quarta-feira, 8 de abril de 2015

WILHELM KAMPF oder SOLUÇÃO DO PROBLEMA NORDESTINO

Wilhelm Kampf oder Solução do problema nordestino

Capítulo 1 – Ascensão
            Pobre Rio de Janeiro. As eleições de 2014 para governador aconteceriam em alguns meses, tendo como candidatos Cesar Maia, Garotinho, Pezão, Lindberg Farias, entre outros nomes tão péssimos quanto esses. O jovem Wilhelm Kampf queria trazer uma alternativa, uma salvação a essa situação precária, afinal o Estado do Rio, que já estava um caos, ficaria ainda pior com candidatos dessa magnitude. Nosso amigo, formado em História no IFCS, começou a atuar na política pelo centro acadêmico, esse “estágio” dos políticos. Wilhelm, a despeito do esquerdismo que monopoliza o IFCS, filiou-se a um partido de direita chamado PF, Partido Fluminense. Usando de sua excelente oratória, Wilhelm foi aos poucos subindo os degraus da hierarquia do partido e obteve finalmente apoio para se candidatar a Governador do Estado do Rio de Janeiro pelo PF.
            As ideias de Wilhelm Kampf eram extremamente radicais. Talvez pela influência de sua esposa gaúcha, logo, separatista nata, ele era a favor do Rio de Janeiro se separar do Brasil e constituir um país autônomo, afinal “tínhamos petróleo, e os demais estados só faziam roubar nossos royalties!”, mas essa ideia não vingou no seio do PF (o Partido Fluminense não se sentia um “Partido Gaúcho”).  Uma outra ideia, contudo, foi aplaudida pelo partido inteiro e virou carro-chefe da sua propaganda política: Wilhelm considerava que o maior problema do Rio de Janeiro era a presença de nordestinos, e inicialmente sua ideia era mandá-los de volta para seus estados de origem.
Wilhelm defendia o “Rio puro”, que nada mais significava do que o Rio de Janeiro sem nordestinos. Já ele, Wilhelm, não era nada puro, mas sim fruto da mais épica mistura racial. Sua ascendência era escocesa, árabe, judia, indiana, indígena, bósnia e alemã (de onde provém seu sobrenome). Apesar da insinuação gerada pelo seu nome germânico, o elemento racial árabe era o mais presente, o que fica comprovado pela escura cor de sua pele. Ademais, Wilhelm era baixo, tinha uma cabeça com cabelos crespos um pouco avantajada, e, tendo esses traços, bem como ante a  dificuldade de classificá-lo em virtude da mistura racial, alguém poderia arriscar que Wilhelm fosse nordestino.
Cumpre mencionar também que Wilhelm, talvez pela predominância da ascendência árabe, possuía uma fé sincera e profunda no islamismo. Wilhelm ficava muito triste, porque sua religião era sempre alvo de preconceito, sendo mais comum o famoso absurdo de considerar os muçulmanos como sendo fanáticos e loucos homens-bomba. A vida de Wilhelm costumava ser religiosa, reservada e familiar, junto de sua esposa gaúcha, Marienne Kampf, e seu pequeno filho Abdul Abdala. Certos acontecimentos, porém, dariam grande notoriedade ao jovem, tornando-o a mais famosa figura pública do Brasil.
As doutrinas do PF eram construídas por Wilhelm em parceria com o filósofo oficial do partido Arthur Linz, rapaz alto, magro, moreno, muito inteligente, que, após ler Crime e Castigo, achou que deveria virar um Raskólnikov, um super-homem, e buscar o poder. Para isso, Arthur Linz se filia ao PSTU sem fé alguma no marxismo e sonha com a revolução, mero meio para o seu fim (ele poderia ter escolhido um partido mais expressivo, é verdade). Todavia, acreditando que seu amigo Wilhelm Kampf venceria as eleições e governaria com mão forte o Estado do Rio, Arthur abraça o kampfinismo sem acreditar em uma palavra, somente visando ao poder. As seguintes pérolas foram proferidas pelo filósofo do partido: “Os nordestinos são completamente diferentes de mim, me recuso a reconhecer a mesma essência. Eles certamente não possuem alma. Eles são tão diferentes que até o modo grego utilizado pela música nordestina é diferente, qual seja, o mixolídio”. Outra: “Já dizia Aristóteles que a natureza não destinou os nordestinos para as coisas intelectuais. Só resta a eles pegar na enxada e capinar lotes! Lá no nordeste, é claro...”.
Já a propaganda de Kampf ficou a cargo do rei da propaganda José Göbbos, um rapaz magro esquelético com cara de assassino, autor da seguinte frase: “Uma mentira contada mil vezes enche tanto o saco dos demais que os vence pelo cansaço”. Göbbos criou diversas músicas daquelas que grudam no ouvido, como a famosa “Nordeste é uma peste”, bem como foi ele quem retratou em diversos cartazes espalhados pelo Estado os nordestinos com um semblante traiçoeiro roubando o emprego dos fluminenses. Em conjunto com Kampf, Göbbos criou o forte símbolo do partido: uma cruz, que nada mais era que um Cristo Redentor negro, cujo olhar lembrava o das aves de rapina. Por que os kampfinistas escolheram como símbolo um cristo redentor negro eu não sei; apenas sei que, pra mim, narrador, ele representava essa época na qual o Rio de Janeiro mergulharia profundamente nas trevas.
            Wilhelm atraía multidões com sua hipnotizadora retórica e intensa propaganda e virou a sensação do momento, sendo o assunto mais comentado. Esse discurso proferido no Aterro do Flamengo foi o mais aplaudido de todos e demonstra que Wilhelm não tinha muito apreço pelos nordestinos:

