Kebab – Comédia em um ato
Personagens
Germano
Otomano
Jan III da Polônia
Landsknecht (mercenário).
Esposa do Otomano
ATO I – Cena I (Cerco
da casa do Germano - 1529)
Germano, assobiando a Missa super dixit Maria (Kyrie), de Hans Leo Hassler,
está colocando as últimas pedras no muro que envolve sua casinha em estilo
enxaimel, enquanto, ao fundo, o mercenário dorme na grama. Quando termina o
serviço, Germano sorri e diz, ao se benzer diante de uma cruz posicionada em
cima da porta:
GERMANO –
Pronto, trabalho exaurido!
Agora estou protegido!
Eis que o Otomano, com seus trajes típicos, turbante e cimitarra
(espada curva) aparece gritando, como um alucinado:
OTOMANO –
AAAAAAAA...llaaaaaaah!!! Por Allaaaaah!!!
Allah! Olha a casa lá!
GERMANO –
Jesus Cristo, meu guia, luz para mim,
aquele que me fez parar de louvar Odin
(mitologia nórdica, grande besteira!)
O que significa tamanha asneira?
Parece que o Otomano, com todas as suas propriedades
Quer também o resto da Terra, o céu e o Hades!
Maldita ânsia de poder, erva daninha...
Pois venha! Que eu defenderei minha casinha!
Enquanto o Otomano
começa a investir contra o muro da casa, Germano inicia uma reza a Jesus
enquanto coloca sua armadura:
GERMANO –
Cristo, rei dos reis, proteja minha veste...
peraí, me proteja também, ô Landsknecht,
eu te pago pra isso!
Cadê esse estrupício?
Dormindo como um rei!
Onde foi que eu errei?
LANDSKNECHT (MERCENÁRIO), acordando meio bêbado, de sono e
álcool –
Bom dia, senhor meu!
Por que me acorda nesse breu?
GERMANO, desesperado
–
Mein Gott! Mas você
é burro ou insano?
Estamos sendo atacados pelo Otomano,
você não tá vendo? Me ajuda logo, vem!
mercenários... se não recebessem dinheiro, hein!
LANDSKNECHT, interrompendo
–
Falando nisso, meu nobre senhor,
que Deus te proteja de toda a dor,
ainda não recebi a paga referente a essa peleja.
Aceito ouro, prata ou um litro de cerveja.
Um pagamento para cada ajudada.
O senhor sabe que só trabalho por empreitada.
GERMANO, com raiva
–
Mas que grande salafrário!
Toma, que tu és mesmo um mercenário!
Germano atira um saco
de moedas de ouro para o mercenário, que diz, contente:
LANDSKNECHT –
Deus te dê em triplo, meu senhor, meu bom paizão!
Hora de defendermos sua casa e nossa nobre religião!
O Landsknecht pega sua
enorme lança e se atira na direção do Otomano. Começa a nevar, porque o inverno
também resolve aparecer.
OTOMANO, cansado de
tentar em vão quebrar o muro –
Minhas forças se esvaem, crescem as do adversário
Agora tenho que me bater com esse louco mercenário.
E que frio de rachar desse clima hodierno!
O Germano convocou o general inverno.
Juntos, Germano,
Mercenário e o frio do inverno espancam o Otomano, que sai gritando:
OTOMANO –
Me aguardem, eu vou voltar!
Essa casa é minha, por Alá!!!
Cena II (Batalha pela
casa do Germano -1683)
Germano, regando as
plantas, feliz da vida, canta a Schwanengesangen, de Heinrich Schütz. Eis que
surge o Otomano, com a mesma roupa e equipamento, gritando igualmente:
OTOMANO – Allah!!! Por Allah!!! Olha ele lá!
Otomano tenta mais uma
vez destruir o muro da casa.
GERMANO, assustadíssimo,
-
De novo? Cara chato demais!
Vê se me deixa em paz!
O pior é que o Landsknecht me deixou sozinho
Deixei de pagá-lo uma vez e ele se foi com o meu vinho!
E agora, quem poderá ajudar esse humilde camponês?
O Otomano vem com mais vigor do que da última vez!
Jan III aparece, com
cara de quem está perdido.
