de liberdade, certo?
        - Se o senhor for condenado, pode apostar.
        - Tal medida evitará que eu arranque clitóris por aí. Muito bem. A doutora realmente acha que a justiça nesse caso será feita?
        - Com certeza.
        - Acha isso porque é o que está na lei, correto? Se a lei previsse pena de açoite você também acharia que a justiça seria feita. Percebo que os juízes mais parecem máquinas do que juristas. Agindo dessa forma, a doutora será uma eterna escrava do texto legal e jamais criará algo. Sabe por que a justiça não será feita? Por que ainda terei minha glande.
        - O senhor só pode estar brincando... Pensa o senhor estar sendo julgado com base no código de Hamurabi? O “olho por olho, dente por dente” é barbárie, e felizmente foi abolido.
        - Aí que a doutora se engana... O olho por olho, dente por dente é a expressão genuína da vossa justiça, que significa nada mais do que “dar a cada um o que é seu”. Matou? Que morra! Arrancou clitóris? Que tua glande seja cortada! O único problema do código de Hamurabi se encontra no que toca a personalidade das penas. A pena não pode passar da pessoa do condenado (idéia da qual até mesmo eu sou adepto), porém, em algumas situações previstas nesse antigo código, esse princípio era completamente desrespeitado. Cito como exemplo a hipótese do sujeito que mata o filho de A. Pela lei de Hamurabi quem pagava o pato, com a própria vida, era o coitado do filho do assassino. Voltando ao meu caso, a pena não passaria da pessoa do condenado, porquanto o crime é meu e a glande também. Logo, não haveria problema em cortar minha glande. Assim e só assim a vossa justiça seria feita.
        - Vejo que o senhor desconhece os direitos e garantias fundamentais do ser humano. Essa pena absurda defendida pelo senhor não está prevista na legislação brasileira, logo, não poderia ser aplicada. E mais, mesmo se houvesse tal pena eu jamais a aplicaria, por se tratar de uma pena cruel, que fere a dignidade da pessoa humana. Só há uma coisa que eu não compreendo: você parece ser adepto do “olho por olho, dente por dente”, todavia, pelo que me consta, suas ex-namoradas não arrancaram parte alguma do seu corpo. Por que mesmo assim o senhor resolveu penalizá-las, mutilando seus órgãos sexuais?
        - A doutora se engana completamente. Não defendo o “olho por olho, dente por dente”, tampouco o “dar a cada um o que é seu”. Apenas entendo mais sobre justiça do que todos vocês que agora me acusam e me julgam. Meu conceito de justiça é outro. Jamais aceitaria um conceito tão fraco e doentio quanto “dar a cada um o que é seu”. Pior que esse, só o “dar a cada um igualmente”, como quiseram alguns insanos. Senão vejamos o absurdo do seu conceito de justiça: Suponha que sou um gigante de 3 metros e quero me refrescar. Cruzo com uma pessoa normal que está tomando um sorvete. Quero aquele sorvete para mim. E agora, o que fazer? Devo respeitar sua propriedade e nada fazer, pois “a cada um o que é seu”? Jamais! Longe de ser alguém justo e virtuoso, se eu, o gigante, seguisse meu rumo sem pegar o sorvete do homem, estaria sendo um verdadeiro idiota. Isso porque eu quero aquele sorvete e posso pegá-lo, pois sou um gigante. Sou superior aos homens normais! E se eu quero e posso, de nada vale o restante. Portanto, a verdadeira justiça diz que devo pegar à força o sorvete. Minha definição de justiça é “dar a cada um conforme a minha vontade”.
- Agora não obstante a criação de leis, o senhor também criou um novo conceito de justiça! Além de legislador és filósofo!
- Crio porque quero e porque posso criar.
- Já chega! Vamos parar com essa palhaçada! A culpabilidade do réu é enorme, pois é muito reprovável o fato do mesmo ter cortado o clitóris de suas ex-namoradas. Quanto aos antecedentes, eles são favoráveis, porque o réu não possui condenação anterior. A conduta social do réu é a pior possível. Ele não respeita o próximo e não sabe viver em sociedade. Sua personalidade também está a seu desfavor, já que o réu é frio e não demonstra estar arrependido. O motivo é o mais fútil que se pode imaginar: o réu não se conformou com o término dos relacionamentos. As circunstâncias não são a ele favoráveis, na medida em que o réu com o emprego de uma tesoura mutilou suas ex-namoradas. As conseqüências do crime também são desfavoráveis a ele, pois o crime gerou dano permanente nas vítimas. Por fim, quanto ao comportamento das vítimas, estas nada fizeram de mal para receber lesões corporais, o que é negativo para o réu. Por todo o exposto, com fulcro apenas na verdadeira justiça, condeno o monstro Egon Adamais a uma pena de extração da glande por tesoura, ciente das conseqüências que poderão acontecer a mim pela aplicação de uma pena sine legem. Faço isso porque quero e porque posso. Neste momento, dou início à fase de execução.
       



FIM

       


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