terça-feira, 31 de maio de 2011

ÂNGELO NA COVA DOS LEÕES




A Bíblia não menciona seu nome. Mas saibam todos que seu nome era Ângelo. A Babilônia jamais havia visto uma criança tão bela. Seus cabelos ondulados e seu semblante puro ofuscavam o brilho dos anjos mais divinais. Seu pai, de nome Ajevni, era um renomado príncipe do rei Dario, o Medo. Como vivia ocupado, Ajevni passava pouco tempo com o filho. A mãe de Ângelo, Tereza, era quem o criava, sempre com muito amor e dedicação. Ângelo era um menino sonhador. Ele desejava melhorar o mundo, acabando com a injustiça, as guerras e o mal.  
Um dia, enquanto brincava de correr pela casa, Ângelo foi surpreendido por uma terrível cena: quatro soldados do Rei Dario invadiram sua casa e disseram que, por causa de Ajevni, toda a família dele deveria ser lançada na cova dos leões. Mediante violência pai, mãe e filho foram levados como se não possuíssem valor algum.
No caminho, Ângelo foi ouvindo a conversa dos soldados. Ele pôde compreender que um inocente havia sido colocado na cova dos leões, sendo certo que seu pai, Ajevni, era um dos culpados dessa injustiça (felizmente, Deus havia salvado o inocente tapando a boca de cada leão da cova). O menino com apenas uma década de vida não era capaz de entender essa justiça que punia filho e mãe como se culpados fossem.
Chegando no palácio do rei Dario, Ângelo viu que havia outras famílias ali. As pessoas estavam muito assustadas e pediam misericórdia ao rei. Dentre elas havia uma criança que chorava copiosamente. Ângelo percebeu que se tratava de seu amigo Nabuco, um filho de príncipe, assim como ele.
O rei não se sensibilizou e ordenou aos soldados que levassem as famílias para serem lançadas na cova dos leões. As famílias, em prantos, entraram na cova e despedidas emocionadas começaram a se dar ali. Foi trazida uma pedra e foi posta sobre a boca da cova. Após, o rei dirigiu-se ao seu palácio. Ali ocorreu um banquete animado com muita música. Ao final, o rei dormiu tranquilamente com sono profundo. E aconteceu que começou a sonhar. Sonhou que conversava com Deus e este lhe dizia: “És justo, rei Dario! És justo como Eu sou!”.
Enquanto o rei sonhava, os prisioneiros na cova dos leões viviam um pesadelo. Eles ainda não haviam chegado ao fundo da cova quando os leões começaram a se apoderar deles. Com lágrimas nos olhos, Ângelo viu seu amigo Nabuco ser morto por um leão faminto. A fera pulou em direção ao menino, derrubando ele no chão. Nabuco foi facilmente imobilizado pelo pesado animal. Sem dó, o leão começou a mordê-lo. Os gritos de dor e desespero daquela criança fariam chorar até os homens mais frios desse mundo. Quando Ângelo se virou, uma cena ainda pior o aguardava: a morte de seus pais, na sua frente, de forma brutal. O menino quase desmaiou ao contemplar aquele horror. Quando os pais morreram, os leões começaram a brigar entre si disputando a carne fresca do casal. Naquele momento quase todos que entraram na cova já estavam mortos. Foi quando Ângelo pensou: “Por que Deus salvou o último prisioneiro que aqui se encontrava e permitiu que pessoas tão inocentes quanto ele fossem destroçadas pelos leões?”. Ângelo não obteve resposta. Após esse pensamento, o menino puro e inocente foi atacado por um feroz leão. Todos os seus ossos foram completamente esmigalhados.
Pela manhã o rei se levantou e foi sem pressa à cova dos leões. E, chegando-se à cova, viu que todos haviam sido mortos pelos leões, porquanto Deus não havia tapado a boca das feras. E o rei muito se alegrou disso.
Esta é uma história real que aconteceu numa cova real. Muitas pessoas em viagem ao atual Iraque costumam visitar a famosa cova dos leões, palco da tragédia de Ângelo. Nela ainda podemos ler na parede a seguinte frase escrita na época pelo próprio rei Dario: A PAZ VOS SEJA MULTIPLICADA.

                                                 
                                               FIM

segunda-feira, 23 de maio de 2011

PUNHAL 2 (HARAKIRI)




ADEUS
DIGO ADEUS
Ó COMPANHEIROS MEUS
A MINHA DESPEDIDA
SE DÁ POR POESIA
COMO MANDA O BUSHIDO
 CÓDIGO BEM ANTIGO
POIS SAMURAI EU SOU
E DESONRADO ESTOU
A PEDRA EU ATIREI
PORÉM TAMBÉM PEQUEI
QUANDO A FLOR DO JARDIM
DO PRÓXIMO EU COLHI
NÃO PUDE VISLUMBRAR
A TRAVE EM MEU OLHAR
PORÉM FUI BEM LIGEIRO
EM APONTAR O ARGUEIRO
NO OLHO DE MEU IRMÃO
MORTO POR MINHA MÃO
O KAISHAKU DISPENSO
QUERO UM MORRER BEM LENTO
SÓ ASSIM EU PODEREI
CUMPRIR A MINHA LEI
TERMINO SEM DEMORA
POIS É CHEGADA A HORA
VESTIDO COM MANTO BRANCO HUMILDEMENTE ME AJOELHO
MEU SEMBLANTE CORAJOSO POSSO VER NAQUELE ESPELHO
COM O MESMO PUNHAL SUJO FAÇO EM MIM UM CORTE EM CRUZ
PARA ME PURIFICAR EU SOFRO AS DORES DE JESUS
HARAKIRI SEPPUKU
HARAKIRI SEPULCRO
HARAKIRI SÊ PURO
SÊ PURO
PURO


segunda-feira, 16 de maio de 2011

O JULGAMENTO DE ADÃO, EVA E SERPENTE

Em geral, as religiões são contrárias ao saber, e isso ocorre porque elas sabem que o saber é contrário à religião. Tudo isso está de acordo com a Bíblia, pois é notório o que sucedeu com o primeiro casal de filósofos da humanidade na sua busca pelo conhecimento. Adão e Eva são processados pelo crime de ingestão de fruto proibido (fruto do conhecimento do bem e do mal para alguns; maçã para outros). A serpente é processada pelo crime de instigação à ingestão de fruto proibido. O processo é inquisitorial, porquanto Deus, como se não bastasse ser o legislador, acumula as funções de acusador e juiz. Neste, que foi o primeiro julgamento da história da humanidade, Adão e Eva agem em causa própria (Deus não havia criado até aquele momento nenhum advogado). Em sua defesa, Adão delata Eva e imputa somente a ela a responsabilidade penal. Disse ele:

“A mulher que me deste por companheira me deu da árvore e comi”.

