quarta-feira, 19 de outubro de 2011

MONA LISA DESPREZADA




Vincenzo Peruggia saiu nervosíssimo do Louvre. As coisas nunca saem como planejamos. Seu plano de furtar a Mona Lisa de Leonardo da Vinci era perfeito. Tal plano era um esquema complexo que incluía uso de alta tecnologia e alta propina. Porém, um único erro estragou tudo: Uma câmera recentemente instalada no museu foi ignorada por Peruggia. Segundos após deixar o museu em posse da obra, ele percebeu que estava sendo perseguido por vigias de lá. Os vigias estavam longe, porém a polícia já devia estar sabendo do ocorrido e logo mais estaria em seu encalço.
O italiano tentou se acalmar. Enquanto fugia, pensou que não haveria problemas caso fosse pego. O povo da Itália entenderia seu gesto patriótico, afinal a Mona Lisa é da Itália, e para lá deve retornar! O verdadeiro ladrão chama-se Napoleão Bonaparte! Porém, tal pensamento foi interrompido por outro mais intenso: A polícia que perseguia ele não era a italiana, mas sim a francesa. O italiano temeu receber da polícia uma saraivada de tiros e morrer jovem. Peruggia começou a ter tonturas devido ao nervosismo, e, movido pelo desespero, resolveu se livrar da Mona Lisa, jogando a obra num saco de lixo da rua.
No dia seguinte, Peruggia foi preso, e com muito orgulho confessou seu ato heróico (crime para alguns). Durante sua confissão, ele aproveitou para filosofar, dizendo que a Mona Lisa é a prova de que o Homem é um artista superior a Deus. Seu argumento foi curioso: Para ele, bastava observar a preferência dos turistas. Se Deus fosse o maior artista, o Brasil com suas belezas naturais (criações divinas) seria o país mais visitado pelos turistas; contudo, estes preferem visitar a França por causa do Louvre, por causa da Mona Lisa (criação do Homem). Só para adiantar, o italiano foi realmente considerado herói em seu país e ficou apenas alguns meses preso. Porém, é preciso mencionar algo incrível que aconteceu nesse mesmo dia em que Peruggia foi pego pelos policiais franceses. Candide, o mendigo das redondezas estava andando pelas ruas bastante bêbado. Ele vinha resmungando da vida quando começou a revirar um lixo em busca de algo de valor. Naquele saco ele só havia encontrado um pneu de bicicleta furado, umas caixas vazias, jornais e um quadro. Descontente com sua má sorte, ele arremessou longe o pneu furado, descontando em seguida sua raiva no quadro com chutes e pisões. Um transeunte francês viu tudo e reconheceu o quadro como sendo a autêntica Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, obra recentemente furtada, cujo paradeiro era desconhecido. O homem tentou em vão encaixar os pedaços do quadro, desamassar a tela e juntá-la com o que restou da moldura. Nada podia ser feito, o quadro estava completamente destruído. Aquele homem havia testemunhado o brutal assassinato de Mona Lisa. Nunca mais La Gioconda entreteria as pessoas com seu enigmático sorriso. Não havia jeito, era o fim. O homem então se deu conta de sua impotência e chorou muito. Chorou tanto que era como se a humanidade toda ali chorasse. O mendigo ficou sem entender o motivo do choro e de todo o esforço do homem em recuperar aquele quadro. Como um bom francês que era, o transeunte foi tomado por um pensamento profundo: Quantas Mona Lisas que cruzam nossas vidas não são por nós desprezadas pelo fato de ignorarmos o real valor que elas possuem? 



FIM










sexta-feira, 5 de agosto de 2011

VERO



         Meu nome é Vero e essa é a minha história. A história de um homem que perdeu tudo por ser correto demais. Recebi de meus pais uma educação religiosa e desde pequeno buscava estar sempre ao lado da virtude. Além da bíblia, gostava muito dos livros de ética. Aprendi muito com o povo grego, que tanto valorizou esse tema. Considero-me uma jóia rara, pois as pessoas ao meu redor não dão o mínimo valor à ética. Tudo indica que o império grego acabou e a ética sucumbiu junto.
         Enfim, eu era o espelho do que é bom e correto, não vendo concorrentes em nenhum dos meus próximos. Porém, após ler e refletir bastante, descobri algo que muito me incomodou. Todos sabemos que o certo é nunca faltar com a verdade, porém, percebi que o homem é um ser falso por natureza e eu naquele momento era falso também. Isso porque não nos comunicamos por pensamento, expondo diretamente o que de fato a mente pensou. Na verdade fomos criados com uma espécie de trava que nos faz selecionar quais pensamentos devemos expor por meio da fala. Para mim ficou claro que eu deveria destravar o mecanismo, por se tratar da mais pura falsidade. Eu queria ser um poço de virtude, não podia cometer o tão temido “pecado por pensamento”.
         Após essa descoberta, sentia dor em minha alma quando pensava em dizer “não” mas era obrigado a dizer “sim” seja para parecer politicamente correto ou agradar com vãs mentiras os demais. É o que sucedia quando minha esposa perguntava “Está tudo bem, amor?”. Respondia que sim, mas queria mesmo ser sincero e poder responder “Não, tá tudo uma merda! Você enche meu saco o dia todo! E para de me chamar de amor sempre. É brega.”. Ah, como eu gostaria de expor meu real pensamento! É pena que a pseudo-polidez falava mais alto. Eu precisava dar um basta nisso.
         Um dia aconteceu algo que mudaria minha vida: meu único filho, uma criança alegre e esperta, veio até a mim com um papel e perguntou: “Papai, o que você acha do meu desenho?”. Olhei com curiosidade o desenho. Após, olhei com pena para o garoto. O desenho era horrível. A beleza está na proporção e aquilo era o borrão mais desproporcional já visto pelos olhos humanos. Não sabia se era uma árvore ou um helicóptero. Talvez fosse uma tartaruga. Como se eu estivesse funcionando no automático, já me preparava para responder “Está lindo, meu filho.”, porquanto sempre respondi assim em situações semelhantes. Mas dessa vez não. Se eu respondesse que o desenho estava bonito, meu filho certamente ficaria feliz. Mas será que eu ficaria satisfeito faltando com a verdade? O “turning point” havia chegado. Após hesitar por alguns segundos, respondi confiante: “Quer saber, meu filho? Seu desenho é horroroso.”. O garoto arregalou os olhos e começou a fazer cara de choro, mas não dei a mínima. Tratava-se de uma virada em minha vida. Estava vencendo uma limitação do ser humano e sentia pela primeira vez o gosto da liberdade. A sensação experimentada era tão boa que me empolguei e disse: “Não adianta fazer cara de choro, a verdade é que seu desenho é péssimo. Não sei se é uma tartaruga, árvore ou helicóptero.”. O menino desabou num choro ensurdecedor e com aquela voz de criança em prantos, disse: “É você no desenho, papai.”. Com seus dedinhos miúdos ele apontou para três bolinhas no desenho explicando que eram meus olhos e boca. Fato curioso, eu não tinha nariz. Ele ainda falou: “Não está vendo?”. Incrível, estava claro para ele que era seu pai no desenho. Errado estava eu por não ser capaz de interpretar corretamente. Meu filho ficou arrasado com a história do desenho. Percebi que seguir o caminho correto seria penoso.
         Contarei agora outro acontecimento relativo a minha transformação, digo, evolução. Estava eu andando calmamente na rua em direção a minha casa quando cruzei com três negões capoeiristas que faziam uma apresentação dessa luta. Se os leitores pensam que capoeira não é luta e sim dança ou jogo, esperem até ouvir esse relato inteiro. Um deles tentou apresentar um número no qual deveria correr e em seguida pular um carro dando um salto mortal. O negão errou feio e caiu em cima do carro amassando o teto do veículo e disparando o alarme. Naquela hora tive um pensamento preconceituoso do qual até hoje me arrependo, porém como aqui a lei é “pensei, falei”, não escondi o que havia pensado e disse: “Tinha que ser preto”. O negão, que estava irado por ter errado seu número ficou possuído ao ouvir aquilo. Bufando, ele disse: “Mermão, ta de caô?”. Bastante incomodado, respondi: “Caô? E eu lá sou de mentir?”. Acreditando poder me salvar daquela enrascada, completei: “Veja bem, todos os brancos falam isso quando estão entre eles. Você vai ficar chateado comigo porque eu tive a decência e a coragem de falar o que todos os falsos falam pelas costas?”. Mal terminei essa frase e o negão me acertou um martelo cruzado na cara. Sentindo aquela dor pude entender o porquê de tal nome. O golpe me deixou meio tonto, e talvez por isso me imaginei numa luta de vale-tudo. Podia ouvir a torcida gritar e ver os holofotes me iluminando. Foi uma sensação maravilhosa. Até que tive a brilhante idéia de tentar aplicar um golpe de jiu-jitsu no negão. Não sei nada de jiu-jitsu, mas pensei “assisto as lutas, isso deve bastar”. Tentei levar um deles ao chão e já me imaginava vitorioso, aplicando um armlock e quebrando o braço dele ou uma guilhotina fazendo-o desmaiar (isso porque o jiu-jitsu é uma arte suave). Na minha visão fantasiosa tudo dava certo, porém na realidade pude aprender da pior maneira possível que o jiu-jitsu é ineficaz contra três negões capoeiristas. Enquanto me atracava com um, os outros dois de maldade chutavam as minhas bolas.
         Com um olho roxo, boca sangrando e membro fálico espatifado saí daquele inferno. Fiquei tão traumatizado com essa experiência que hoje em dia saio correndo quando cruzo com um negro, seja adulto ou criança. Eles me olham sem entender nada. Já bem perto de casa lembro que encontrei um mendigo cambaleante vestindo trapos e cheirando muito mal. Aquele ser grotesco ousou se aproximar, me tocou no ombro, coisa que muito me irritou e disse: “Senhor, peço humildemente dinheiro por caridade. Qualquer centavo serve. Tenho fome.”. Qualquer pessoa não-caridosa nessa situação responderia “Hoje ta brabo.”. Eu, espírito livre e honesto, disse: “Vai trabalhar, vagabundo!”. Ele por sua vez disse: “Vou é te furar, filho da puta!”. Eu então falei: “Vai nada. Todo desnutrido, nem agüenta o peso de uma faca. E, por favor, não usa mais essa colônia francesa à base de álcool e mijo, falou? Fede muito.”. Deixei ele me xingando e saí de lá orgulhoso de mim mesmo. A verdade dói, porém eu sabia que guardá-la dói ainda mais.
         Eu já estava vendo que o próximo alvo das minhas verdades seria minha esposa. Minha esposa tinha uma mania chata de perguntar se eu achava feia alguma parte de seu corpo. Isso me dava nos nervos. Se ela não vai gostar de saber que sim, por que pergunta? Até que um dia ela fez a maldita pergunta: “Amor, existe alguma parte do meu corpo que você não gosta?”. Sempre respondia para alegria dela “Gosto de tudo, você é toda linda”. Mas dessa vez não. Olhando nos seus olhos, respondi: “Não gosto dos seus seios murchos. Lembram a uva passa.”. Não disse aquilo para atacá-la, apenas fui sincero e expus essa que sempre foi minha verdadeira opinião. Ela ficou boquiaberta e perguntou: “Você acha mesmo isso?”. Respondi: “Claro. E eu lá sou de mentir?”. Parece que meu lema “pensei, falei” não agradou minha esposa. Ela pediu o divórcio no mesmo dia. Meu filho só faltou soltar fogos quando soube dessa notícia. Um mês depois ele já estava morando na casa da mãe.
         E aconteceu que meus amigos começaram a se afastar de mim. Minhas verdades chocavam. Eu não mais falava o que eles queriam ouvir. Seus vícios eu denunciava de pronto. Nem liguei para esse afastamento, eles eram um bando de falsos, como todos que me cercavam. Perdi tudo, menos o emprego e a família. Mas eu perderia também esses dois, um de cada vez. Fui demitido do meu escritório por falar ao meu chefe que ele era um babaca. Desempregado, passei a morar na casa dos meus pais. Eles aguentaram durante anos minhas sinceras opiniões negativas sobre a aparência e o jeito deles, sabor da comida, entre outros. Quando chegaram no limite me colocaram num asilo, onde estou no momento. Gosto desse asilo porque ele é branquinho, como o meu caráter. É um lugar puro como o céu, e sei que só estou aqui porque trilhei a senda da retidão. Não pensem que mudei ou me arrependi. Até hoje com meus cabelos brancos defendo a verdade. Até hoje apanho também. Nesse asilo mora um velho alto e forte que nunca toma sua medicação. As enfermeiras já sabem que eu só falo a verdade e, querendo saber se o velho tomou o remédio perguntam pra mim que sempre respondo “Ele não tomou o remédio” . O velho fica enfurecido com o alcaguete aqui e em duas ocasiões já me bateu. Mas eu lá sou de mentir?
        