“Amigos do Rio de Janeiro! Me refiro aos verdadeiros fluminenses e não aos nordestinos, que obviamente são do nordeste, e para lá devem retornar.  Vocês já imaginaram como seria maravilhoso se o Rio de Janeiro ficasse sem nordestinos? Esse sim poderia ser chamado de “Estado Maravilhoso”, assim como chamamos a cidade do Rio! Oh, esse sonho pode se realizar, se você me der a chance, votando em mim! (aplausos).
É evidente que todos os problemas do Rio de Janeiro são causados pela presença dos nordestinos, essa barbárie em meio à civilização. Eles são mal educados, falam num dialeto ininteligível, vêm ao nosso Rio sem preparação alguma e já trazem logo a família inteira, bebem cachaça o tempo todo e só fazem merda! (risos). O que eles vêm tanto fazer aqui? Voltem para a Paraíba e o Ceará, nós não queremos vocês aqui! (muitas palmas). Sei que o nordeste é composto por Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe, mas Paraíba e Ceará é o nordeste por excelência, esses são os piores! Será que eles vêm até aqui por causa da pobreza? Ora essa, eles são pobres porque querem! Não são gente trabalhadora! Por que naquele interior seco eles não fazem um monte de cassinos e hotéis de luxo, como Las Vegas fez no deserto? Com esforço conseguimos tudo na vida, mas eles não querem se esforçar, não é mesmo? São um bando de preguiçosos! (aplausos). Vocês vão deixar esses parasitas que vieram de fora roubarem o emprego de vocês? Amigos, se votarem em mim, deixarei o Rio de Janeiro “nordestinenrein”, e, sem os nordestinos, vocês terão uma cidade mais bonita, mais limpa, com pessoas mais bem preparadas e falando uma língua que você é capaz de compreender. Muito obrigado. (estrondo de palmas e grito de “fora nordestinos”).”

Wilhelm já tinha ganho a zona sul inteira e parte da zona norte (como, por exemplo, a Tijuca) e região dos lagos (a burguesa Búzios), porém a baixada fluminense possui inúmeros nordestinos, e ninguém votaria em Wilhelm lá (com exceção de uns poucos que já queriam mesmo voltar pro nordeste e pensaram na possibilidade de viajar gratuitamente). Nosso amigo então passou a intensificar a campanha a fim de garantir a vitória. Bandeiras do Rio de Janeiro com a inscrição PF estavam em toda parte. Muitos milionários das indústrias armamentista, química e metalúrgica investiram pesado na campanha de Kampf, já prevendo que com essa ideologia e com esse sobrenome ele levaria inevitavelmente o país à guerra.  
  Conforme o esperado, preconceitos contra os nordestinos começaram a aparecer, como, por exemplo, não pagar 10% aos garçons nordestinos. Houve um caso desses num restaurante do Leblon, onde um cliente fluminense falou ao garçom nordestino: “Quando eu te pedir paçoca, você me traz o doce e não farofa, seu nordestino burro! Não vou te pagar o serviço”. Além disso, quem ouvia arrocha, axé ou forró era vilipendiado (o mesmo aconteceria com o baião, mas infelizmente ninguém mais ouve música boa por aqui). A cidade estava em polvorosa quando finalmente ocorreram as eleições. Wilhelm Kampf venceu já no primeiro turno. Começaria o suplício do povo nordestino.