Eva, por sua vez, sustentou o erro de tipo, culpando exclusivamente a serpente:

“A serpente me enganou, e eu comi.”

Percebam como o fruto do conhecimento fez efeito instantâneo, pois o casal soube criar excelentes teses defensivas, como se criminalistas experientes fossem. Todavia, infelizmente elas não foram capazes de convencer o implacável juiz. Transcrevo agora trechos da sentença condenatória lavrada pelo Excelentíssimo Juiz Deus e publicada em Gênesis:

Serpente: “Porquanto fizeste isso, maldita serás mais que toda besta, e mais que todos os animais do campo: sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida. E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente: esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.”

Eva: “Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.”

Adão: “Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela: maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos e cardos também te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado: porquanto és pó, e em pó te tornarás.”

Ver um animal sendo processado e condenado pela prática de um crime é algo que me faz rir. Porém, mais engraçado é constatar que essa era uma prática comum na Idade Média. Nessa época, os porcos eram os bichos que mais sentavam no banco dos réus. Além deles, bois, cachorros, ratos, lobos, cobras e até abelhas já sofreram processos criminais. Tudo indica que a Bíblia é a principal influência desse entendimento bisonho, pois este livro considera que os animais são seres moralmente responsáveis por seus atos, senão vejamos em Êxodo 21:28: “E se algum boi escornear homem ou mulher, que morra, o boi será apedrejado certamente, e a sua carne se não comerá; mas o dono do boi será absolvido”.
Volvendo ao caso em tela, os três sofreram penas cruéis, que ferem a dignidade da pessoa humana e a dignidade da pessoa animal. Entretanto, como se não bastasse, o casal foi punido ainda com a pena de desterro: foram expulsos do jardim do Éden. E eles realmente sofreram tudo isso, pois a sentença era irrecorrível. Se houvesse a possibilidade de interpor recursos, um bom argumento para a absolvição dos réus seria alegar que essas penas não estavam previstas em lugar algum. Porém, pensando melhor, dificilmente esse argumento prosperaria, já que a regra “não há pena sem prévia cominação legal” não é aplicada por Deus e, sinceramente, não vejo ilicitude alguma nisso. Afinal, Deus pode fazer tudo. Em outras palavras, Deus é onipotente! Como podem ver, o primeiro casal de filósofos sofreu e muito por buscar o conhecimento. Que sirva de lição!

sexta-feira, 13 de maio de 2011

PUNHAL (ALPÍNIA PURPURATA)


ÓDIO
APENAS ÓDIO
POIS SUBISTE AO PÓDIO
SENDO MUI TRAPACEIRO
COVARDE POR INTEIRO
SEMPRE FUI TEU AMIGO
POR QUE ISSO COMIGO?
HÁ TANTAS FLORES LINDAS
PARA SEREM COLHIDAS
MAS QUISESTE A MINHA
A VERMELHA ALPÍNIA
É FLOR DEVERAS BELA
POUCAS SÃO COMO ELA
MAS NÃO AGUENTA FRIAGEM
TU TIRASTE VANTAGEM
POIS O INVERNO FEROZ
CHEGARA PARA NÓS
ÉS UM ISCARIOTES
TENS MALDADE EM LOTES
TEU SER TÃO VIL NÃO SABE
O QUE É VERA AMIZADE
PODERIAS PEDIR
PERDÃO E CONSEGUIR
PORÉM AGORA É TARDE
OUVE BEM ESSA PARTE
COM UM PUNHAL AFIADO MINHAS COSTAS ACERTOU
PELO MESMO INSTRUMENTO JAZ CAÍDO O TRAIDOR
O VERMELHO DA ALPÍNIA QUISESTE SÓ POR PRAZER
JORRA AGORA RUBRO SANGUE! JUDAS, TU DEVES MORRER!
ALPÍNIA PURPURATA
ALPÍNIA SANGUINATA
ALPÍNIA SANGUE
APENAS SANGUE
SANGUE

quarta-feira, 11 de maio de 2011

DEUS É UM JUIZ GARANTISTA


Já matei, já furtei, já menti
Mas Deus é um juiz garantista
Cobicei, já roubei, já traí
Mas Deus é um juiz garantista
Cometi todos os crimes das nossas leis penais
E os sete pecados capitais
Mas estou calmo, tudo isso é irrisório
Deus garante ampla defesa e contraditório
Além do devido processo legal
Também chamado de "due process of law"
Já invejei, já enganei, seduzi
Mas Deus é um juiz garantista
Prevariquei, esbulhei e fraudei
Mas Deus é um juiz garantista
Contra os costumes e a ordem pública atentei
E os dez mandamentos eu quebrei
Mas estou calmo, para mim não há problema
Ele defende a humanidade da pena
Eu falo sério, não pense que sou cínico
No céu vigora o Direito Penal Mínimo