        




FIM

domingo, 31 de julho de 2011

FROM THE NEW WORLD

Não posso afirmar que conheci os EUA, país maior que o gigante Brasil. Porém, o pouco que conheci já é o suficiente para um ser observador como eu tecer comentários sobre aquele lugar, seu povo e sua cultura (ou falta de cultura, como queiram).
Ruas limpas, estradas sem um buraco... É, os EUA têm suas qualidades. Diferente do Brasil, as coisas realmente funcionam lá. Para os americanos, trabalho é virtude, o que espanta um brasileiro carioca, acostumado a ver o trabalho como coisa de otário. Percebi que deveria me comportar. Estava num país sério.
Observando os americanos pude aprender como se comporta um povo educado: Fala pouco, sendo esse pouco em volume baixo; não admite que toquem nele (uma americana chamou o segurança porque uma argentina tocou em seu ombro numa discussão. A argentina, que somente tocou na americana para avisar que aquele assento era dela, foi obrigada pelo segurança a pedir desculpas); detesta que estranhos conversem e brinquem com seus filhos. Os americanos têm uma certa aversão a seres humanos. Em geral preferem robôs. Quanto à aversão, esta se dá principalmente em relação a estrangeiros latinos e muçulmanos. As muçulmanas causam espanto aos americanos por causa de suas roupas. Choque de cultura. Se eu fosse muçulmano eu morreria de rir daquelas roupas americanas, outdoors ambulantes sem criatividade, escrito “Abercrombie”, “Hollister” ou “Aeropostale”.
Observando os brasileiros “teens” nos parques da Disney pude aprender como se comporta um povo mal educado: Gritam e cantam sem parar; sentam no chão, estrategicamente situados nas passagens principais. Espanto, desprezo e pena foi o que pude ler nos olhares dos americanos que observavam os teens brasileiros. Nunca pensei que nossa economia fosse capaz de levar tanto fedelho pra Disney... Os brasileiros são a grande maioria nos parques e eu ia morrer sem saber disso. Até que o capitalismo não é tão mal nesse ponto. Dizem que ele só beneficia poucos, mas um verdadeiro mar de brasileiros, de diversos estados, tem condições de viajar e conhecer o melhor parque de diversões do mundo. Mais do que nunca estou convencido de que fui enganado: o Brasil não é pobre, é rico.
Que povo bonito! Nos EUA você chuta uma moita e aparece uma família loira dos olhos azuis, rosto perfeito, nariz fino, cabelos brilhosos, boca desenhada. É muito fácil fazer filho bonito lá: Uma loira perfeita casa com um loiro bonito e obviamente terão um filho galã. Repita o processo milhões de vezes e voilà, temos um povo bonito. Pena que depois esse filho bonito vai ficar obeso por causa da tão saudável alimentação yankee. Nos parques pude ver algumas americanas loiras maravilhosas com seus 20 e poucos anos fazendo a limpeza. É a primeira vez que vejo faxineiras com cara e corpo de modelo. Lá nos EUA o artificial é celebrado: Comida artificial, montanhas artificiais, lagos artificiais... Parece que eles esnobam o natural. É como se dissessem pra mãe natureza: “Podemos fazer igual ou melhor”. Oh, como eles se enganam! Mas se tem uma coisa que é natural é o cabelo das mulheres. Nada de tinta, brasileiras! É tudo natural (me refiro ao cabelo, não aos seios). Aqui no Brasil é mais complicado fazer filho bonito, porque somos muito misturados etnicamente falando. É necessário que a mistura dê certo, o que na maioria das vezes não ocorre. Mas quando dá certo... Vejamos o meu caso, por exemplo: Mistura de portugueses bonitos, espanhóis bonitos, austríacos bonitos, índios bonitos e quem sabe algum negão bonito, porque meu cabelo tem que ter uma origem. Posso me resumir em uma frase: “Hugo, uma mistura que deu certo”.
A educação que os pais americanos dão aos seus filhos é bem rigorosa. Não deixam passar uma “malcriação”, repreendendo todas com bastante severidade. No aeroporto, vi uma garotinha americana de 4 ou 5 anos. A menina era o capeta, confesso. Porém, fiquei enojado quando vi que a mochila dela era um cachorrinho fofo com um rabo enorme. O pai segurava o rabo do cachorro limitando os movimentos da capetinha. Mostrei pra minha mãe aquela cena grotesca e qual não foi minha surpresa quando ela respondeu: “Nossa, que mochila fofa!”. Mulheres... Aquilo era uma coleira!!! A menina estava sendo tratada como bicho, e o cachorro fofo estava ali apenas para enganar trouxa (desculpa, mãe) porquanto pegaria mal se o pai usasse efetivamente uma coleira.
Falemos acerca da comida. Você, brasileiro, que agora me lê (ainda não fiz sucesso mundial) come bem, muito bem, e talvez não se dê conta disso. A comida americana é junk. Fato curioso, os reis da junk food deveriam ser os melhores nisso, porém, acreditem, a nossa junk food é melhor! O hambúrguer americano lembra a água: é insípido e inodoro. O povo americano não manipula as ervas e demais temperos como os brasileiros. Os molhos são sempre os mesmos: barbecue, ranch, blue chesse, pimenta, pimenta e por fim, pimenta. A regra lá é pimenta em tudo, até no leite (confesso que nesse caso a culpa foi do meu irmãozinho que colocou pimenta no leite achando que fosse açúcar). Não pude conter o riso quando vi um moleque gorducho de 6 anos mais ou menos comendo uma imensa coxa de peru (turkey leg) com a mão. Como os pais permitem isso? Alimentação lá é um atentado contra a dignidade da pessoa humana.
         No tocante ao capitalismo, pude confirmar minha opinião, exposta em outro texto meu: Para o americano, só o lucro interessa. Parece que tudo naquele país é pretexto para o lucro, só está ali tendo em vista o dinheiro. Não vou dizer que é um capitalismo selvagem, porque isso é papo de comunista. Diria que é um capitalismo feroz como eu não conhecia em meu país. Observei sua técnica profissional: espadas de brinquedo sendo vendidas nas lojinhas antes de começar o show. Se você não for até lá comprar, sem problemas, a espada vai até você. Quando o show começa, vendedores anunciam a mesma espada de brinquedo que vendia lá fora. Você é vencido pelo cansaço e compra a maldita espada. No avião eu estava lendo “O nome da rosa” (um romance perfeito). Um americano no meu lado também lia um livro. Pensei: “Aposto que é um livro super capitalista, do tipo ‘como enriquecer em 30 dias’ ou ‘Lucrar é a lei’”. Depois pensei: “que preconceito meu, pode ser muito bem ‘o pequeno príncipe’”. Quando finalmente ele virou a capa do livro pude ler seu título: “A evolução do toyotismo”. O ser humano é menos preconceituoso do que dizem.
         Os negões americanos são em geral mais bonitos, mais altos e mais estilosos que os nossos negros. Usam roupas dois tamanhos acima do seu tamanho normal, chinelo estilo raider com meia e alguns exibem com orgulho seus dentes de ouro. Foi a primeira vez que eu comemorei o fato de não possuir ouro.  O jeito de falar deles também chama a atenção: todo negro americano é um rapper em potencial. Quando a atendente do Mc Donald’s falou “Anything eeelsiiir?” quase respondi “minha filha, tira essa roupa do Mc Donald’s e vai cantar!”. Fiz bem em não falar, provavelmente ela responderia “Damn, you pervert!”. Também percebi que os negros de lá tem a autoestima maior que os daqui. Se eu fosse negro e pudesse escolher aonde morar, escolheria os EUA de hoje. Eu andaria exibindo meus cordões de prata, tênis de basquete e carros de luxo. Quando digo de luxo, não me refiro ao Corolla, que lá nos EUA corresponde ao nosso querido Palio.
         Passei um mês quase naquele país e já estava me acostumando com sua organização. Mas era hora de voltar ao Brasil. Quando o avião começou as manobras de pouso, que contraste: casas feias, uma em cima da outra, uma bagunça. Era o Rio de Janeiro. Meu Deus, como eu amo essa bagunça!