GERMANO –
Mas veja, um milagre surge!
Ajude-me, senhor, o tempo urge!
A propósito ,sou Germano, o dono da casa,
E, Vossa Excelência, qual é a vossa graça?
JAN III –
Sou o grande Jan III da Polônia
Saí pra pescar porque sofro de insônia
Acabei tomando rumos errados
E vim parar por esses lados
GERMANO –
Pois creia, nobre senhor, que foi a própria Providência
Que aqui o colocou para minha diligência
Proteja minha casa desse mouro
Que te darei mil moedas de ouro!
O Otomano ouve a conversa e se mete, berrando com ira:
OTOMANO –
Não sou mouro, Germano ignorante!
Sou o Otomano do Levante!
Aquele que vai te jogar no ralo,
E te transformar num vassalo!
JAN III –
Agradeço sua proposta, senhor
Germano
Mas temo dizer que frustrarei seu
plano
Moedas de ouro tenho muitas no
meu armário
Achas mesmo que sou um
mercenário?
GERMANO –
Não, jamais, meu nobre Jan
Mas veja que esse é um pesado afã
Não deixe seu irmão aqui
desprotegido,
Ajude-me, ouça meu triste
alarido!
Deus dá sempre em dobro,
a quem tira o próximo de um
soçobro!
JAN III –
Nunca é bom arriscar a vida
sozinho
Pela grama do nosso vizinho
Esfomeado, voltarei pra minha
casa, minha mesa
Desejo-te sorte nessa tão árdua
empresa
Jan se vira pra ir embora, quando Germano, ao ver que o Otomano está
quase destruindo o muro, diz, desesperado:
GERMANO –
Espere, amigo Jan terceiro,
Senhor tão vistoso, tão faceiro,
Pense ao menos na cristandade
minha e tua!
Vamos deixar o Otomano colocar
estrela e lua
No lugar dessa tão bela cruz,
Símbolo do sacrifício de Jesus?
Reflita também, Oh, polonês
augusto,
Que o Otomano, réptil astuto,
Não se satisfaz com tudo aquilo
que tem,
E, após a minha, vai tomar a sua
casa também!
JAN III, após refletir –
No meu coração não cabe egoísmo
Nele bate vero humanismo
Falaste sobre nossa fé com
propriedade,
Sem ti, vizinho cristão, sentiria
soledade
Amo-te como amo a mim mesmo,
Não posso deixar-te a esmo.
Com os meus punhos você pode
contar,
contra o inimigo de Cristo
devemos lutar!
Jan corre até o Otomano e aplica-lhe uma voadora. Depois, como um
touro, dá uma cabeçada na barriga dele.
OTOMANO, com pesar –
É, nunca vou conseguir entrar
nessa casa boa...
Allah, me perdoa!!!
Otomano deixa a cena.
GERMANO –
Conseguimos, Jan! Minha casa está
salva
Veja, há sangue cobrindo minha
pele alva,
Mas sempre vale a pena sangue
derramar
Para a nossa fé verdadeira
guardar
JAN III –
Sim, bom vizinho e amigo
Pode contar sempre comigo
Salvamos sua casa daquela
religião turva
E nossas carnes daquela espada
curva!
Agora preciso ir, aperta-me a
fome,
Quando precisar, clame pelo meu
nome!
Os novos amigos se abraçam e Jan III deixa a cena.
Cena III (pós-segunda
guerra mundial)
Assobiando a Carmina
Burana , Germano coloca com naturalidade a suástica no lugar da cruz em cima da
porta. Em seguida, ele grita com a mão perto da boca, como para amplificar o
som:
GERMANO -
Agora eu sou nazi!
Morte ao judeu
Ashkenazi
Acabem com o comunista!
E o judeu sefardita!
Queimem as testemunhas de jeová,
e o povo cigano que se vá!
Dá-me eloquência, Ó, Calíope!
E morte ao judeu etíope!
O Eslavo não passa de um verme,
e o Polonês é desse lixo o cerne!
O Germano cresceu e virou superior
Da casa dos outros serei senhor!
Na maior empolgação, Germano começa a cantarolar A Cavalgada da
Valquíria, de Richard Wagner, fingindo voar numa vassoura e também fingindo com
ela atirar.