FIM

O REI QUE TINHA DOIS CETROS

        Há um tempo atrás existia um pequeno reino chamado Sofosberg. O nome era em homenagem ao Rei Sofos, um homem considerado por todos bom, justo, sábio e humilde, principalmente porque, graças a ele, não havia pobres nem ricos ali, todos compunham uma única classe social.
        Um dia, o Rei resolveu fazer um passeio sozinho. Chegando à praça central, Sofos teve uma surpresa: ele viu, pela primeira vez, um homem sem uma perna. O Rei observou a reação das pessoas que rodeavam o aleijado e percebeu que todas estavam também surpresas com aquela novidade no pacato reino. “Pobre homem!”, pensou o Rei, “o que será que ele fez de tão grave para receber tamanho castigo?”.
        No caminho de volta ao simples e diminuto palácio, Sofos veio pensando naquilo que vira. O semblante triste daquele homem sem uma das pernas não saía da mente do monarca.
Dois dias depois, o Rei resolveu voltar à praça central, e, chegando lá, viu o mesmo homem, no mesmo lugar, sem a mesma perna. Como esse fato marcou o Rei! Para ele, algo parecia não estar certo naquela situação. “Eu, o defensor da igualdade, vocábulo que é sinônimo de justiça no meu dicionário, não posso aceitar que esse homem viva sem uma perna, enquanto todos os outros possuem as duas”.
O Rei passou a fazer visitas diárias àquela praça, apenas para rever o aleijado. Sempre que Sofos via aquele homem, ele se sentia envergonhado. “Que cara de pau a minha! Cada vez que cruzo com esse infeliz é como se eu debochasse dele, dizendo: ‘Olha pra mim, seu tolo azarado, eu tenho as duas pernas, mas você só tem uma!’. Isso não está nada certo...”.
Esse pensamento começou a provocar no Rei a pior espécie de dor que existe: a dor moral. Sofos sofria por dentro, pois não sabia o que fazer. E, como se não bastasse (injustiça divina), a dor moral gerou dores físicas no monarca: Dor de cabeça, tonturas e dor no estômago infernizavam a vida dele.
O Rei já estava no seu limite! Algo deveria ser feito e já! Foi quando ele pensou: “E se eu cortasse a minha perna? As pessoas costumam dizer que sou bom e justo... Já provei isso eliminando a divisão de classes no reino, porém, é hora de provar mais uma vez que, de fato, detenho essas qualidades. Se não posso curar aquele homem, darei uma lição a todos me igualando ao pobre aleijado”.
Em seguida, o Rei chorou de soluçar. Ele sabia que não seria nada fácil cortar a própria perna. Porém, não havia escolha, aquilo era o certo!
Ele já imaginava a repercussão de seu ato, que representava o domínio da igualdade perante tudo e todos: Ricos de todo o mundo se sentindo mal vendo pessoas pobres e, conseqüentemente, dividindo com eles suas riquezas; poderosos de todo o mundo se sentindo mal vendo indivíduos abaixo deles e, conseqüentemente, renunciando o poder que detinham outrora!
Pronto, estava decidido: Adeus, perna esquerda! O Rei pegou um serrote e se trancou no seu quarto sozinho. Lá, ele abriu uma garrafa de vinho e bebeu três cálices, no intuito de sentir menos dor e criar coragem para fazer o que tinha que ser feito. Enquanto bebia, o rei foi até o piano tocar músicas no sistema dodecafônico, sistema esse que considera cada uma das doze notas como sendo iguais. “Que bebida saborosa, vou tomar a quarta dose só pra garantir!”, disse o Rei. Após tomar o quarto cálice, o ébrio Rei olhou pela última vez sua perna esquerda no corpo e, naquele momento, teve a impressão de que ela era uma peça estranha ao todo, que realmente não era para estar ali.
Então, o Rei respirou fundo, cerrou os olhos e serrou a perna esquerda.
O Rei berrava de dor, e parecia que o vinho que bebera não parava de sair de seu corpo. João, um criado de Sofos, estava próximo ao quarto e ouviu os berros de dor. Ele não sabia o que havia acontecido com o querido Rei, que sempre o tratava gentilmente e de igual para igual. João, assim como acontece com os criados em geral, não tinha o costume de pensar. Porém, naquele momento, isso foi extremamente importante, pois ele, sem raciocinar, deu um chute na porta do quarto do Rei com toda a sua força. A porta despencou na hora, e João pode ver aquela triste cena: O Rei gritando todo ensangüentado sem uma das pernas.
João ficou assustadíssimo, e, rapidamente, tirou sua camisa, amarrou-a no ferimento e levou o Rei até Ruy, o melhor médico que havia no reino. O médico não acreditou no que estava vendo. Após ouvir de João que o Rei havia feito aquilo consigo mesmo, o médico pensou: “Bom, justo, sábio, humilde e louco!!!”. Entretanto, mais uma vez não havia tempo para pensar, pois o Rei sangrava muito e poderia morrer. Ruy então resolveu amputar o cotoco real, ou seja, o que restava da perna do monarca, e, se valendo desse procedimento, conseguiu salvar o paciente.
Quando finalmente o Rei recebeu alta, ele disse ao seu criado: “Mande todos irem à praça central hoje à noite. Farei um discurso explicando tudo o que aconteceu”.
A noite chegou e, na praça, a multidão reunida estava ansiosa pelas palavras de Sofos. O Rei apareceu andando apoiado em dois cetros, usados como muletas improvisadas. O povo aplaudiu timidamente, pois a cena era chocante, principalmente porque aquele era somente o segundo aleijado da história do reino. Sofos subiu num palanque e começou a discursar, dizendo em alta voz: “Amado povo! Não se assustem! Sei que confiam em mim de coração, portanto, reflitam acerca de minhas palavras: Dias atrás, vi pela primeira vez aqui no reino um homem que não possuía uma das pernas. Fiquei profundamente triste e me sentia mal sempre que passava por ele. Vocês conhecem o valor que a igualdade possui! Sabem que ela é a perfeição e a justiça, e que, por isso, deve continuar reinando aqui. Após pensar muito, cheguei à conclusão de que o certo seria cortar uma de minhas pernas para me igualar ao aleijado. Isso não é lindo? Existe maior demonstração de amor do que essa? Porque sim, meu querido povo, eu amo cada um de vocês, com o mesmo amor, pois somos iguais, somos todos seres humanos!”.
O povo não entendia como era possível que alguma coisa, qualquer coisa, fosse capaz de justificar o fato de o Rei cortar sua própria perna. Mas, enfim, eles confiavam na sabedoria e bondade dele. Até que um da multidão gritou: “Viva a igualdade!!!”, e todos disseram: “Viva!!!”.
Sofos ficou muito feliz com aquele apoio e passou a amar o povo ainda mais. “Eles compreenderam tudo”, falou o Rei cheio de euforia, “Esse é um dia que vai ficar na história de Sofosberg”.
O Rei então resolveu baixar o seguinte decreto:

“DECRETO Nº 123      

Da amputação obrigatória
Art. 1.º Todo cidadão desse reino é obrigado a ter uma de suas pernas amputadas, recaindo a escolha da perna à própria pessoa.

Art. 2.º Os amputadores serão servidores do reino aprovados em concurso público de provas e títulos.

Da penalidade
Art. 3.º O cidadão que descumprir essa norma será enforcado em praça pública.

Parágrafo Único. Fica isento de pena aquele que se opor à amputação, pelo fato de já não possuir uma das pernas”.

Em seis meses, todos os habitantes daquele reino tiveram uma de suas pernas amputadas. O Rei voltou a ficar contente vendo todos novamente iguais. O povo é que pareceu não ter gostado muito... Era muito difícil se locomover com apenas uma perna. Euzébio Jabuti, o homem mais rápido do reino, campeão em todas as modalidades de corrida, disse aos amigos, inconformado: “Maldita igualdade! Graças a ela nunca mais correrei como antes... Jogos paraolímpicos, aí vamos todos nós”.
Ruy, o melhor médico do reino também ficou especialmente irritado: Trabalhar sem uma perna era algo deveras penoso. Ele continuava achando que o Rei era louco: “Imagina se um reino declara guerra a nós... Vamos combater usando um exército de sacis!”. Porém, Ruy continuava trabalhando arduamente pelo bem daquele reino.
Até que um dia algo incrível aconteceu. Ruy, ao examinar um paciente, teve um ataque e começou a gritar descontrolado: “Meu Deus! Não! Você tem um tumor no pênis! É câncer! Não é possível! Por que???”. O homem ficou boquiaberto devido à reação do médico, e mesmo recebendo essa horrível notícia, disse: “Fica calmo, doutor!”. Ruy, totalmente desesperado, berrou dizendo: “Você não está entendendo! Eu terei que amputar seu pênis! Amputar! Oh, meu Deus!”. O homem olhou fixamente o médico. Ruy tremia e tinha o aspecto de um alucinado. Após dois minutos de silêncio total, Ruy disse ao paciente: “Já volto”. Então ele saiu dali e entrou numa salinha que havia naquele mesmo corredor. Sozinho na sala, o médico abriu o armário, pegou 1mg de cianureto e ingeriu sem titubear. Morreu na hora.