quarta-feira, 6 de julho de 2011

XADREZ ROMÂNTICO








Sou bastante ambicioso
Quero a linda dama ter
Mas estou bem receoso
Pouco tenho a oferecer

Sem dinheiro e sem transporte
Resta a criatividade
Só com ela e muita sorte
Ganho a dama da cidade

Parto para o centro já
Oportunidades viso
Desempregado não dá
Dinheiro é o que mais preciso

Um serviço de peão
Foi tudo o que consegui
Já posso entrar em ação
Convidá-la pra sair

Assim que pude ataquei
Ótima idéia me veio
Meu velho cavalo usei
Chamei-a para um passeio

Completamente ignorado
Me entristeci por inteiro
Todavia isso é passado
Agora o lance é certeiro

Fui chamar sete peões
Companheiros de trabalho
Fizeram pra dama sons
Serenata um ato falho

Que som feio e dissonante
Disse a dama com desdém
Porém seguirei adiante
Desistir não me convém

Para provar destemor
Escalei alta torre branca
A dama não deu valor
E daí disse bem franca

Estava desanimando
Esperança abalada
Fui falar com o Fernando
Um bispo meu camarada

Ele disse Tenha fé
Tudo vai se ajeitar
Se o rei Deus assim quiser
A dama te amará

Parece que o rei não quis
Que defesa intransponível
Outro lance ruim fiz
Piorar é impossível

Serenata fracassou
Me valho do grande roque
O som pesado ela achou
Guitarra não quer que eu toque

Até que o peão sofrido
En passant ele avançou
Consegui ser promovido!
Meu salário aumentou!

E pela primeira vez
Mexi com a minha dama
Aceitou Jogar xadrez
Beijo! Mate! Fim do drama!







sexta-feira, 10 de junho de 2011

DICIONÁRIO DO DIABO (ADENDO)

ADENDO, s. Melhoramentos numa obra fraca.

APÊNDICE, s. Órgão do corpo humano cuja função é contrair apendicite.

BISPO (XADREZ), s. Peça de xadrez que quando apronta pode fugir pelas diagonais. A abertura na qual o bispo branco come o peãozinho preto se chama “ataque inter-racial do bispo pedófilo”.

BONDADE, s. Ingenuidade. Segundo alguns existem razões para acreditar, pois os bons são maioria. É verdade, os bons são maioria, porém os maus são mais poderosos.

BULLYING, s. O mal do século. Sozinho é capaz de gerar assassinos em série, peste e fome. O bullying sempre existiu, contudo só foi levado a sério no Brasil após ganhar um nome em inglês. Recente pesquisa comprovou que os praticantes de bullying torcem para o Jerry; quem sofreu bullying torce para o Tom.

CEBOLA, s. O mais vingativo dos vegetais. Quando cortada, a cebola solta um gás que em contato com a água do olho forma ácido sulfúrico. Sim, é realmente o sulfúrico. Eu disse que era o mais vingativo...

DESAPARECIMENTO, s. Brilhante teoria criada pelo filósofo Hugo Bickel quando tinha nove anos. Segundo este douto, as pessoas pedantes e sem graça na verdade não existem, só estão entre nós para fazer número e desaparecem quando saem do nosso raio de visão. O diretor do filme matrix se baseou nessa teoria sem dar um centavo ao criador dela.

DIABO, s. Ser maligno que não possui relação alguma com esse dicionário.

DICIONÁRIO (2), s. Pai dos burros e dos trapaceiros na adedanha.

DODECAFONISMO, s. Prova incontestável de que a igualdade é ruim até no campo musical.

ESPOSA, s. Mulher com a qual casamos, apenas porque era a nossa namorada na época de casar.

FÓSFORO, s. Palito de dente dos russos. Disse Deus: “Fiat lux”. E houve fósforo.

GAMBITO DO REI, s. Pequeno animal de estimação do rei, famoso por seu mau cheiro.

GÊMEO, s. A forma que Deus inventou para economizar moldes de rostos. Uma generosidade divina quando são bonitos; maldição quando feios.

HETEROSSEXUAL, adj. Pior xingamento que um cabra-macho-analfabeto-funcional pode receber.

KOLOB, s. Estrela onde mora Deus. Em que lugar fica ninguém sabe.

MATE, s. Bebida feita com erva do mesmo nome. Cariocas adoram tomar mate, por isso são péssimos enxadristas.

PERFUME, s. Aroma agradável. As mulheres gastam uma fortuna com perfumes não obstante o melhor deles, o Odor di femmina, ser totalmente grátis.

SEMÁFORO, s. Uma bela oportunidade de emprego na Coréia do Norte.

SEPTICEMIA, s. Para o estudante de Direito, um desvio de septo.

TRAIÇÃO, s. Segundo moderna e eloqüente concepção, traição é traição.

VINGANÇA, s. Ver JUSTIÇA.