Capítulo 2 – Kampfinização  

Apesar de obter o poder de forma democrática, Wilhelm Kampf não perdeu tempo em conquistar o poder total no Rio de Janeiro. Com o controle da Polícia Militar, da Polícia Civil, de uma Polícia Secreta recentemente criada, e do Povo, não foi difícil se assenhorar da imprensa e dos três poderes. Ele então cria rapidamente uma série de leis estaduais, as chamadas “leis do Rio de Janeiro puro” ou “Reinheitsgebote”. Uma delas autorizava as futuras deportações de nordestinos; outra obrigava os nordestinos a usarem no braço um emblema que consistia num chapéu de cangaceiro com a palavra “nordestino” escrita na parte central; outra proibia no Rio o casamento entre um nordestino e um não-nordestino; mais outra tirava o direito dos nordestinos de serem servidores públicos, médicos, advogados e engenheiros; a última delas proibia o usucapião, retroagindo inclusive para tornar sem efeito legal os usucapiões já finalizados nos trâmites legais. Era um jeito de limpar rapidamente a Baixada Fluminense, que segundo Kampf era uma extensão do nordeste no território do Rio (sem moradia aqui, Kampf imaginou que os nordestinos não resistiriam ao serem mandados de volta para sua região de origem). Nas partes mais pobres da Baixada Fluminense, a regra é a posse mediante invasão, com o ulterior usucapião para fins de legalização. Kampf, com desdém, disse sobre isso um dia: “Só pensam em Usucampeão! É Usucampeão pra lá, é Usucampeão pra cá... Bandidos usurpadores da propriedade alheia! Pagar pela propriedade que é bom vocês não fazem, né?”. 
Wilhelm não pensou duas vezes e, após um decreto de sua lavra, o islamismo se tornou a religião oficial do Brasil. “Com isso eu salvo esse Estado católico, nada laico, de se tornar um Estado fundamentalista crente, controlado por pastores ladrões”, disse Wilhelm sobre seu ato.
Tudo aconteceu muito rápido. Num piscar de olhos foi forjada uma imensa teia burocrática, com centenas de ministérios, departamentos e seções. Milhares de cargos foram criados, e todos queriam uma boquinha nessa festa, pouco importando a ideologia íntima e pessoal; muitos, talvez a maioria, pensavam mesmo era no dinheiro e nas suas carreiras. O kampfinismo tomou conta das universidades, destronando finalmente o marxismo, que detinha o monopólio ali desde a época de Adão. O responsável por isso, homem que corrompeu uma geração inteira de jovens, foi Van Petta, o líder da juventude kampfinista, rapaz branco, loiro, alto e de olhos azuis. Possuindo esses traços, bem como esse vil cargo ninguém imaginaria que Van Petta era nordestino, nascido em Recife, tendo vindo ao Rio de Janeiro ainda criança, razão pela qual não tinha nenhum vestígio de sotaque pernambucano.
Também foi criada a mencionada Polícia Secreta, a NN (Neutralizadora de Nordestinos). Seu chefe se chamava Paul Liszta, um rapaz alto, branco, com traços de mafioso italiano e sotaque irritante. Paul Liszta sempre odiou os nordestinos, e se mostrou o caçador de nordestino mais hábil de todos. “Sou capaz de reconhecer um nordestino a trezentas jardas de distância”, dizia Paul Liszta se gabando. A NN atuando em conjunto com o Ministério de Realocação foi o terror dos nordestinos, indefesas caças desses implacáveis caçadores.
Os kampfinistas eram todos jovens e “estadistas” (nacionalistas em nível estadual). Com unhas e dentes defendiam a supremacia da cultura do Rio de Janeiro ante as influências inferiores e perniciosas da cultura nordestina. Os membros do partido só se comunicavam entre si usando gírias do Rio; o uniforme era leve, estampado e fabricado pela Osckley; além disso, o gesto de cumprimento utilizado pelos kampfinistas era o braço direito estendido com a mão fazendo um hang-loose.  
Esse bando de jovens irados fez uma série de desfiles militares pelas ruas, cantando o grude “Nordeste é uma peste”, e quebrando todos os estabelecimentos comerciais de donos nordestinos, principalmente restaurantes. Num certo dia, esses loucos tiveram a ousadia de pintar de preto o Cristo Redentor, símbolo do Rio de Janeiro. Algumas horas depois, quinhentos kampfinistas armados com explosivos, porretes, martelos, machados e um nunchaku se reuniram e marcharam até o templo dos nordestinos no Rio de Janeiro: o Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Uma banda de forró se apresentava no palco para delírio das centenas de nordestinos que estavam presentes, buscando um momento de merecido lazer após um fatigante dia de trabalho. Chegando lá, o mais exaltado do grupo kampfinista gritou: “A feira dos paraíbas foi criada pro nordestino se sentir em casa... Nordestino, se liga, mermão, o Rio de Janeiro não é a tua casa! Vamo quebrar tudo, galera!!!”. Os kampfinistas transformaram a “feira dos paraíbas” num coliseu nordestino. Foi uma destruição selvagem, que não deixou pedra sobre pedra. Os nordestinos conseguiram fugir, porém alguns ficaram feridos.
A arte também foi kampfinizada. O novo estilo, chamado de arte kampfinista, era clássico, inspirado na arte greco-romana, e louvava a perfeição estética, as virtudes guerreiras e tudo o que era puramente fluminense. Trezentas estátuas de um Wilhelm Kampf alto, forte e idealizado foram feitas e espalhadas pelos quatro cantos do Rio. Seu autor se chamava Marcel Verkauft, um jovem baixinho de óculos, que antes era um artista de verdade, um escultor talentoso e criativo. Contudo o mesmo se vendeu ao vil capital e à traiçoeira fama, passando a somente fazer estátuas de Wilhelm Kampf, seja de Kampf segurando uma cruz kampfinista, Kampf pisando num cangaceiro, Kampf fazendo a saudação do hang loose ou a famosa estátua equestre de Kampf. Wilhelm considerava Verkauft o maior artista de todos.  
Tratemos agora da enorme queima de livros de autores nordestinos promovida pelos loucos kampfinistas.