                                           
                                        FIM

FILOSOFIA DO SÉC. XXI

CAPÍTULO 1

Era uma tarde normal no Rio de Janeiro.  Hélio não dava trégua, a temperatura já passava dos 40º C. Mas nosso protagonista não é Hélio, e sim Potiguara, carioca de 19 anos morador do bairro da Tijuca e estudante de Direito. Apesar desse calor infernal, Potiguara resolveu encarar a academia e praticar sua atividade física diária. Porém, descansando entre um exercício e outro, foi tomado por uma incrível inspiração. Podia ver claramente tudo se passando em sua mente nos mínimos detalhes. Finalmente, sua primeira obra, quem sabe talvez sua ponte para a eternidade, seu primeiro filho tão aguardado nascia ali, naquele ambiente inóspito onde a futilidade impera, ao som de um DJ americano qualquer, que sem dúvidas chama de música seus ruídos (Deusa Música,perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem). Mais uma vez do estrume é que nasceu a flor.
O leitor pode estar achando que a inspiração veio do nada, por sorte. Não se engane: Nada nasce do nada. A criação de Potiguara só foi possível, porque ele leu muito, e, o que é mais importante, pensou muito, já que, como é sabido, quem lê sem pensar não é capaz de criar. Para ser sincero, Potiguara não leu tanto assim. Sua estante de livros é pequena. Ela não causaria impressão nos telespectadores que assistissem Potiguara sendo entrevistado em sua casa por uma emissora de Televisão (é engraçado como os eruditos-posers gostam de mostrar, quando entrevistados, a vasta coleção de livros que possuem, como se ela refletisse o tamanho da sapiência deles). Porém, quão impressionados não ficariam os telespectadores, se, assistindo a essa mesma entrevista de Potiguara, pudessem ver ao fundo sua estante de pensamentos?
Com medo de esquecer alguma parte, o jovem foi correndo pra casa. Ele não se importou com o fato de não ter terminado sua série de exercícios, pois sabia que havia criado algo grande. No caminho, lembrou do ex-padre Vivaldi, que, conforme reza a lenda, foi excomungado pela Igreja por ter abandonado o altar no meio da missa para anotar uma linda melodia que tinha acabado de inventar ali. “Sorte minha que as academias não excomungam”, pensou o rapaz.
Chegando em casa, não fez outra coisa senão escrever, nunca riscando partes do que já havia escrito, algo que Gogol ou Brahms dificilmente fariam. Com isso, seu texto é uma amostra quase cem por cento pura do seu turbilhão de pensamentos. Transcrevo agora o ácido e poderoso manuscrito no seu inteiro teor, cópia totalmente fiel à versão original:














“FILOSOFIA DO SÉC. XXI – Autor: Potiguara da Silva


Amigos do mundo,


Retificar a história é preciso: O século XXI é a verdadeira idade das trevas! Sinto vergonha de viver nessa tenebrosa época. Filosofia adormecida , música desafinada e literatura analfabeta... Para onde caminha o Homem hoje? Para trás! Às vezes puxam o Homem para a esquerda ou para a direita; mas nunca o fazem caminhar para frente. Entretanto, como já era de se esperar, há esperança, esse bravo cavaleiro andante, ultima ratio dos desesperados. A esperança é essa luz em forma de palavras que vos trago e que será a salvação e o despertar do Homem. Sei que muitos não estão preparados para receber essa luz, de brilho exótico e intenso, que fatalmente cegará a maioria dos que forem contemplados por ela. Outros, que já estão cegos, não serão por ela iluminados. Mas aqueles que lerem buscando sinceramente a verdade, serão tomados por um poder novo descomunal, nunca sentido nem pelos espíritos mais sábios e profundos que já passearam pela Terra. Preparem os vossos olhos! A partir de agora ilumino.
Atualmente, a hegemonia mundial pertence aos Estados Unidos da América, vencedor das duas grandes guerras e da Fria, detentor da maior economia e poderio bélico do planeta. Devemos perguntar: É justa essa hegemonia, conquistada pela força da bomba atômica? A resposta é não. Conquistar a hegemonia pela guerra é algo injusto e que, por isso, deve ser abolido. Isso foi o que a Deusa Justiça me disse quando, em oração, perguntei a ela sobre a legitimidade da guerra. Após ouvir a negativa, perguntei: ‘Então, minha Deusa, quem deve ser, de Direito, o líder do mundo?’. Ela então me respondeu dizendo: ‘Bom e justo Potiguara, a hegemonia mundial deve pertencer a quem for superior. Isso a história te mostrará’. Então agradeci e fui até a História e perguntei: ‘História, afinal qual é o país superior?’ E ela respondeu: ‘Muitos historiadores marxistas tentaram me matar, porém, resisti milagrosamente e acho que, mesmo padecendo em meu leito, posso responder essa questão com a seguinte pergunta: Quem se destacou mais na filosofia, literatura e música, as criações mais elevadas do Homem? Respondo: Na filosofia, os gregos foram grandes, mas os alemães foram os maiores; na literatura, os russos foram grandes, mas os alemães foram os maiores; na música, os italianos foram grandes, mas os alemães foram os maiores. Pronto, aí está o que você procurava: A Alemanha é superior’.
A História estava certa: Os alemães se destacaram em tudo aquilo que constitui o tesouro mais precioso da humanidade, sendo, por isso, os que mais contribuíram para ela. Portanto, a hegemonia mundial deve pertencer não aos americanos, povo intelectualmente inferior, nada profundo, usurpador do poder pelas armas, péssimo líder incapaz de traçar nossa rota, mas sim aos alemães. É incrível como aceitamos receber constantemente dos yankees seus best-sellers, blockbusters e junk-food. Soa como piada o ‘junk’ compor apenas a expressão junk-food. Proponho que a partir de agora falemos em junk-food, junk-books e junk-movies. O rei Midas transforma tudo o que toca em ouro; o americano transforma tudo o que toca em lixo.  E mesmo assim, lá está ele no topo, impondo a todos seu fútil estilo de vida e seu pobre idioma. O mundo está sendo governado por tolos... e os sábios permitem isso.
Sim, de fato os outros países já nos deram muitos gênios. Mas existe um poder e uma magia que só os alemães possuem.  Que nação ousaria competir contra um time composto por Bach, Beethoven, Schopenhauer, Goethe, Nietzsche e Wagner? Quantos momentos de prazer profundo esses homens grandes, imensos, proporcionaram a humanidade! E quanta verdade na sua mais límpida essência eles nos legaram! Tudo isso será devidamente e finalmente compensado! Oh tu, gigante Alemanha, que perdestes as duas grandes guerras e foste humilhada, finalmente obterás a liderança do mundo! O que um bom maestro é para uma orquestra e um bom general é para um exército, a boa Alemanha será para o mundo. E tudo ocorrerá sem que seja preciso derramar uma gota de sangue, líquido sagrado que já escorreu demais à toa. Isso porque a liderança do mundo será entregue aos alemães, assim que essas novas tábuas estiverem com vigência e eficácia no coração de todos.
E sim, os alemães criaram o nazismo, sem dúvida um erro, hoje felizmente superado, com exceção de pequenos grupos neonazistas persistentes. Porém, há uma parcela de verdade no nazismo. Hitler acertou quando defendeu a superioridade dos alemães; só errou na justificativa. Também acertou quando advogou a inferioridade dos judeus, porém, houve aqui também um equívoco, motivado por interesses políticos, que foi grave e causou injustamente o massacre desse povo. Esse equívoco reside no fato de que não há nada de especial na inferioridade deles. Assim como os judeus, são inferiores os japoneses, os italianos, os brasileiros, os russos, os árabes, os africanos et cetera. Isso porque esses povos possuem algo em comum: todos eles são não-alemães. Porém, eu, o autor desse escrito, sou uma exceção. Faço parte desses poucos não-alemães de muito valor, pois cresço na medida em que reconheço minha inferioridade. E todos os não-alemães que amam o mundo e o Homem devem seguir meu exemplo. Se todos ponderarem com sinceridade acerca dessas palavras, verão que aqui cantam a Justiça e a Verdade a melodia mais sublime. De nada adianta nos enganarmos: nós, não-alemães, somos inferiores. A verdade pode ser dura, mas a mentira tem perna curta.
Apenas uma condição será imposta aos alemães: Eles devem centrar todos os esforços para organizar esse grande Estado mundial de modo a favorecer ao máximo o surgimento do gênio. O foco não é mais o trabalhador, o pobre, o fraco; o foco passa a ser o gênio.
O século XXI começou decadente, mas ele será o maior de todos. Minha parte está feita. Agora depende de vocês. Eu realmente não seria capaz de liderar esse Renascimento. Mas confiemos nos Johanns e nos Friedrichs! Eles saberão o que fazer. Deutschland über alles!