ZICA, s. Pereba, pururuca. Enfim, uma palavra qualquer com "Z" pra fechar bonito.










terça-feira, 31 de maio de 2011

ÂNGELO NA COVA DOS LEÕES




A Bíblia não menciona seu nome. Mas saibam todos que seu nome era Ângelo. A Babilônia jamais havia visto uma criança tão bela. Seus cabelos ondulados e seu semblante puro ofuscavam o brilho dos anjos mais divinais. Seu pai, de nome Ajevni, era um renomado príncipe do rei Dario, o Medo. Como vivia ocupado, Ajevni passava pouco tempo com o filho. A mãe de Ângelo, Tereza, era quem o criava, sempre com muito amor e dedicação. Ângelo era um menino sonhador. Ele desejava melhorar o mundo, acabando com a injustiça, as guerras e o mal.  
Um dia, enquanto brincava de correr pela casa, Ângelo foi surpreendido por uma terrível cena: quatro soldados do Rei Dario invadiram sua casa e disseram que, por causa de Ajevni, toda a família dele deveria ser lançada na cova dos leões. Mediante violência pai, mãe e filho foram levados como se não possuíssem valor algum.
No caminho, Ângelo foi ouvindo a conversa dos soldados. Ele pôde compreender que um inocente havia sido colocado na cova dos leões, sendo certo que seu pai, Ajevni, era um dos culpados dessa injustiça (felizmente, Deus havia salvado o inocente tapando a boca de cada leão da cova). O menino com apenas uma década de vida não era capaz de entender essa justiça que punia filho e mãe como se culpados fossem.
Chegando no palácio do rei Dario, Ângelo viu que havia outras famílias ali. As pessoas estavam muito assustadas e pediam misericórdia ao rei. Dentre elas havia uma criança que chorava copiosamente. Ângelo percebeu que se tratava de seu amigo Nabuco, um filho de príncipe, assim como ele.
O rei não se sensibilizou e ordenou aos soldados que levassem as famílias para serem lançadas na cova dos leões. As famílias, em prantos, entraram na cova e despedidas emocionadas começaram a se dar ali. Foi trazida uma pedra e foi posta sobre a boca da cova. Após, o rei dirigiu-se ao seu palácio. Ali ocorreu um banquete animado com muita música. Ao final, o rei dormiu tranquilamente com sono profundo. E aconteceu que começou a sonhar. Sonhou que conversava com Deus e este lhe dizia: “És justo, rei Dario! És justo como Eu sou!”.
Enquanto o rei sonhava, os prisioneiros na cova dos leões viviam um pesadelo. Eles ainda não haviam chegado ao fundo da cova quando os leões começaram a se apoderar deles. Com lágrimas nos olhos, Ângelo viu seu amigo Nabuco ser morto por um leão faminto. A fera pulou em direção ao menino, derrubando ele no chão. Nabuco foi facilmente imobilizado pelo pesado animal. Sem dó, o leão começou a mordê-lo. Os gritos de dor e desespero daquela criança fariam chorar até os homens mais frios desse mundo. Quando Ângelo se virou, uma cena ainda pior o aguardava: a morte de seus pais, na sua frente, de forma brutal. O menino quase desmaiou ao contemplar aquele horror. Quando os pais morreram, os leões começaram a brigar entre si disputando a carne fresca do casal. Naquele momento quase todos que entraram na cova já estavam mortos. Foi quando Ângelo pensou: “Por que Deus salvou o último prisioneiro que aqui se encontrava e permitiu que pessoas tão inocentes quanto ele fossem destroçadas pelos leões?”. Ângelo não obteve resposta. Após esse pensamento, o menino puro e inocente foi atacado por um feroz leão. Todos os seus ossos foram completamente esmigalhados.
Pela manhã o rei se levantou e foi sem pressa à cova dos leões. E, chegando-se à cova, viu que todos haviam sido mortos pelos leões, porquanto Deus não havia tapado a boca das feras. E o rei muito se alegrou disso.
Esta é uma história real que aconteceu numa cova real. Muitas pessoas em viagem ao atual Iraque costumam visitar a famosa cova dos leões, palco da tragédia de Ângelo. Nela ainda podemos ler na parede a seguinte frase escrita na época pelo próprio rei Dario: A PAZ VOS SEJA MULTIPLICADA.

                                                 
                                               FIM

segunda-feira, 23 de maio de 2011

PUNHAL 2 (HARAKIRI)




ADEUS
DIGO ADEUS
Ó COMPANHEIROS MEUS
A MINHA DESPEDIDA
SE DÁ POR POESIA
COMO MANDA O BUSHIDO
 CÓDIGO BEM ANTIGO
POIS SAMURAI EU SOU
E DESONRADO ESTOU
A PEDRA EU ATIREI
PORÉM TAMBÉM PEQUEI
QUANDO A FLOR DO JARDIM
DO PRÓXIMO EU COLHI
NÃO PUDE VISLUMBRAR
A TRAVE EM MEU OLHAR
PORÉM FUI BEM LIGEIRO
EM APONTAR O ARGUEIRO
NO OLHO DE MEU IRMÃO
MORTO POR MINHA MÃO
O KAISHAKU DISPENSO
QUERO UM MORRER BEM LENTO
SÓ ASSIM EU PODEREI
CUMPRIR A MINHA LEI
TERMINO SEM DEMORA
POIS É CHEGADA A HORA
VESTIDO COM MANTO BRANCO HUMILDEMENTE ME AJOELHO
MEU SEMBLANTE CORAJOSO POSSO VER NAQUELE ESPELHO
COM O MESMO PUNHAL SUJO FAÇO EM MIM UM CORTE EM CRUZ
PARA ME PURIFICAR EU SOFRO AS DORES DE JESUS
HARAKIRI SEPPUKU
HARAKIRI SEPULCRO
HARAKIRI SÊ PURO
SÊ PURO
PURO


segunda-feira, 16 de maio de 2011

O JULGAMENTO DE ADÃO, EVA E SERPENTE

Em geral, as religiões são contrárias ao saber, e isso ocorre porque elas sabem que o saber é contrário à religião. Tudo isso está de acordo com a Bíblia, pois é notório o que sucedeu com o primeiro casal de filósofos da humanidade na sua busca pelo conhecimento. Adão e Eva são processados pelo crime de ingestão de fruto proibido (fruto do conhecimento do bem e do mal para alguns; maçã para outros). A serpente é processada pelo crime de instigação à ingestão de fruto proibido. O processo é inquisitorial, porquanto Deus, como se não bastasse ser o legislador, acumula as funções de acusador e juiz. Neste, que foi o primeiro julgamento da história da humanidade, Adão e Eva agem em causa própria (Deus não havia criado até aquele momento nenhum advogado). Em sua defesa, Adão delata Eva e imputa somente a ela a responsabilidade penal. Disse ele:

“A mulher que me deste por companheira me deu da árvore e comi”.

Eva, por sua vez, sustentou o erro de tipo, culpando exclusivamente a serpente:

“A serpente me enganou, e eu comi.”

Percebam como o fruto do conhecimento fez efeito instantâneo, pois o casal soube criar excelentes teses defensivas, como se criminalistas experientes fossem. Todavia, infelizmente elas não foram capazes de convencer o implacável juiz. Transcrevo agora trechos da sentença condenatória lavrada pelo Excelentíssimo Juiz Deus e publicada em Gênesis:

Serpente: “Porquanto fizeste isso, maldita serás mais que toda besta, e mais que todos os animais do campo: sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida. E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente: esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.”

Eva: “Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.”

Adão: “Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela: maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos e cardos também te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado: porquanto és pó, e em pó te tornarás.”

Ver um animal sendo processado e condenado pela prática de um crime é algo que me faz rir. Porém, mais engraçado é constatar que essa era uma prática comum na Idade Média. Nessa época, os porcos eram os bichos que mais sentavam no banco dos réus. Além deles, bois, cachorros, ratos, lobos, cobras e até abelhas já sofreram processos criminais. Tudo indica que a Bíblia é a principal influência desse entendimento bisonho, pois este livro considera que os animais são seres moralmente responsáveis por seus atos, senão vejamos em Êxodo 21:28: “E se algum boi escornear homem ou mulher, que morra, o boi será apedrejado certamente, e a sua carne se não comerá; mas o dono do boi será absolvido”.
Volvendo ao caso em tela, os três sofreram penas cruéis, que ferem a dignidade da pessoa humana e a dignidade da pessoa animal. Entretanto, como se não bastasse, o casal foi punido ainda com a pena de desterro: foram expulsos do jardim do Éden. E eles realmente sofreram tudo isso, pois a sentença era irrecorrível. Se houvesse a possibilidade de interpor recursos, um bom argumento para a absolvição dos réus seria alegar que essas penas não estavam previstas em lugar algum. Porém, pensando melhor, dificilmente esse argumento prosperaria, já que a regra “não há pena sem prévia cominação legal” não é aplicada por Deus e, sinceramente, não vejo ilicitude alguma nisso. Afinal, Deus pode fazer tudo. Em outras palavras, Deus é onipotente! Como podem ver, o primeiro casal de filósofos sofreu e muito por buscar o conhecimento. Que sirva de lição!

sexta-feira, 13 de maio de 2011

PUNHAL (ALPÍNIA PURPURATA)