Capítulo 3 – Queima de livros
“...dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen” – Heine
(Lá onde queimam-se livros, queimam-se também no final pessoas).

Uma enorme queima de livros organizada por Göbbos ocorreu justamente em frente à Academia Brasileira de Letras, no Centro do Rio, essa seríssima instituição que recebeu Sarney e Paulo Coelho, se negando a receber Drummond e Lima Barreto. Uma total afronta! Ato bárbaro e medieval! A cena foi tão chocante que eu, um típico narrador onisciente de histórias, portanto um bibliomaníaco, fui às lágrimas.
Milhares de pessoas, carregando tochas, traziam livros e mais livros para serem ali sacrificados. Göbbos, estreiando, arremessou ao fogo o livro Iracema, do nordestino José de Alencar, e, corrompendo o lema da ABL, gritou: “Ad mortalitatem!”. Em seguida foi um festival de arremessos. Era possível ver as seguintes obras que ali jaziam (alguém já disse que manuscritos não ardem, mas aqueles arderam e muito): Capitães da areia, do nordestino Jorge Amado; O auto da Compadecida, do nordestino Ariano Suassuna; Morte e Vida Severina, do nordestino João Cabral de Melo Neto; um volume de poesia completa, do nordestino Ferreira Gullar; Bonitinha, mas ordinária, do nordestino Nelson Rodrigues; O cortiço, do nordestino Aluísio de Azevedo; Vidas Secas, do nordestino Graciliano Ramos; e, ironicamente, morreu no fogo o livro Fogo Morto, do nordestino José Lins do Rego. Minutos depois sobraria até para o Dicionário, do nordestino Aurélio Buarque.
Uma mulher arremessou ao fogo um exemplar da Canção do exílio, do nordestino Gonçalves dias, dizendo: “Nordestino, o teu exílio é o Rio. Se tem saudade da tua terra, volte logo para o nordeste! Ninguém te quer aqui!”. Outro cidadão arremessou dois livros da nordestina Rachel de Queiroz, dizendo: “Esse aqui, O quinze, eu taco no fogo por você ser nordestina; já esse, o Memorial de Maria Moura, eu taco no fogo por você ter sido uma comunista que apoiou a ditadura de 64, onde já se viu isso???”. Um rapazote magrelo, ao contemplar aquela medieval e imensa fogueira de livros, inadvertidamente deixou escapar sua surpresa, dizendo: “Puxa, eu não sabia que o nordeste tinha dado tanto escritor assim à literatura brasileira”. Por ter constatado uma verdade que ninguém queria ouvir, o rapazote foi espancado pelos demais.
Após, um homem estava para lançar ao fogo o Grande Sertão: Veredas, quando Göbbos viu a cena e o impediu, gritando: “Não, seu idiota, o Guimarães Rosa não é nordestino, é mineiro!”. Um jovem estudante de Direito arremessou a Oração aos moços, do nordestino Ruy Barbosa, berrando: “Ruy Barbosa cabeção!”. Um outro jogou as poesias completas do nordestino Gregório de Matos no fogo, dizendo: “Boca do inferno, vai pro inferno!”. O livro de poesias Libertinagem, do nordestino Manuel Bandeira, que contém o famoso poema Vou-me embora pra Pasárgada, foi atirado aos gritos de “Já vai tarde, Bandeira!”. Até que num dado momento, todos pararam para observar uma curiosa cena: Um senhor bem idoso, com a ajuda de um carrinho, jogou calmamente na fogueira os sessenta volumes do Tratado de Direito Privado, do nordestino Pontes de Miranda.
 Dentre a multidão ensandecida, um deles ainda mais exaltado gritou: “Esses autores envergonham a gloriosa literatura brasileira! A natureza os criou para serem garçons, mas eles teimaram em virar escritores! Agora queimem, nordestinos!”. Ele falara como um profeta, pois “Lá onde queimam-se livros, queimam-se também no final pessoas”.