Rio de Janeiro, 2 de abril de 2010.”




CAPÍTULO 2

Esse polêmico escrito foi colocado por Potiguara em todos os murais da Faculdade Nacional de Direito na qual estudava. No mesmo dia, graças aos esforços do pombo-correio chamado Fofoca, o assunto já chegara aos ouvidos de todos.
Os comunistas do centro acadêmico ficaram indignados com Potiguara, apesar de secretamente apreciarem o poder revolucionário do manuscrito. Os mais exaltados foram de sala em sala dizer que “A tese de Potiguara é absurda, porque não beneficia a classe trabalhadora, nem promove a redução da desigualdade social”.
Outro grupo da faculdade que ficou irado devido ao conteúdo do texto foram os cristãos. Quando cruzaram com Potiguara nos corredores da universidade, esbravejaram, dizendo: “Não há superiores ou inferiores, pois, aos olhos de Deus, todos são iguais”.
Pelo menos uma pessoa elogiou o manuscrito: Carlos, um rapaz inteligente, amigo de Potiguara. Ele não sabia ainda se aceitava as idéias defendidas pelo amigo, porém, já o considerava um gênio. Após ler “Filosofia do séc. XXI”, Carlos ficou bastante entusiasmado, pois no seu entender, esse texto poderia movimentar nosso século, um tanto quanto parado, com exceção do “11 de setembro”.  Durante suas infindáveis conversas com Potiguara, Carlos costuma dizer sempre: “O homem do século XXI quer apenas salvar o planeta, não está preocupado em pensar e criar. Isso me faz rir, porque, se o homem não pensa e não cria, para que salvar o planeta?”.
Entretanto, a crítica positiva do amigo de Potiguara não representava fielmente a situação: em geral, os alunos da faculdade que liam seu manuscrito achavam graça e zombavam de seu autor. A faculdade de Direito em que ele estudava estava repleta de típicos jovens universitários, que não sabem nada, mas querem mudar o mundo. Parece que seguiam à risca o manual do perfeito idiota latino americano. Isso irritava Potiguara profundamente. Naquele lugar, ele se sentia uma águia num ninho de bem-te-vis, pois gostava de ir além, buscar a verdade voando alto com as próprias asas, mesmo sabendo que é mais cansativo voar com as próprias asas. Além disso, o vôo alto é solitário, o que inevitavelmente traz sofrimentos. Entretanto, existe o lado bom de tudo isso: lá de cima, a vista é ampla e linda. E Potiguara, apesar de ser brasileiro, não se contenta com pouco. Ele só sabe viver e só consegue viver contemplando essa imensidão do lugar mais elevado. Custe o que custar.
O assunto dominava completamente aquela universidade. Até os professores já tinham lido o escrito do jovem. Eles ficaram surpresos quando viram que Potiguara era o autor, pois o rapaz não costumava tirar boas notas nos exames e não tinha aparência de intelectual. Eles achariam normal se o autor do texto fosse um estranho e introvertido míope de óculos, mas Potiguara, um dos mais populares da faculdade, não era nada disso.
O professor de Filosofia do Direito ficou com inveja do jovem pensador, pois, apesar de se apresentar às turmas dizendo “Muito prazer, eu sou um filósofo...”, só havia escrito, até aquele momento, artigos sobre a vida e obra dos verdadeiros filósofos. Então, no intuito de se vingar, foi até Potiguara dois dias após ter lido o texto e perguntou-lhe se estava disposto a ser entrevistado por ele. O professor disse que a entrevista seria publicada na revista de filosofia em que ele costumava escrever seus artigos. O ingênuo Potiguara ficou contente por causa do tão nobre convite e já pensava num modo de retribuir o favor daquele bondoso professor que se apressava em divulgar sua obra. Como é intensa essa necessidade que temos de retribuir favores! No ônibus, quando cedemos o lugar, ouvimos em troca “Quer que eu segure sua sacola?”. Quando seguramos a porta do elevador para o vizinho que está vindo, a situação é ainda mais interessante: geralmente, ele agradece a gentileza e pergunta “Qual o seu andar?”, mesmo sabendo que apertar o botão para nós não é algo útil. Mas que importa a utilidade se a consciência se tranquiliza?
Naquele mesmo dia, numa das salas da faculdade, aconteceu a entrevista. E para a surpresa do jovem, ele fora massacrado por seu professor. Uma das perguntas mais pesadas feitas pelo mestre foi: “Você não se acha um irresponsável por ter publicado um texto tão perigoso?”. Potiguara tentou em vão se defender. As perguntas tendenciosas do professor estavam sepultando suas idéias.