ÓDIO
APENAS ÓDIO
POIS SUBISTE AO PÓDIO
SENDO MUI TRAPACEIRO
COVARDE POR INTEIRO
SEMPRE FUI TEU AMIGO
POR QUE ISSO COMIGO?
HÁ TANTAS FLORES LINDAS
PARA SEREM COLHIDAS
MAS QUISESTE A MINHA
A VERMELHA ALPÍNIA
É FLOR DEVERAS BELA
POUCAS SÃO COMO ELA
MAS NÃO AGUENTA FRIAGEM
TU TIRASTE VANTAGEM
POIS O INVERNO FEROZ
CHEGARA PARA NÓS
ÉS UM ISCARIOTES
TENS MALDADE EM LOTES
TEU SER TÃO VIL NÃO SABE
O QUE É VERA AMIZADE
PODERIAS PEDIR
PERDÃO E CONSEGUIR
PORÉM AGORA É TARDE
OUVE BEM ESSA PARTE
COM UM PUNHAL AFIADO MINHAS COSTAS ACERTOU
PELO MESMO INSTRUMENTO JAZ CAÍDO O TRAIDOR
O VERMELHO DA ALPÍNIA QUISESTE SÓ POR PRAZER
JORRA AGORA RUBRO SANGUE! JUDAS, TU DEVES MORRER!
ALPÍNIA PURPURATA
ALPÍNIA SANGUINATA
ALPÍNIA SANGUE
APENAS SANGUE
SANGUE

quarta-feira, 11 de maio de 2011

DEUS É UM JUIZ GARANTISTA


Já matei, já furtei, já menti
Mas Deus é um juiz garantista
Cobicei, já roubei, já traí
Mas Deus é um juiz garantista
Cometi todos os crimes das nossas leis penais
E os sete pecados capitais
Mas estou calmo, tudo isso é irrisório
Deus garante ampla defesa e contraditório
Além do devido processo legal
Também chamado de "due process of law"
Já invejei, já enganei, seduzi
Mas Deus é um juiz garantista
Prevariquei, esbulhei e fraudei
Mas Deus é um juiz garantista
Contra os costumes e a ordem pública atentei
E os dez mandamentos eu quebrei
Mas estou calmo, para mim não há problema
Ele defende a humanidade da pena
Eu falo sério, não pense que sou cínico
No céu vigora o Direito Penal Mínimo

FIM

O REI QUE TINHA DOIS CETROS

        Há um tempo atrás existia um pequeno reino chamado Sofosberg. O nome era em homenagem ao Rei Sofos, um homem considerado por todos bom, justo, sábio e humilde, principalmente porque, graças a ele, não havia pobres nem ricos ali, todos compunham uma única classe social.
        Um dia, o Rei resolveu fazer um passeio sozinho. Chegando à praça central, Sofos teve uma surpresa: ele viu, pela primeira vez, um homem sem uma perna. O Rei observou a reação das pessoas que rodeavam o aleijado e percebeu que todas estavam também surpresas com aquela novidade no pacato reino. “Pobre homem!”, pensou o Rei, “o que será que ele fez de tão grave para receber tamanho castigo?”.
        No caminho de volta ao simples e diminuto palácio, Sofos veio pensando naquilo que vira. O semblante triste daquele homem sem uma das pernas não saía da mente do monarca.
Dois dias depois, o Rei resolveu voltar à praça central, e, chegando lá, viu o mesmo homem, no mesmo lugar, sem a mesma perna. Como esse fato marcou o Rei! Para ele, algo parecia não estar certo naquela situação. “Eu, o defensor da igualdade, vocábulo que é sinônimo de justiça no meu dicionário, não posso aceitar que esse homem viva sem uma perna, enquanto todos os outros possuem as duas”.
O Rei passou a fazer visitas diárias àquela praça, apenas para rever o aleijado. Sempre que Sofos via aquele homem, ele se sentia envergonhado. “Que cara de pau a minha! Cada vez que cruzo com esse infeliz é como se eu debochasse dele, dizendo: ‘Olha pra mim, seu tolo azarado, eu tenho as duas pernas, mas você só tem uma!’. Isso não está nada certo...”.
Esse pensamento começou a provocar no Rei a pior espécie de dor que existe: a dor moral. Sofos sofria por dentro, pois não sabia o que fazer. E, como se não bastasse (injustiça divina), a dor moral gerou dores físicas no monarca: Dor de cabeça, tonturas e dor no estômago infernizavam a vida dele.
O Rei já estava no seu limite! Algo deveria ser feito e já! Foi quando ele pensou: “E se eu cortasse a minha perna? As pessoas costumam dizer que sou bom e justo... Já provei isso eliminando a divisão de classes no reino, porém, é hora de provar mais uma vez que, de fato, detenho essas qualidades. Se não posso curar aquele homem, darei uma lição a todos me igualando ao pobre aleijado”.
Em seguida, o Rei chorou de soluçar. Ele sabia que não seria nada fácil cortar a própria perna. Porém, não havia escolha, aquilo era o certo!
Ele já imaginava a repercussão de seu ato, que representava o domínio da igualdade perante tudo e todos: Ricos de todo o mundo se sentindo mal vendo pessoas pobres e, conseqüentemente, dividindo com eles suas riquezas; poderosos de todo o mundo se sentindo mal vendo indivíduos abaixo deles e, conseqüentemente, renunciando o poder que detinham outrora!
Pronto, estava decidido: Adeus, perna esquerda! O Rei pegou um serrote e se trancou no seu quarto sozinho. Lá, ele abriu uma garrafa de vinho e bebeu três cálices, no intuito de sentir menos dor e criar coragem para fazer o que tinha que ser feito. Enquanto bebia, o rei foi até o piano tocar músicas no sistema dodecafônico, sistema esse que considera cada uma das doze notas como sendo iguais. “Que bebida saborosa, vou tomar a quarta dose só pra garantir!”, disse o Rei. Após tomar o quarto cálice, o ébrio Rei olhou pela última vez sua perna esquerda no corpo e, naquele momento, teve a impressão de que ela era uma peça estranha ao todo, que realmente não era para estar ali.
Então, o Rei respirou fundo, cerrou os olhos e serrou a perna esquerda.
O Rei berrava de dor, e parecia que o vinho que bebera não parava de sair de seu corpo. João, um criado de Sofos, estava próximo ao quarto e ouviu os berros de dor. Ele não sabia o que havia acontecido com o querido Rei, que sempre o tratava gentilmente e de igual para igual. João, assim como acontece com os criados em geral, não tinha o costume de pensar. Porém, naquele momento, isso foi extremamente importante, pois ele, sem raciocinar, deu um chute na porta do quarto do Rei com toda a sua força. A porta despencou na hora, e João pode ver aquela triste cena: O Rei gritando todo ensangüentado sem uma das pernas.
João ficou assustadíssimo, e, rapidamente, tirou sua camisa, amarrou-a no ferimento e levou o Rei até Ruy, o melhor médico que havia no reino. O médico não acreditou no que estava vendo. Após ouvir de João que o Rei havia feito aquilo consigo mesmo, o médico pensou: “Bom, justo, sábio, humilde e louco!!!”. Entretanto, mais uma vez não havia tempo para pensar, pois o Rei sangrava muito e poderia morrer. Ruy então resolveu amputar o cotoco real, ou seja, o que restava da perna do monarca, e, se valendo desse procedimento, conseguiu salvar o paciente.
Quando finalmente o Rei recebeu alta, ele disse ao seu criado: “Mande todos irem à praça central hoje à noite. Farei um discurso explicando tudo o que aconteceu”.
A noite chegou e, na praça, a multidão reunida estava ansiosa pelas palavras de Sofos. O Rei apareceu andando apoiado em dois cetros, usados como muletas improvisadas. O povo aplaudiu timidamente, pois a cena era chocante, principalmente porque aquele era somente o segundo aleijado da história do reino. Sofos subiu num palanque e começou a discursar, dizendo em alta voz: “Amado povo! Não se assustem! Sei que confiam em mim de coração, portanto, reflitam acerca de minhas palavras: Dias atrás, vi pela primeira vez aqui no reino um homem que não possuía uma das pernas. Fiquei profundamente triste e me sentia mal sempre que passava por ele. Vocês conhecem o valor que a igualdade possui! Sabem que ela é a perfeição e a justiça, e que, por isso, deve continuar reinando aqui. Após pensar muito, cheguei à conclusão de que o certo seria cortar uma de minhas pernas para me igualar ao aleijado. Isso não é lindo? Existe maior demonstração de amor do que essa? Porque sim, meu querido povo, eu amo cada um de vocês, com o mesmo amor, pois somos iguais, somos todos seres humanos!”.
O povo não entendia como era possível que alguma coisa, qualquer coisa, fosse capaz de justificar o fato de o Rei cortar sua própria perna. Mas, enfim, eles confiavam na sabedoria e bondade dele. Até que um da multidão gritou: “Viva a igualdade!!!”, e todos disseram: “Viva!!!”.
Sofos ficou muito feliz com aquele apoio e passou a amar o povo ainda mais. “Eles compreenderam tudo”, falou o Rei cheio de euforia, “Esse é um dia que vai ficar na história de Sofosberg”.
O Rei então resolveu baixar o seguinte decreto:

“DECRETO Nº 123      

Da amputação obrigatória
Art. 1.º Todo cidadão desse reino é obrigado a ter uma de suas pernas amputadas, recaindo a escolha da perna à própria pessoa.