Capítulo 4 – Primeira solução: DEPORTAÇÃO
De modo a preparar a primeira solução, Paul Liszta ministrou uma palestra sobre Cesare Lombroso aos membros da NN, ensinando como reconhecer um nordestino principalmente pelos traços, mas também pelas suas roupas, gestos ou sotaque. Nesse trecho da palestra, Paul Liszta descreve a aparência do nordestino:
“Dentre os nordestinos, os que mais me irritam são os típicos, aqueles que são o molde que Deus usou para criar os demais nordestinos. Os homens são cabeçudos, orelhudos, baixos, possuem um nariz grande e gordo, pernas arqueadas, e todos usam aquele maldito chapéu; as mulheres são baixas, lentas, têm os ombros largos, as pernas finas, traços de bruxa, usam óculos, e todas têm diabetes, osteoporose e hipertensão arterial (por isso nossos hospitais do SUS vivem cheios!)”.
 Começava a caça aos nordestinos, e o Cristo Redentor pintado de preto assistiu lá de cima esse crime de braços abertos, indiferente. Eu disse crime? Tudo foi feito na mais límpida legalidade, de acordo com os ditames da noção de justiça kampfinista. Afinal, o que é o Justo senão o que os poderosos assim o consideram?
A primeira vítima curiosamente foi uma exceção ao modelo de nordestino exposto na palestra: uma baiana vendedora de acarajé, cuja barraca fica no Largo da Carioca, bem ao lado daquele cristão de bom coração que grita com um megafone “Você merece o inferno!”. Paul Liszta, ao avistá-la, disse: “Senhora, não tenho nada contra os negros, mas como a senhora é baiana, consequentemente é nordestina. Assine esse documento, por favor. A Bahia te espera de volta de braços abertos. Ufa, já não aguentava o fedor da sua comida! Fique tranquila, na Bahia as pessoas comem mais acarajé do que no Rio”.
Tonhão, garçom do BDP, o bar do IFCS, era um rapaz nordestino simpático e brincalhão, amigo de todos e amigo principalmente de uma boa bebida alcóolica (podia ser ruim também a bebida, contanto que fosse alcoólica). Enquanto bebia em serviço Tonhão foi pego pela NN, e alegando inocência sem mesmo saber do que estava sendo acusado, ele disse: “Ma o que que eu fiz? Tu é doido, é?”. Entretanto, ele de fato era nordestino, logo, para o poder constituído ele era culpado...
Paul Liszta, com seus olhos de lince, avistou na rua uma mulher loira, apontou pra ela e disse: “Nordeste detected! Senhora, não adianta descolorir o cabelo, seus traços denunciam”. Ele era tão implacável que não poupou nem a própria empregada doméstica, a Adineuda, uma “nordestina molde” risonha e amante de forró. Futuramente ele ficaria irado ante a dificuldade de arrumar uma empregada que cobrasse tão barato quanto ela.
 A primeira leva de nordestinos que foi despachada sumariamente do Rio para o nordeste era de aproximadamente seis mil pessoas. Chegando lá, ocorreu o primeiro problema da primeira solução: Os Estados nordestinos se recusaram veementemente a receber seus conterrâneos. O governador da Paraíba protestou, dizendo “Isso não é justo, não temos como receber essa quantidade de pessoas, e nem fomos ouvidos, fomos pegos de surpresa na trairagem!”. Já o governador do Ceará exclamou: “O nordeste já está repleto de nordestinos!”. Com isso houve uma grave crise diplomática entre o Rio e os estados do nordeste.
Como pôde a PresidentA Dilma ficar tão inerte ante a política ilegal e criminosa de Wilhelm Kampf é coisa que ninguém entendeu. Este ficou irado quando soube da resistência, e disse o seguinte a Paul Liszta: “Parceiro, não quero saber, se os nordestinos não querem os próprios nordestinos, nós então não queremos eles duas vezes. Vamo pensar urgentemente no que fazer com essa penca de gente indesejável, valeu?”. E Paul Liszta respondeu, fazendo a saudação hang loose: “Tranquilo, mermão, tranquilo!”.