Causava tristeza no rapaz ver como o “novo” era sempre repudiado. Ele disse a Carlos, um dia após a entrevista: “Meu belo acorde dissonante fere os ouvidos dos não iniciados”. Sim, pois, com exceção de seu amigo, só ouvia reclamações, ironias e xingamentos, sendo “louco” a palavra rude que mais comumente recebia. Será que a humanidade com o tempo passaria a entender seu manuscrito? Ele sabia que o louco de hoje pode ser o gênio de amanhã, porém, ser massacrado por seus contemporâneos não é algo sempre capaz de atestar a genialidade. Ele temia ser considerado louco não apenas por seus contemporâneos, mas por todas as gerações futuras.
E então aconteceu que, um dia, o Cônsul norte-americano no Brasil, assinante daquela revista de filosofia, leu a entrevista de Potiguara feita pelo professor e achou que deveria contar ao Presidente dos Estados Unidos sobre a existência do manuscrito que os experts no assunto consideravam perigoso. O Presidente, apesar de não ter dado muita importância às palavras do representante dos Estados Unidos no Brasil, resolveu ler o texto de Potiguara enviado e traduzido pelo próprio Cônsul. Após ler e reler o escrito, o Presidente sentiu que aquilo poderia ser uma ameaça ao seu poder. Ele reconheceu no manuscrito de Potiguara aquele invisível, porém imenso poder presente em livros capazes de mudar o mundo, como a “Bíblia”, “O Capital”, de Marx e o “Minha luta”, de Hitler. Por isso, resolveu convocar a alta cúpula do governo para uma reunião extraordinária. Após a exposição do assunto e a leitura do manuscrito, um Ministro perguntou ao Presidente: “Senhor Presidente, não será necessário entrar em contato com o governo brasileiro?” O Presidente respondeu dizendo: “Creio que essa não seja uma boa idéia. Isso daria muito trabalho e poderia ser ineficaz. Na verdade, precisamos eliminar o autor desse escrito, antes que sua doença se espalhe e vire uma epidemia. Eu já sei como resolver essa pendência: Falei com Jesus, só ele pode nos salvar”.
Após pronunciar essas palavras, o Presidente americano mandou chamar Jesus, agente secreto de sua confiança, porquanto o mesmo nunca havia falhado em nenhuma missão. O Presidente, no dia anterior, havia entrado em contato com o agente, que leu o escrito de Potiguara e gostou muito, principalmente porque via os norte-americanos que o rodeavam de forma bastante negativa. E como fora confiada a ele a missão de matar o autor daquele escrito, na sua opinião, fascinante, Jesus ficou triste. Ao entrar no salão de reuniões, o agente perguntou ao Presidente, gaguejando com humildade: “Senhor Presidente, sobre aquele texto “Filosofia do século XXI”, será que não há nele uma parcela de verdade? Não seria uma injustiça matar seu autor antes de analisarmos se ele escreveu algo útil para a humanidade? Mesmo se o Senhor considerar isso justo, se for possível, afasta de mim essa missão!” O Presidente respondeu seguro e com seriedade: “Não analisei a questão sob o prisma da justiça. A justiça é o obstáculo do meu interesse. E você vai sim cumprir essa missão!”. Jesus pensou em resistir à ordem do Presidente, e dizer, para justificar essa atitude “It’s a free country!”, frase mágica que legitima toda e qualquer ação praticada em solo norte-americano. Porém, sabendo que sua recusa significaria o fim de sua brilhante e rentável carreira, o agente disse, cabisbaixo: “Tudo bem. Eu irei e cumprirei as ordens do Senhor”. Então, Jesus se retirou dali, no intuito de pegar o quanto antes um avião com destino ao Brasil para cumprir sua missão.
No dia seguinte, já estava no Brasil o hábil agente sniper, colecionador de lícitos homicídios, que por serem lícitos, não fazem dele um assassino. Após desembarcar no aeroporto internacional do Rio de Janeiro, ele pegou um daqueles táxis com o preço caríssimo pré-fixado, que por ser algo lícito, não faz com que os taxistas sejam considerados ladrões. Durante a viagem, o taxista se gabava do número de amantes que possuía, mas o agente não deu atenção a ele, pois, além de estar muito concentrado, nada sabia de português nem de qualquer outro idioma senão o inglês. Seu desprezo, porém, não foi capaz de fazer o taxista se calar.
Enfim, Jesus saltou na Rua Conde de Bonfim, no bairro Tijuca, onde Potiguara morava. O relógio marcava vinte e duas horas e trinta e cinco minutos. A rua estava escura e deserta. Como havia sido informado que Potiguara costumava chegar em casa do trabalho por volta das vinte e três horas, Jesus rapidamente montou seu rifle num beco escuro ideal para efetuar o disparo e sumir dali logo em seguida. Por volta do horário esperado vinha Potiguara andando pensativo, logo, distraído. Ao vê-lo, o experiente Jesus puxou o gatilho e acertou o jovem na cabeça com um tiro certeiro. Mission accomplished.





