Nesse ínterim, cai uma bomba e destrói a casa dele. Germano cai no chão
desmaiado. A suástica também cai no chão, e quando Germano lentamente se
levanta, a primeira coisa que ele faz é colocar novamente a cruz cristã em cima
da porta. Em seguida aparece o Otomano, sem turbante, sem espada, vestindo
roupas modernas. Ele não nota a destruição e senta debaixo de uma árvore
visando descansar.
GERMANO –
Oh, que dor sinto no peito,
agora me pegaram de jeito.
A casa que construí com amor e zelo,
aqui jaz destruída sem apelo!
Não posso sozinho meu lar reconstruir
Preciso a alguém ajuda pedir
Olha, o Otomano ali no ócio
A ele proporei um negócio!
Otomano, grande amigo meu,
há tempos não vejo o rosto teu!
OTOMANO, levantando-se
assustado –
Que Allah leve minha alma!
Me vem à mente antigo trauma.
Não me bata, senhor Germano,
venho em paz, isso é um engano!
GERMANO, rindo –
Amigo Otomano, porque tamanha aflição?
Até parece que avistou assombração.
OTOMANO –
Porque recordo bem da última vez
dos galos na cabeça que você me fez!
GERMANO -
Mas isso é coisa do passado!
Está findo, está superado,
Eu estava com a cabeça quente,
peço perdão, fui inconsequente.
OTOMANO –
Meu amigo, também peço desculpa
Aquela violência foi por minha culpa.
Perdão por esse imenso desatino,
É que deu certo na casa do Bizantino,
E o sucesso sempre sobe à cabeça
E demora até que de lá desça
GERMANO –
Vamos então nesse tema colocar cal,
Por aqui as coisas vão muito mal.
Olhe minha casa, que trágico!
Reconstruí-la, só sendo um mágico.
Por isso pensei em te convidar
para trabalhar aqui comigo,
Já que não és mais meu inimigo,
Podes inclusive na minha casa morar
Algo provisório, não vás se demorar!
OTOMANO, transbordando
felicidade –
Mal creio no que tu narras!
Quando brandi cimitarras
falhei duas vezes seguidas
em destruir suas guaridas.
De entrar na sua casa
já havia desanimado,
eis que agora, meu fiel Allah, sou convidado!
GERMANO –
Respeito-te muito, Otomano
És um sábio ser
humano,
Ser inteligente como tu eu quero.
Grande matemático, inventaste o zero,
tudo sabes sobre
escalenos e isósceles
e ainda preservaste textos de Aristóteles!
OTOMANO -
Quem fez tudo isso foi o árabe, meu nerd irmão.
Mas valeu a tentativa, amigo Germanão!
Peço desculpas pela intimidade,
Ela é fruto de nossa nova amizade
GERMANO –
Agora entre sem cerimônia!
Viveremos com parcimônia,
pois os tempos não são leves.
Você se acostumará com as neves,
E com a nossa culinária.
A melhor é a da Bavária,
mas aqui temos Schnitzel vienense,
melhor carne não há, nem pense!
Germano serve o
Schnitzel e o Otomano prova.
OTOMANO –
O nome é bem pomposo
já o prato, insosso
Agradeço pela carne que se encontra nessa mesa
Porém creio que ela é um simples bife à milanesa
Se me permite, trarei uma iguaria
Da minha ex-casa, da Turquia
GERMANO –
Fique à vontade, vá, que aqui te espero
Mas se prepare para meu julgamento severo
O Otomano sai de cena
e volta com uma barraquinha de kebab.
OTOMANO –
Isso se chama Kebab
Não sei se você sabe,
é uma carne semelhante ao cupim
o gosto é excelente pra mim.
Pode-se servir com pão
Ou como uma refeição.
Acompanha salada e molho picante.
Ora, Venha aqui provar, avante!
GERMANO –
Gott im Himmel, que alegria
provar de carne tão macia,
e esse molho de pimenta
que meu corpo acalenta...
Com certeza esse prato vence
o meu Schnitzel vienense.
Os amigos trocam um
abraço caloroso e riem, ao som da marcha turca de Mozart.