Capítulo 5 – Segunda solução: CONCENTRAÇÃO

 Após refletir profundamente, Kampf decide que o melhor a se fazer é prender todos os nordestinos em campos de concentração e usá-los como mão de obra escrava. Para convencer a população fluminense, ele proferiu o seguinte discurso para uma plateia de dois milhões de ouvintes na praia de Copacabana:
“Amigos fluminenses, pensem num nordestino baixinho, de chapéu, sotaque irritante, com as pernas finas e a parte superior do corpo larga. Seria ele igual a nós? Mas é evidente que não! E se são diferentes, inferiores, por que merecem os mesmos direitos a que nós, fluminenses de verdade, fazemos jus? (palmas e gritos). Vejam, essa parte superior do corpo mais larga só confirma o que Arthur Linz disse sobre os nordestinos, que eles foram destinados pela natureza para o trabalho braçal, coisa que eles não fazem, só ficando inertes, deitados nas suas redes a esperar o depósito do bolsa-família! E fazem mais e mais filhos para ganharem mais bolsa-família. E como são férteis esses nordestinos! Para cada pessoa que nasce no seio de uma família civilizada, oitenta nordestinos nascem, aguardando uma péssima educação em casa, completamente desprovida de valores, estando nesse mundo somente com a missão de perpetuar a barbárie. Se não querem trabalhar, vamos força-los a trabalhar para nós em campos de concentração!”. (Palmas e apoio total). 
  Os nordestinos não são um povo passivo, que suporta calado e indefeso a opressão. São todos machos, brabos e cabras-da-peste. Após ler no jornal o discurso maldito, um garçom cearense e parrudo chamado Josenildo foi até uma praça pública em Fortaleza e bradou: “Nós, que somo fi de Lampião, temo que nos unir e RESISTIR a essa injustiça! Sempre servimo com muito zelo esses bicho riquinho ingrato, seja na faxina ou sendo garçom. E é isso que recebemo em troca? Esse ódio sem cabimento? Já trabalhamo muito e ganhamo poco, ma virá escravo já é demais da conta. Vamo pa peleja!”.
O discurso de Josenildo inflamou os nordestinos, que se armaram com peixeiras, umas poucas espingardas, vestiram roupas de cangaceiro, e marcharam cheios de ódio no coração em direção ao RJ cantando “Mulher Rendeira”. Os nordestinos, mesmo com suas diferenças, se uniram, porém um episódio ou outro de preconceito ocorreu entre eles, fato que beira ao absurdo, mas o ser humano é esse ser absurdo, não há o que se fazer a respeito. Cito como exemplo a frase que um cearense arretado proferiu contra um paraibano que não sabia recarregar a espingarda: “Esse paraíba viado fi duma jumenta nunca atirou de espingarda na vida! Odeio esses paraíba!”.  
Nesse conflito ulteriormente chamado de guerra civil brasileira o nordeste pelejaria movido pela autopreservação e o direito à dignidade, enquanto que o Rio, com ajuda de São Paulo e os Estados do Sul lutariam movidos pelo ódio e preconceito, essa dupla inseparável.
Ao entrarem na diminuta Varre-Sai, no Estado do Rio, os nordestinos tiveram uma supresa: Van Petta estava sozinho andando na rua despreocupadamente. O líder da juventude kampferiana havia acabado de proferir na recém-inaugurada Universidade Kampfinista de Varre-Sai um discurso para os estudantes intitulado “Já varreram demais, hora de sair”, e o mesmo só foi reconhecido pelos nordestinos porque trajava seu elegante uniforme da Osckley. Josenildo falou aos seus companheiros: “Óia um deles dando sopa aí! Não vamo deixar esses bicho escravizar nós nordestino!”. Ao ver aquela massa de cangaceiros com sangue nos olhos e peixeira em punho vindo correndo e berrando em sua direção, Van Petta assustado e ofegante, gritou a todos dizendo: “Calma, companheiros, eu sou nordestino também! Tenho o cabelo loiro porque minha ascendência é holandesa, sou até um parente distante de Mauricio de Nassau! Irmãos, tenham piedade desse pobre nordestino!”. Porém, os nordestinos não engoliram essa. Josenildo, erguendo uma ripa de madeira que havia encontrado na rua, disse: “Se ocê é memo nordestino, ocê é um traidor fi duma égua! Segura esse disgramado dos diacho”. Os nordestinos seguraram Van Petta, que gritava desesperado pedindo clemência. Então Josenildo abaixou as calças de Van Petta e empalou o mesmo sem dó. A madeira saiu pela boca daquele kampfinista; por onde ela entrou fica fácil adivinhar. Após esse, que foi o maior acontecimento na história de Varre-Sai, os nordestinos, eufóricos, avançaram rumo à cidade do Rio de Janeiro.
Quando chegaram em Miracema, os nordestinos foram emboscados e completamente esmagados pelos kampfinistas, muito mais disciplinados e melhor equipados. Josenildo, o líder, foi um dos primeiros a morrer. Ao todo um milhão de nordestinos morreu, outro milhão ficou ferido e dois milhões foram presos em campos de concentração (Wilhelm conseguiu o que queria). As cabeças dos nordestinos mortos foram cortadas para dar o exemplo, e os corpos deixados aos urubus; o escultor Marcel Verkauft fez na Nova Iguaçu “nordestinenrein” uma enorme escultura de um Wilhelm de três metros segurando as cabeças dos nordestinos para louvar a vitória kampfinista. Nessa altura, não só Nova Iguaçu, como o Estado do Rio de Janeiro inteiro estava sem nordestinos. Isso gerou uma enorme dificuldade de se repor essa mão de obra usando somente moradores fluminenses. Muitas empresas foram obrigadas a declarar falência e uma crise econômica se instaurou no Rio.