CAPÍTULO 3

Após a morte de Potiguara houve uma comoção geral. A mídia, esse vampiro sensacionalista, sugou tudo o que podia do caso e inventou mil explicações como causa dessa tragédia. Durante pouco mais de um mês só se falava da morte do jovem. Com isso, sua filosofia nada popular se popularizou. Seu texto “Filosofia do século XXI” viajou dos murais às livrarias e foi um sucesso de vendas. Potiguara, morto, enriquecera. Para o povo, influenciado pelo que via nos noticiários, o jovem havia se tornado uma espécie de mártir, que morreu para salvar a humanidade. Potiguara, herói nacional, passou a ser idolatrado com fé cega por muitos que não haviam lido sua obra, nem faziam idéia do que ela tratava. Alguns autores brasileiros, aproveitando a moda, lançaram às pressas livros como “Introdução ao Potiguarismo”, “Potiguarismo resumido” e “O Potiguarismo em trinta minutos”.
Depois do sucesso nacional, o Potiguarismo começou a se expandir, e os países estrangeiros foram conhecendo-o aos poucos. O povo alemão ficou feliz e grato por aquela verdadeira ode feita em sua homenagem. O número de vendas do manuscrito de Potiguara não parava de crescer. Um grupo de intelectuais alemães publicou um texto apaixonado pedindo apoio às nações, pois estavam preparados para promover o renascimento do gênio e da arte, e tranqüilizaram a todos dizendo que suas ações seriam sempre pautadas pela razão, equilíbrio e razoabilidade. Ainda nessa obra, os autores também disseram não acreditar como era possível um rapaz jovem e brasileiro escrever um texto tão inovador. Para eles, normalmente o jovem não está maduro o suficiente para se aventurar numa obra daquele calibre; e o Brasil não é um país famoso por dar filósofos ao mundo. Os autores alemães realmente estavam certos: carnaval, mulatas e futebol caracterizam melhor esse povo alegre, cuja felicidade corresponde exatamente ao tamanho de sua ignorância.
A repercussão do texto brasileiro entre os judeus não foi das melhores. Além de repudiarem as críticas à igualdade (como se os judeus considerassem os árabes “iguais”) ficaram com medo de reviver o pesadelo do holocausto, mesmo sabendo que o manuscrito não pregava de forma alguma uma renazificação, por ser contra a opressão de um povo sobre o outro.
As idéias de Potiguara cada vez mais conquistavam terreno, chegando a penetrar no Direito. Os juristas brasileiros, com base no Potiguarismo, defendiam o “princípio da compensação histórica”, que para eles, seria o argumento jurídico capaz de legitimar o domínio do mundo pela Alemanha, compensação essa devida por tudo que esse país já fez pela humanidade. Eles afirmavam que esse princípio já existia, sendo, por exemplo, a justificativa da reserva de um percentual de vagas em universidades, para os negros, compensação essa devida por tudo que sofreram na história. Os mais radicais de esquerda aproveitaram para dizer que a tendência seria a criação de cotas para mulheres e homossexuais pelo mesmo motivo.
Nos Estados Unidos, muitos americanos passaram a defender as idéias do Potiguarismo. Eles começaram a se envergonhar, pois achavam que a crítica feita aos americanos procedia. Isso pode parecer incrível, mas a história daquele país é repleta de fatos que impressionam. Querem um exemplo? Primeiro, o americano proíbe o negro de tomar água no mesmo bebedouro que ele.  Depois, permite que o negro assuma a presidência do país.


CAPÍTULO 4

Um século havia se passado desde a morte do jovem sonhador. O ser humano estava irreconhecível. De fato ele ainda possuía pernas, braços, falava e pensava. Mas o Homem havia mudado, se superado, e somente por erro nosso, continuávamos chamando nossa espécie de seres humanos. Claro que não estou me referindo ao povo. O povo é imutável.
No século passado, era algo natural defendermos com unhas e dentes nosso país natal, apenas por ser nosso país natal, sendo considerado traidor aquele que não fizesse isso. Se o indivíduo nascesse na China, defenderia a China acima de todas as nações do mundo. Porém, se esse mesmo indivíduo tivesse nascido na Índia, defenderia a Índia, sem se importar com o bem dos outros países, inclusive da sua outrora amada China. Hoje, o Homem acordou e percebeu que isso não passa de uma grande tolice, fruto do egoísmo nacionalista. Ele passou a defender o que é valoroso, seja nacional ou não. Esse pensamento levou o admirável Homem novo no caminho do renascimento Potiguarista, já tão defendido por inúmeras nações.
Se os Estados Unidos resistissem aos apelos dos demais países, que pressionavam os americanos a entregar a hegemonia mundial aos alemães, fatalmente estaríamos diante da terceira grande guerra. Mas, felizmente, os americanos cooperaram. Ninguém mais naquele país fazia algo visando unicamente o lucro; que mudança impressionante! O presidente dos Estados Unidos da época, um homem sábio, falou, emocionado, no final de seu discurso de despedida: “Uma nova era nos espera! E eu não seria capaz de impedir tamanho avanço da humanidade. Nosso mestre Potiguara só cometeu um equívoco: O maior século será o XXII, o nosso!”.
No ano de 2111, o que antes parecia absurdo, aconteceu: após o “1º encontro das nações para frente”, os países decidiram que o presidente da Alemanha seria o 1º presidente mundial da história.