Art. 2.º Os amputadores serão servidores do reino aprovados em concurso público de provas e títulos.

Da penalidade
Art. 3.º O cidadão que descumprir essa norma será enforcado em praça pública.

Parágrafo Único. Fica isento de pena aquele que se opor à amputação, pelo fato de já não possuir uma das pernas”.

Em seis meses, todos os habitantes daquele reino tiveram uma de suas pernas amputadas. O Rei voltou a ficar contente vendo todos novamente iguais. O povo é que pareceu não ter gostado muito... Era muito difícil se locomover com apenas uma perna. Euzébio Jabuti, o homem mais rápido do reino, campeão em todas as modalidades de corrida, disse aos amigos, inconformado: “Maldita igualdade! Graças a ela nunca mais correrei como antes... Jogos paraolímpicos, aí vamos todos nós”.
Ruy, o melhor médico do reino também ficou especialmente irritado: Trabalhar sem uma perna era algo deveras penoso. Ele continuava achando que o Rei era louco: “Imagina se um reino declara guerra a nós... Vamos combater usando um exército de sacis!”. Porém, Ruy continuava trabalhando arduamente pelo bem daquele reino.
Até que um dia algo incrível aconteceu. Ruy, ao examinar um paciente, teve um ataque e começou a gritar descontrolado: “Meu Deus! Não! Você tem um tumor no pênis! É câncer! Não é possível! Por que???”. O homem ficou boquiaberto devido à reação do médico, e mesmo recebendo essa horrível notícia, disse: “Fica calmo, doutor!”. Ruy, totalmente desesperado, berrou dizendo: “Você não está entendendo! Eu terei que amputar seu pênis! Amputar! Oh, meu Deus!”. O homem olhou fixamente o médico. Ruy tremia e tinha o aspecto de um alucinado. Após dois minutos de silêncio total, Ruy disse ao paciente: “Já volto”. Então ele saiu dali e entrou numa salinha que havia naquele mesmo corredor. Sozinho na sala, o médico abriu o armário, pegou 1mg de cianureto e ingeriu sem titubear. Morreu na hora.


                                           
                                        FIM

FILOSOFIA DO SÉC. XXI

CAPÍTULO 1

Era uma tarde normal no Rio de Janeiro.  Hélio não dava trégua, a temperatura já passava dos 40º C. Mas nosso protagonista não é Hélio, e sim Potiguara, carioca de 19 anos morador do bairro da Tijuca e estudante de Direito. Apesar desse calor infernal, Potiguara resolveu encarar a academia e praticar sua atividade física diária. Porém, descansando entre um exercício e outro, foi tomado por uma incrível inspiração. Podia ver claramente tudo se passando em sua mente nos mínimos detalhes. Finalmente, sua primeira obra, quem sabe talvez sua ponte para a eternidade, seu primeiro filho tão aguardado nascia ali, naquele ambiente inóspito onde a futilidade impera, ao som de um DJ americano qualquer, que sem dúvidas chama de música seus ruídos (Deusa Música,perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem). Mais uma vez do estrume é que nasceu a flor.
O leitor pode estar achando que a inspiração veio do nada, por sorte. Não se engane: Nada nasce do nada. A criação de Potiguara só foi possível, porque ele leu muito, e, o que é mais importante, pensou muito, já que, como é sabido, quem lê sem pensar não é capaz de criar. Para ser sincero, Potiguara não leu tanto assim. Sua estante de livros é pequena. Ela não causaria impressão nos telespectadores que assistissem Potiguara sendo entrevistado em sua casa por uma emissora de Televisão (é engraçado como os eruditos-posers gostam de mostrar, quando entrevistados, a vasta coleção de livros que possuem, como se ela refletisse o tamanho da sapiência deles). Porém, quão impressionados não ficariam os telespectadores, se, assistindo a essa mesma entrevista de Potiguara, pudessem ver ao fundo sua estante de pensamentos?
Com medo de esquecer alguma parte, o jovem foi correndo pra casa. Ele não se importou com o fato de não ter terminado sua série de exercícios, pois sabia que havia criado algo grande. No caminho, lembrou do ex-padre Vivaldi, que, conforme reza a lenda, foi excomungado pela Igreja por ter abandonado o altar no meio da missa para anotar uma linda melodia que tinha acabado de inventar ali. “Sorte minha que as academias não excomungam”, pensou o rapaz.
Chegando em casa, não fez outra coisa senão escrever, nunca riscando partes do que já havia escrito, algo que Gogol ou Brahms dificilmente fariam. Com isso, seu texto é uma amostra quase cem por cento pura do seu turbilhão de pensamentos. Transcrevo agora o ácido e poderoso manuscrito no seu inteiro teor, cópia totalmente fiel à versão original:














“FILOSOFIA DO SÉC. XXI – Autor: Potiguara da Silva


Amigos do mundo,


Retificar a história é preciso: O século XXI é a verdadeira idade das trevas! Sinto vergonha de viver nessa tenebrosa época. Filosofia adormecida , música desafinada e literatura analfabeta... Para onde caminha o Homem hoje? Para trás! Às vezes puxam o Homem para a esquerda ou para a direita; mas nunca o fazem caminhar para frente. Entretanto, como já era de se esperar, há esperança, esse bravo cavaleiro andante, ultima ratio dos desesperados. A esperança é essa luz em forma de palavras que vos trago e que será a salvação e o despertar do Homem. Sei que muitos não estão preparados para receber essa luz, de brilho exótico e intenso, que fatalmente cegará a maioria dos que forem contemplados por ela. Outros, que já estão cegos, não serão por ela iluminados. Mas aqueles que lerem buscando sinceramente a verdade, serão tomados por um poder novo descomunal, nunca sentido nem pelos espíritos mais sábios e profundos que já passearam pela Terra. Preparem os vossos olhos! A partir de agora ilumino.
Atualmente, a hegemonia mundial pertence aos Estados Unidos da América, vencedor das duas grandes guerras e da Fria, detentor da maior economia e poderio bélico do planeta. Devemos perguntar: É justa essa hegemonia, conquistada pela força da bomba atômica? A resposta é não. Conquistar a hegemonia pela guerra é algo injusto e que, por isso, deve ser abolido. Isso foi o que a Deusa Justiça me disse quando, em oração, perguntei a ela sobre a legitimidade da guerra. Após ouvir a negativa, perguntei: ‘Então, minha Deusa, quem deve ser, de Direito, o líder do mundo?’. Ela então me respondeu dizendo: ‘Bom e justo Potiguara, a hegemonia mundial deve pertencer a quem for superior. Isso a história te mostrará’. Então agradeci e fui até a História e perguntei: ‘História, afinal qual é o país superior?’ E ela respondeu: ‘Muitos historiadores marxistas tentaram me matar, porém, resisti milagrosamente e acho que, mesmo padecendo em meu leito, posso responder essa questão com a seguinte pergunta: Quem se destacou mais na filosofia, literatura e música, as criações mais elevadas do Homem? Respondo: Na filosofia, os gregos foram grandes, mas os alemães foram os maiores; na literatura, os russos foram grandes, mas os alemães foram os maiores; na música, os italianos foram grandes, mas os alemães foram os maiores. Pronto, aí está o que você procurava: A Alemanha é superior’.
A História estava certa: Os alemães se destacaram em tudo aquilo que constitui o tesouro mais precioso da humanidade, sendo, por isso, os que mais contribuíram para ela. Portanto, a hegemonia mundial deve pertencer não aos americanos, povo intelectualmente inferior, nada profundo, usurpador do poder pelas armas, péssimo líder incapaz de traçar nossa rota, mas sim aos alemães. É incrível como aceitamos receber constantemente dos yankees seus best-sellers, blockbusters e junk-food. Soa como piada o ‘junk’ compor apenas a expressão junk-food. Proponho que a partir de agora falemos em junk-food, junk-books e junk-movies. O rei Midas transforma tudo o que toca em ouro; o americano transforma tudo o que toca em lixo.  E mesmo assim, lá está ele no topo, impondo a todos seu fútil estilo de vida e seu pobre idioma. O mundo está sendo governado por tolos... e os sábios permitem isso.
Sim, de fato os outros países já nos deram muitos gênios. Mas existe um poder e uma magia que só os alemães possuem.  Que nação ousaria competir contra um time composto por Bach, Beethoven, Schopenhauer, Goethe, Nietzsche e Wagner? Quantos momentos de prazer profundo esses homens grandes, imensos, proporcionaram a humanidade! E quanta verdade na sua mais límpida essência eles nos legaram! Tudo isso será devidamente e finalmente compensado! Oh tu, gigante Alemanha, que perdestes as duas grandes guerras e foste humilhada, finalmente obterás a liderança do mundo! O que um bom maestro é para uma orquestra e um bom general é para um exército, a boa Alemanha será para o mundo. E tudo ocorrerá sem que seja preciso derramar uma gota de sangue, líquido sagrado que já escorreu demais à toa. Isso porque a liderança do mundo será entregue aos alemães, assim que essas novas tábuas estiverem com vigência e eficácia no coração de todos.
E sim, os alemães criaram o nazismo, sem dúvida um erro, hoje felizmente superado, com exceção de pequenos grupos neonazistas persistentes. Porém, há uma parcela de verdade no nazismo. Hitler acertou quando defendeu a superioridade dos alemães; só errou na justificativa. Também acertou quando advogou a inferioridade dos judeus, porém, houve aqui também um equívoco, motivado por interesses políticos, que foi grave e causou injustamente o massacre desse povo. Esse equívoco reside no fato de que não há nada de especial na inferioridade deles. Assim como os judeus, são inferiores os japoneses, os italianos, os brasileiros, os russos, os árabes, os africanos et cetera. Isso porque esses povos possuem algo em comum: todos eles são não-alemães. Porém, eu, o autor desse escrito, sou uma exceção. Faço parte desses poucos não-alemães de muito valor, pois cresço na medida em que reconheço minha inferioridade. E todos os não-alemães que amam o mundo e o Homem devem seguir meu exemplo. Se todos ponderarem com sinceridade acerca dessas palavras, verão que aqui cantam a Justiça e a Verdade a melodia mais sublime. De nada adianta nos enganarmos: nós, não-alemães, somos inferiores. A verdade pode ser dura, mas a mentira tem perna curta.
Apenas uma condição será imposta aos alemães: Eles devem centrar todos os esforços para organizar esse grande Estado mundial de modo a favorecer ao máximo o surgimento do gênio. O foco não é mais o trabalhador, o pobre, o fraco; o foco passa a ser o gênio.
O século XXI começou decadente, mas ele será o maior de todos. Minha parte está feita. Agora depende de vocês. Eu realmente não seria capaz de liderar esse Renascimento. Mas confiemos nos Johanns e nos Friedrichs! Eles saberão o que fazer. Deutschland über alles!