 Os Estados vencedores tiraram a inerte presidenta Dilma e colocaram Wilhelm como ditador do Brasil, e o Rio de Janeiro virou a capital do país. O primeiro passo de Kampf, com a feitura das leis de praxe, foi tirar o nordeste do mapa do Brasil, que deu uma emagrecida considerável, ficando no formato de um cavalo-marinho. Agora não mais fazia parte do Brasil o Baião, o Frevo, o Forró, o Maracatu, o Bumba-meu-Boi, as Festas Juninas, a Literatura de Cordel, o Cinema de Glauber Rocha, o Baião de dois, os humoristas cearenses, o Manguebeat, a Tropicália, a Carne de sol, bem como todos aqueles gênios queimados na mencionada fogueira medieval. Os números de desenvolvimento e educação melhoraram consideravelmente sem o nordeste, e a propaganda kampfinista se valeu disso (“vejam como melhoramos o IDH do país!”). Já os hospitais públicos brasileiros continuaram lotados...
O novo país passou a se chamar República de Virgulino (bocas maldosas disseram que o idioma falado nesse novo país era o nordestinês, só compreendido entre os nordestinos). Alguns nordestinos donos de terra, que já tinham cargos públicos no nordeste, como deputados e senadores, continuaram no poder na Rep. de Virgulino e governaram o novo Estado. Digo, governaram apenas no papel, porque na prática mandava o Brasil, que ocupava militarmente o nordeste.
Um campo de concentração foi criado em Varjota, Fortaleza, e Wilhelm foi visita-lo na companhia de Arthur Linz. Pela primeira vez Kampf conheceria o nordeste. Antes do campo, ele fez um turismo, conheceu Iracema, a carnaúba, as praias, as falésias, a ponte dos ingleses. “Por Alá! Eu não sabia que aqui era um lugar tão bonito!”, disse ele. Contudo, Wilhelm, como um típico turista que chega naquelas bandas, reclamou: “Mas onde está o nordeste de verdade, a miséria, o chão rachado, os esqueletos das vaquinhas?”. Então ele deixou os pontos turísticos e fez um verdadeiro “tour da seca”, terminando no KZ Varjota.
Durante o tour da seca, ocorreu um bate papo filosófico entre Wilhelm Kampf e Arthur Linz. Este começou dizendo: “Nietzsche dizia que existe um abismo entre a linguagem e as coisas que ela representa. Se liga como é bizarro, usando a palavra ‘nordestino’ a linguagem trata como iguais um baiano e um cearense. O mesmo ocorre quando usamos a palavra ‘oriental’, como se um libanês fosse igual a um japonês. Fala sério...”. Wilhelm então responde: “Parceiro, você não vê semelhanças entre os diferentes povos nordestinos? Se liga, né! Todos falam estranho, são ignorantes, moram em estados pobres, roubam nossos empregos, e o mais óbvio: todos moram na região nordeste do Brasil, hehehe. Quanto aos orientais, você tá certo, como podemos tratar igualmente um seguidor dos ensinamentos do Profeta Muhammad e um infiel?”. A conversa estava nesses termos quando eles puderam avistar de longe o KZ Varjota.
Não é a primeira vez que campos de concentração são feitos no nordeste. Nas grandes secas de 1915 e 1932, foram criados campos de concentração no Ceará para que não se repetisse o que já havia ocorrido na também histórica seca de 1877: a invasão e saque da capital Fortaleza pelas vítimas da seca.
O KZ Varjota foi feito numa área de caatinga e era um campo vasto de terra envolvido por um arame farpado. Naquela área delimitada pelo arame havia três galpões, um usado como dormitório, outro como refeitório e o último como fábrica de armamentos, onde os presos, em regime de escravidão, trabalhavam para os industriais que bancaram a candidatura de Kampf. Ao chegar no KZ Varjota, Kampf viu uma criança esquelética e barrigudinha, que se chama Vinicius e disse com escárnio: “Olha como as crianças estão barrigudinhas, ninguém pode nos acusar de estar alimentando mal elas!”. Na verdade, a escassa comida que os kampfinistas distribuíam aos presos do campo só fornecia diariamente um terço dos nutrientes mínimos necessários ao bom funcionamento do corpo humano. A mãe de Vinicius foi até Wilhelm e disse: “Sinhô presidente, brigado pela comida que ocê nos dá. É poca sim, mar antes nem sempre eu tinha comida pa da po meus doze fio”. 
Restou claro para todos que a Concentração possuía uma série de problemas graves: Era muito difícil organizar todos os campos de concentração, levar mantimentos e manter a ordem; os gastos necessários à manutenção dos campos eram enormes; sucederam muitos episódios de revolta devido ao trabalho escravo, insalubridade e pouca comida; e o maior problema de todos: Os kampfinistas não sabiam o que fazer com tanto nordestino, pessoas indesejadas.
Quando Wilhelm deixou o KZ Varjota, um mau pensamento brotou na sua mente: “Quanto nordestino junto! Como eles são inúteis... Não, não, são perniciosos mesmo! Uma praga! Se eles continuarem vivos vão se reproduzir! E como eles são férteis!!! Todas as soluções tentadas falharam, só nos resta a Ultima ratio... É preciso cortar o mal pela raiz”. 
  