OTOMANO –
Até que você é um
cara legal
Apenas começamos
muito mal
Quem diria que o Germano
Hoje seria o meu mano!
Os amigos trabalham
juntos e começam a reconstruir a casa alegremente. Tudo vai bem, até que o
Otomano começa a cantar uma música típica da Turquia e o Germano, com raiva,
responde cantando a nona de Beethoven. Após, Otomano se ajoelha pra rezar e o
Germano fica chocado.
GERMANO –
Mas que absurdo é esse numa casa cristã?
Não posso suportar tal atitude pagã.
na sua casa você pode adorar seus ídolos
Pouco me importam seus deuses frívolos
OTOMANO –
No vasto e antigo otomano império,
que tantas terras possuía do planisfério
Como havia mais tolerância
com o cristão em nossa entrância!
O Otomano,
contrariado, desiste de rezar. Germano liga a TV, e o narrador fala, ao
apresentar o programa esportivo:
NARRADOR ESPORTIVO –
Esses foram os resultados da Bundesliga
Agora vamos aos da Turquia, nossa amiga.
OTOMANO –
Isso muito me interessa, diz logo, vai
Será que ganhou o meu Galatasaray?
GERMANO, desligando a
TV –
Isso muito errado está!
Turquia? Aqui é o MEU lar!
O Otomano olha irado
pro Germano, no seu coração só cabe ódio.
OTOMANO, sussurrando
–
Ah, seu monstro maldito
Você me paga, tenho dito!
O Otomano, decidido,
vai até a porta e começa a prender uma lua e uma estrela bem ao lado da cruz.
GERMANO –
Oh, que afronta, venenosa cobra!
Do demônio só pode vir tal obra
Bem dizia o francês douto:
O inferno é o outro!
E agora tem mais essa?
Quem vem ali com pressa?
Chega a esposa do
Otomano.
ESPOSA DO OTOMANO, toda
simpática –
Muito obrigada pelo convite!
Demorei porque tive apendicite
Espero que possamos viver em harmonia
E que o senhor goste da minha companhia
GERMANO, bufando –
Convite? Estarão saudáveis meus ouvidos?
Jesus Cristo, que horrorosos estampidos,
Saem da boca dessa turca descrente,
E que dizer desse lenço incoerente?
ESPOSA DO OTOMANO, sentida
–
É da minha cultura esse belo lenço rosa
Esperava uma recepção mais calorosa...
GERMANO –
Vamos acabar de vez com esse teatro
Não quero uma cena número quatro.
Vem uma, vem outra, já vira uma orgia...
Sei que vocês praticam a poligamia!
ESPOSA DO OTOMANO –
Sou a única mulher do Otomano, senhor.
Exijo mais respeito comigo, faz favor.
OTOMANO –
O senhor quer me despachar para além...
Ora, eu moro nessa casa também!
Vivendo aqui há mais de um ano,
será que eu não me tornei um germano?
GERMANO –
Só pode estar brincando!
Seu dizer é nefando!
Enquanto na minha casa morar
sempre um turco você será!
Diga pra toda a sua gangue
Que o que vale é o sangue!!!
E, arregalando os
olhos, o Germano bate no antebraço seguidas vezes com força.
GERMANO -
Cansei de ser por vocês burlado,
Agora estou é descontrolado!
Germano, como um
louco, vai até a porta de casa, tira a cruz e a lua com estrela e recoloca a
suástica.
GERMANO, fazendo a
saudação nazista ao mesmo tempo que aponta para a saída –
Na minha casa o turco não cabe,
Saiam logo... mas deixem o kebab.
ESPOSA DO OTOMANO –
Ah, então é assim, você quer o Kebab,
Mas não quer aquele que fazê-lo sabe?
GERMANO –
Isso, exatamente...
Sumam da minha frente!
MULHER DO OTOMANO –
Besta insensível,
Não és indefectível!
Uma maldição desejo pra ti,
Teu fim doloroso te aguarda aqui!
OTOMANO, fora de si
–
Vamos então, meu amor
Aqui está seu kebab, senhor.
Otomano recheia um
kebab com uma banana de dinamite imensa.
OTOMANO -
Que a refeição esteja ótima,
Porque será a sua última!
A dinamite explode matando todos os três na
hora.
FIM
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