Rio de Janeiro, 2 de abril de 2010.”




CAPÍTULO 2

Esse polêmico escrito foi colocado por Potiguara em todos os murais da Faculdade Nacional de Direito na qual estudava. No mesmo dia, graças aos esforços do pombo-correio chamado Fofoca, o assunto já chegara aos ouvidos de todos.
Os comunistas do centro acadêmico ficaram indignados com Potiguara, apesar de secretamente apreciarem o poder revolucionário do manuscrito. Os mais exaltados foram de sala em sala dizer que “A tese de Potiguara é absurda, porque não beneficia a classe trabalhadora, nem promove a redução da desigualdade social”.
Outro grupo da faculdade que ficou irado devido ao conteúdo do texto foram os cristãos. Quando cruzaram com Potiguara nos corredores da universidade, esbravejaram, dizendo: “Não há superiores ou inferiores, pois, aos olhos de Deus, todos são iguais”.
Pelo menos uma pessoa elogiou o manuscrito: Carlos, um rapaz inteligente, amigo de Potiguara. Ele não sabia ainda se aceitava as idéias defendidas pelo amigo, porém, já o considerava um gênio. Após ler “Filosofia do séc. XXI”, Carlos ficou bastante entusiasmado, pois no seu entender, esse texto poderia movimentar nosso século, um tanto quanto parado, com exceção do “11 de setembro”.  Durante suas infindáveis conversas com Potiguara, Carlos costuma dizer sempre: “O homem do século XXI quer apenas salvar o planeta, não está preocupado em pensar e criar. Isso me faz rir, porque, se o homem não pensa e não cria, para que salvar o planeta?”.
Entretanto, a crítica positiva do amigo de Potiguara não representava fielmente a situação: em geral, os alunos da faculdade que liam seu manuscrito achavam graça e zombavam de seu autor. A faculdade de Direito em que ele estudava estava repleta de típicos jovens universitários, que não sabem nada, mas querem mudar o mundo. Parece que seguiam à risca o manual do perfeito idiota latino americano. Isso irritava Potiguara profundamente. Naquele lugar, ele se sentia uma águia num ninho de bem-te-vis, pois gostava de ir além, buscar a verdade voando alto com as próprias asas, mesmo sabendo que é mais cansativo voar com as próprias asas. Além disso, o vôo alto é solitário, o que inevitavelmente traz sofrimentos. Entretanto, existe o lado bom de tudo isso: lá de cima, a vista é ampla e linda. E Potiguara, apesar de ser brasileiro, não se contenta com pouco. Ele só sabe viver e só consegue viver contemplando essa imensidão do lugar mais elevado. Custe o que custar.
O assunto dominava completamente aquela universidade. Até os professores já tinham lido o escrito do jovem. Eles ficaram surpresos quando viram que Potiguara era o autor, pois o rapaz não costumava tirar boas notas nos exames e não tinha aparência de intelectual. Eles achariam normal se o autor do texto fosse um estranho e introvertido míope de óculos, mas Potiguara, um dos mais populares da faculdade, não era nada disso.
O professor de Filosofia do Direito ficou com inveja do jovem pensador, pois, apesar de se apresentar às turmas dizendo “Muito prazer, eu sou um filósofo...”, só havia escrito, até aquele momento, artigos sobre a vida e obra dos verdadeiros filósofos. Então, no intuito de se vingar, foi até Potiguara dois dias após ter lido o texto e perguntou-lhe se estava disposto a ser entrevistado por ele. O professor disse que a entrevista seria publicada na revista de filosofia em que ele costumava escrever seus artigos. O ingênuo Potiguara ficou contente por causa do tão nobre convite e já pensava num modo de retribuir o favor daquele bondoso professor que se apressava em divulgar sua obra. Como é intensa essa necessidade que temos de retribuir favores! No ônibus, quando cedemos o lugar, ouvimos em troca “Quer que eu segure sua sacola?”. Quando seguramos a porta do elevador para o vizinho que está vindo, a situação é ainda mais interessante: geralmente, ele agradece a gentileza e pergunta “Qual o seu andar?”, mesmo sabendo que apertar o botão para nós não é algo útil. Mas que importa a utilidade se a consciência se tranquiliza?
Naquele mesmo dia, numa das salas da faculdade, aconteceu a entrevista. E para a surpresa do jovem, ele fora massacrado por seu professor. Uma das perguntas mais pesadas feitas pelo mestre foi: “Você não se acha um irresponsável por ter publicado um texto tão perigoso?”. Potiguara tentou em vão se defender. As perguntas tendenciosas do professor estavam sepultando suas idéias.
Causava tristeza no rapaz ver como o “novo” era sempre repudiado. Ele disse a Carlos, um dia após a entrevista: “Meu belo acorde dissonante fere os ouvidos dos não iniciados”. Sim, pois, com exceção de seu amigo, só ouvia reclamações, ironias e xingamentos, sendo “louco” a palavra rude que mais comumente recebia. Será que a humanidade com o tempo passaria a entender seu manuscrito? Ele sabia que o louco de hoje pode ser o gênio de amanhã, porém, ser massacrado por seus contemporâneos não é algo sempre capaz de atestar a genialidade. Ele temia ser considerado louco não apenas por seus contemporâneos, mas por todas as gerações futuras.
E então aconteceu que, um dia, o Cônsul norte-americano no Brasil, assinante daquela revista de filosofia, leu a entrevista de Potiguara feita pelo professor e achou que deveria contar ao Presidente dos Estados Unidos sobre a existência do manuscrito que os experts no assunto consideravam perigoso. O Presidente, apesar de não ter dado muita importância às palavras do representante dos Estados Unidos no Brasil, resolveu ler o texto de Potiguara enviado e traduzido pelo próprio Cônsul. Após ler e reler o escrito, o Presidente sentiu que aquilo poderia ser uma ameaça ao seu poder. Ele reconheceu no manuscrito de Potiguara aquele invisível, porém imenso poder presente em livros capazes de mudar o mundo, como a “Bíblia”, “O Capital”, de Marx e o “Minha luta”, de Hitler. Por isso, resolveu convocar a alta cúpula do governo para uma reunião extraordinária. Após a exposição do assunto e a leitura do manuscrito, um Ministro perguntou ao Presidente: “Senhor Presidente, não será necessário entrar em contato com o governo brasileiro?” O Presidente respondeu dizendo: “Creio que essa não seja uma boa idéia. Isso daria muito trabalho e poderia ser ineficaz. Na verdade, precisamos eliminar o autor desse escrito, antes que sua doença se espalhe e vire uma epidemia. Eu já sei como resolver essa pendência: Falei com Jesus, só ele pode nos salvar”.
Após pronunciar essas palavras, o Presidente americano mandou chamar Jesus, agente secreto de sua confiança, porquanto o mesmo nunca havia falhado em nenhuma missão. O Presidente, no dia anterior, havia entrado em contato com o agente, que leu o escrito de Potiguara e gostou muito, principalmente porque via os norte-americanos que o rodeavam de forma bastante negativa. E como fora confiada a ele a missão de matar o autor daquele escrito, na sua opinião, fascinante, Jesus ficou triste. Ao entrar no salão de reuniões, o agente perguntou ao Presidente, gaguejando com humildade: “Senhor Presidente, sobre aquele texto “Filosofia do século XXI”, será que não há nele uma parcela de verdade? Não seria uma injustiça matar seu autor antes de analisarmos se ele escreveu algo útil para a humanidade? Mesmo se o Senhor considerar isso justo, se for possível, afasta de mim essa missão!” O Presidente respondeu seguro e com seriedade: “Não analisei a questão sob o prisma da justiça. A justiça é o obstáculo do meu interesse. E você vai sim cumprir essa missão!”. Jesus pensou em resistir à ordem do Presidente, e dizer, para justificar essa atitude “It’s a free country!”, frase mágica que legitima toda e qualquer ação praticada em solo norte-americano. Porém, sabendo que sua recusa significaria o fim de sua brilhante e rentável carreira, o agente disse, cabisbaixo: “Tudo bem. Eu irei e cumprirei as ordens do Senhor”. Então, Jesus se retirou dali, no intuito de pegar o quanto antes um avião com destino ao Brasil para cumprir sua missão.
No dia seguinte, já estava no Brasil o hábil agente sniper, colecionador de lícitos homicídios, que por serem lícitos, não fazem dele um assassino. Após desembarcar no aeroporto internacional do Rio de Janeiro, ele pegou um daqueles táxis com o preço caríssimo pré-fixado, que por ser algo lícito, não faz com que os taxistas sejam considerados ladrões. Durante a viagem, o taxista se gabava do número de amantes que possuía, mas o agente não deu atenção a ele, pois, além de estar muito concentrado, nada sabia de português nem de qualquer outro idioma senão o inglês. Seu desprezo, porém, não foi capaz de fazer o taxista se calar.
Enfim, Jesus saltou na Rua Conde de Bonfim, no bairro Tijuca, onde Potiguara morava. O relógio marcava vinte e duas horas e trinta e cinco minutos. A rua estava escura e deserta. Como havia sido informado que Potiguara costumava chegar em casa do trabalho por volta das vinte e três horas, Jesus rapidamente montou seu rifle num beco escuro ideal para efetuar o disparo e sumir dali logo em seguida. Por volta do horário esperado vinha Potiguara andando pensativo, logo, distraído. Ao vê-lo, o experiente Jesus puxou o gatilho e acertou o jovem na cabeça com um tiro certeiro. Mission accomplished.





