                           FIM

                         INÍCIO


O CASO DO RANCA CLITÓRIS


- Egon Adamais, o senhor está sendo acusado de ter cortado com uma tesoura o clitóris de suas duas ex-namoradas Maria e Madalena, estando portanto incurso no art. 129, §2º, III do Código Penal Brasileiro, que trata da lesão corporal gravíssima causadora de perda ou inutilização de membro, sentido ou função. É verdadeiro esse fato ao senhor imputado?
        - Sim, doutora juíza, nunca ouvi verdade mais cristalina.
        - Meu Deus... E por que o senhor cometeu um crime tão bárbaro como esse?
        - Bárbaro? Doutora, não faça tempestade em copo d’água! Eu não matei minhas ex-namoradas. Eu apenas cortei um pedacinho mínimo do corpo delas. Sou bem piedoso. Elas ainda podem andar, falar, sorrir, cantar... Pense bem, até transar elas podem!
        - Responda minha pergunta! Por que você cometeu essa atrocidade?
        - Bom, elas terminaram comigo. E receberam a pena que mereceram, segundo a lei. Essa pena foi a escolhida porque ex boa não é ex morta. Para vencermos nosso inimigo não é necessário acabar com a vida dele. De acordo com Clausewitz basta que desarmemos nosso inimigo. Foi exatamente o que eu fiz. Desarmei as duas! Doutora, ex boa é ex sem clitóris!
        - O senhor é um monstro! Fez justiça com as próprias mãos! Isso é crime! Exercício arbitrário das próprias razões! Art. 345 do CP!
        - Bom, se é crime estou devendo uma ao ilustre promotor, que não mencionou esse crime na denúncia.
        - Como pode o senhor achar que possui competência para legislar? O senhor criou um crime e sua respectiva pena!
        - Ah, a capacidade de criação... Sabe, se a mim não fosse dado o poder de criar, eu nada seria... Doutora, compreenda, o Direito é uma criação humana deveras falha. Por que? Ora, porque não há certo nem errado nesse mundo. Nada se modifica mais do que o conceito de certo e errado. A escravidão era algo completamente aceito. Hoje em dia, se eu reduzo alguém à condição de escravo cometo um crime! As penas antigamente eram mais cruéis e ninguém reclamava disso. Atualmente temos a humanidade das penas, e muitos a tratam como se ela fosse o certo e as penas cruéis algo errado. Nada disso! Simplesmente as penas cruéis não estão mais na moda. O Direito segue a moda! A próxima geração vai fazer piada das nossas normas, costumes e valores, da mesma forma que nós fazemos troça da geração passada. O ocidente todo pode, por exemplo, aderir à poligamia (que hoje é até mesmo um crime) e não entender como nós, podendo possuir várias mulheres, praticávamos a monogamia antigamente. A diferença entre o homicídio e os demais crimes não reside de modo algum no chamado Direito Natural. Na verdade, o homicídio é semelhante à calça jeans: nunca sai de moda. Doutora, não quero ser motivo de chacota das gerações vindouras! Seria uma estupidez me submeter ao Direito, sabendo que ele é mutável, já que não há certo ou errado. Aceito ser considerado brega, nada fashion, mas nunca alguém mau.
        - Eu só gostaria de saber o que essas lindas garotas fizeram para sofrer tamanha brutalidade.
        - Nada. Nada mesmo. As duas foram até boas namoradas. Porém, resolveram terminar comigo. Daí incorreram no crime de Término, cuja pena é a extração do clitóris.
        - Eu já imaginava que elas não haviam feito nada para o senhor. Conversei com elas e percebi que são moças doces e especiais; e mesmo que elas tivessem feito algum mal ao senhor, nada justificaria sua atitude brutal e desumana.
        - Doces e especiais... Vocês mulheres são muito engraçadas! Vivem falando mal umas das outras, estão sempre se comparando. Vocês se odeiam, contudo quando uma mulher sofre, as demais tomam as dores de sua semelhante. Pura hipocrisia!!!
        - Devo lembrar que o senhor está sendo processado. Seu desrespeito só servirá para lhe prejudicar.
        - Perdão, doutora, mas eu não suporto ver injustiça!
        - Ora essa, logo você querendo vir falar de justiça?
        - E por que não? Ouso dizer que entendo mais disso que vocês chamam de justiça do que a doutora juíza.
        - Ah é?
        - Perfeitamente. Analise comigo: quando eu for condenado, receberei uma pena privativa de liberdade, certo?
        - Se o senhor for condenado, pode apostar.
        - Tal medida evitará que eu arranque clitóris por aí. Muito bem. A doutora realmente acha que a justiça nesse caso será feita?
        - Com certeza.
        - Acha isso porque é o que está na lei, correto? Se a lei previsse pena de açoite você também acharia que a justiça seria feita. Percebo que os juízes mais parecem máquinas do que juristas. Agindo dessa forma, a doutora será uma eterna escrava do texto legal e jamais criará algo. Sabe por que a justiça não será feita? Por que ainda terei minha glande.
        - O senhor só pode estar brincando... Pensa o senhor estar sendo julgado com base no código de Hamurabi? O “olho por olho, dente por dente” é barbárie, e felizmente foi abolido.
        - Aí que a doutora se engana... O olho por olho, dente por dente é a expressão genuína da vossa justiça, que significa nada mais do que “dar a cada um o que é seu”. Matou? Que morra! Arrancou clitóris? Que tua glande seja cortada! O único problema do código de Hamurabi se encontra no que toca a personalidade das penas. A pena não pode passar da pessoa do condenado (idéia da qual até mesmo eu sou adepto), porém, em algumas situações previstas nesse antigo código, esse princípio era completamente desrespeitado. Cito como exemplo a hipótese do sujeito que mata o filho de A. Pela lei de Hamurabi quem pagava o pato, com a própria vida, era o coitado do filho do assassino. Voltando ao meu caso, a pena não passaria da pessoa do condenado, porquanto o crime é meu e a glande também. Logo, não haveria problema em cortar minha glande. Assim e só assim a vossa justiça seria feita.
        - Vejo que o senhor desconhece os direitos e garantias fundamentais do ser humano. Essa pena absurda defendida pelo senhor não está prevista na legislação brasileira, logo, não poderia ser aplicada. E mais, mesmo se houvesse tal pena eu jamais a aplicaria, por se tratar de uma pena cruel, que fere a dignidade da pessoa humana. Só há uma coisa que eu não compreendo: você parece ser adepto do “olho por olho, dente por dente”, todavia, pelo que me consta, suas ex-namoradas não arrancaram parte alguma do seu corpo. Por que mesmo assim o senhor resolveu penalizá-las, mutilando seus órgãos sexuais?
        - A doutora se engana completamente. Não defendo o “olho por olho, dente por dente”, tampouco o “dar a cada um o que é seu”. Apenas entendo mais sobre justiça do que todos vocês que agora me acusam e me julgam. Meu conceito de justiça é outro. Jamais aceitaria um conceito tão fraco e doentio quanto “dar a cada um o que é seu”. Pior que esse, só o “dar a cada um igualmente”, como quiseram alguns insanos. Senão vejamos o absurdo do seu conceito de justiça: Suponha que sou um gigante de 3 metros e quero me refrescar. Cruzo com uma pessoa normal que está tomando um sorvete. Quero aquele sorvete para mim. E agora, o que fazer? Devo respeitar sua propriedade e nada fazer, pois “a cada um o que é seu”? Jamais! Longe de ser alguém justo e virtuoso, se eu, o gigante, seguisse meu rumo sem pegar o sorvete do homem, estaria sendo um verdadeiro idiota. Isso porque eu quero aquele sorvete e posso pegá-lo, pois sou um gigante. Sou superior aos homens normais! E se eu quero e posso, de nada vale o restante. Portanto, a verdadeira justiça diz que devo pegar à força o sorvete. Minha definição de justiça é “dar a cada um conforme a minha vontade”.
- Agora não obstante a criação de leis, o senhor também criou um novo conceito de justiça! Além de legislador és filósofo!
- Crio porque quero e porque posso criar.
- Já chega! Vamos parar com essa palhaçada! A culpabilidade do réu é enorme, pois é muito reprovável o fato do mesmo ter cortado o clitóris de suas ex-namoradas. Quanto aos antecedentes, eles são favoráveis, porque o réu não possui condenação anterior. A conduta social do réu é a pior possível. Ele não respeita o próximo e não sabe viver em sociedade. Sua personalidade também está a seu desfavor, já que o réu é frio e não demonstra estar arrependido. O motivo é o mais fútil que se pode imaginar: o réu não se conformou com o término dos relacionamentos. As circunstâncias não são a ele favoráveis, na medida em que o réu com o emprego de uma tesoura mutilou suas ex-namoradas. As conseqüências do crime também são desfavoráveis a ele, pois o crime gerou dano permanente nas vítimas. Por fim, quanto ao comportamento das vítimas, estas nada fizeram de mal para receber lesões corporais, o que é negativo para o réu. Por todo o exposto, com fulcro apenas na verdadeira justiça, condeno o monstro Egon Adamais a uma pena de extração da glande por tesoura, ciente das conseqüências que poderão acontecer a mim pela aplicação de uma pena sine legem. Faço isso porque quero e porque posso. Neste momento, dou início à fase de execução.
       



FIM