CAPÍTULO 3

Após a morte de Potiguara houve uma comoção geral. A mídia, esse vampiro sensacionalista, sugou tudo o que podia do caso e inventou mil explicações como causa dessa tragédia. Durante pouco mais de um mês só se falava da morte do jovem. Com isso, sua filosofia nada popular se popularizou. Seu texto “Filosofia do século XXI” viajou dos murais às livrarias e foi um sucesso de vendas. Potiguara, morto, enriquecera. Para o povo, influenciado pelo que via nos noticiários, o jovem havia se tornado uma espécie de mártir, que morreu para salvar a humanidade. Potiguara, herói nacional, passou a ser idolatrado com fé cega por muitos que não haviam lido sua obra, nem faziam idéia do que ela tratava. Alguns autores brasileiros, aproveitando a moda, lançaram às pressas livros como “Introdução ao Potiguarismo”, “Potiguarismo resumido” e “O Potiguarismo em trinta minutos”.
Depois do sucesso nacional, o Potiguarismo começou a se expandir, e os países estrangeiros foram conhecendo-o aos poucos. O povo alemão ficou feliz e grato por aquela verdadeira ode feita em sua homenagem. O número de vendas do manuscrito de Potiguara não parava de crescer. Um grupo de intelectuais alemães publicou um texto apaixonado pedindo apoio às nações, pois estavam preparados para promover o renascimento do gênio e da arte, e tranqüilizaram a todos dizendo que suas ações seriam sempre pautadas pela razão, equilíbrio e razoabilidade. Ainda nessa obra, os autores também disseram não acreditar como era possível um rapaz jovem e brasileiro escrever um texto tão inovador. Para eles, normalmente o jovem não está maduro o suficiente para se aventurar numa obra daquele calibre; e o Brasil não é um país famoso por dar filósofos ao mundo. Os autores alemães realmente estavam certos: carnaval, mulatas e futebol caracterizam melhor esse povo alegre, cuja felicidade corresponde exatamente ao tamanho de sua ignorância.
A repercussão do texto brasileiro entre os judeus não foi das melhores. Além de repudiarem as críticas à igualdade (como se os judeus considerassem os árabes “iguais”) ficaram com medo de reviver o pesadelo do holocausto, mesmo sabendo que o manuscrito não pregava de forma alguma uma renazificação, por ser contra a opressão de um povo sobre o outro.
As idéias de Potiguara cada vez mais conquistavam terreno, chegando a penetrar no Direito. Os juristas brasileiros, com base no Potiguarismo, defendiam o “princípio da compensação histórica”, que para eles, seria o argumento jurídico capaz de legitimar o domínio do mundo pela Alemanha, compensação essa devida por tudo que esse país já fez pela humanidade. Eles afirmavam que esse princípio já existia, sendo, por exemplo, a justificativa da reserva de um percentual de vagas em universidades, para os negros, compensação essa devida por tudo que sofreram na história. Os mais radicais de esquerda aproveitaram para dizer que a tendência seria a criação de cotas para mulheres e homossexuais pelo mesmo motivo.
Nos Estados Unidos, muitos americanos passaram a defender as idéias do Potiguarismo. Eles começaram a se envergonhar, pois achavam que a crítica feita aos americanos procedia. Isso pode parecer incrível, mas a história daquele país é repleta de fatos que impressionam. Querem um exemplo? Primeiro, o americano proíbe o negro de tomar água no mesmo bebedouro que ele.  Depois, permite que o negro assuma a presidência do país.


CAPÍTULO 4

Um século havia se passado desde a morte do jovem sonhador. O ser humano estava irreconhecível. De fato ele ainda possuía pernas, braços, falava e pensava. Mas o Homem havia mudado, se superado, e somente por erro nosso, continuávamos chamando nossa espécie de seres humanos. Claro que não estou me referindo ao povo. O povo é imutável.
No século passado, era algo natural defendermos com unhas e dentes nosso país natal, apenas por ser nosso país natal, sendo considerado traidor aquele que não fizesse isso. Se o indivíduo nascesse na China, defenderia a China acima de todas as nações do mundo. Porém, se esse mesmo indivíduo tivesse nascido na Índia, defenderia a Índia, sem se importar com o bem dos outros países, inclusive da sua outrora amada China. Hoje, o Homem acordou e percebeu que isso não passa de uma grande tolice, fruto do egoísmo nacionalista. Ele passou a defender o que é valoroso, seja nacional ou não. Esse pensamento levou o admirável Homem novo no caminho do renascimento Potiguarista, já tão defendido por inúmeras nações.
Se os Estados Unidos resistissem aos apelos dos demais países, que pressionavam os americanos a entregar a hegemonia mundial aos alemães, fatalmente estaríamos diante da terceira grande guerra. Mas, felizmente, os americanos cooperaram. Ninguém mais naquele país fazia algo visando unicamente o lucro; que mudança impressionante! O presidente dos Estados Unidos da época, um homem sábio, falou, emocionado, no final de seu discurso de despedida: “Uma nova era nos espera! E eu não seria capaz de impedir tamanho avanço da humanidade. Nosso mestre Potiguara só cometeu um equívoco: O maior século será o XXII, o nosso!”.
No ano de 2111, o que antes parecia absurdo, aconteceu: após o “1º encontro das nações para frente”, os países decidiram que o presidente da Alemanha seria o 1º presidente mundial da história.






                           FIM

                         INÍCIO