Capítulo 6 – Solução Final: EXTERMINAÇÃO
 Wilhelm por fim resolveu negar ao nordestino o seu direito de existência. Esse discurso, televisionado para todo o Brasil, foi o mais inflamado de todos, e visava o apoio popular para a implementação da solução final:
  “Amigos brasileiros, nossa política de deixar o Brasil “nordestinenrein” está sendo um sucesso, porém ela deve avançar mais, o problema ainda não foi solucionado. Vocês não percebem como dávamos poder aos nordestinos? Deixávamos eles cuidando de nossos filhos, fazendo nossa comida... Percebam a tragédia que pode acontecer caso os nordestinos voltem a ter o direito de convívio entre nós: As babás poderão matar nossas crianças; os porteiros, motoristas e empregadas, que sabem tudo da nossa vida, nos roubarão quando desejarem; e os pedreiros, estes são os mais perigosos! Eles podem de propósito construir errado nossa casa, que desabará e certamente matará na hora toda a nossa família! Vocês estão compreendendo? Eles podem a qualquer momento nos matar e matar nossos queridos filhos! Brasileiros, eis que vos digo: Matemos eles primeiro! E comecemos pelos mais perniciosos, os cearenses e paraíbas, nordestinos por excelência! Nordestinos, seu bando de messiânicos, vocês estão liquidados e ninguém vai vir salvar vocês, aceitem isso!”.
Todos os cegos presentes aplaudiram durante cinco minutos esse discurso odioso. E eis que os campos de concentração se transformaram em campos de extermínio.
*
Poucos nordestinos ricos conseguiram escapar da morte pagando altas somas de dinheiro. Sobre esses, é interessante observar que eles não gostam de ser confundidos com os outros, os nordestinos pobres.  Como ficam irados quando alguém associa o nordeste à seca e à miséria! “O nordeste não é pobre e seco como querem nos fazer crer”, brada a elite nordestina. Eles preferem negar a existência de ambos os problemas, problemas dos outros, pois se sentem diminuídos por eles.
Os nordestinos pobres, sem dinheiro algum, não puderam escapar. O divertido Tonhão tentava animar a todos no KZ Varjota contando a seguinte piada: “Antes de vir pra essa prisão eu sonhava em ir pros steitis, pra California... O máximo que eu consegui foi morar lá na California, em Nova Iguaçu”. Enquanto todos gargalhavam, os kampfinistas chegaram com a lista negra dos escolhidos para serem fuzilados. Tonhão foi escolhido na primeira leva e colocado no paredão. O próprio Kampf estava presente e daria a ordem fatal aos soldados. Tonhão reconheceu Kampf e disse: “Tu é doido é? Sempre te servi bem, com educação... Não fiz nada pra me tacarem balaço, homi!” E Kampf finalizou, dizendo: “Mas você é nordestino, e dos piores, já que é do Ceará. Lembro que você bebia muito, Tonhão... Agora não vai mais beber, adeus!”.  Então lágrimas escorreram dos olhos de Tonhão, e ele cantou, emocionado:

Eu perguntei a Deus do céu, ai
    Por que tamanha judiação.

           Kampf deu a ordem de fuzilamento e vinte balas atingiram o peito de Tonhão, que morreu sem ter feito mal algum pra ninguém. Vinicius, sua mãe e seus onze irmãos morreram de fome dias depois, pois a comida nos campos de concentração, que já era pouca, parou de ser fornecida quando a solução final foi implementada. Adineuda, que também se encontrava presa no KZ Varjota, milagrosamente foi uma das poucas pessoas poupadas, e viveria para contar a história.
Ao todo foi aproximadamente cem mil o número de nordestinos mortos, seja por fuzilamento ou fome. A notícia do começo da matança chegou aos ouvidos dos norte-americanos, xerifes do mundo; esses sim certamente não quedariam indiferentes.


Capítulo 7 – EUA declaram guerra ao Brasil

Os EUA e os países europeus protestaram contra o massacre dos nordestinos, afinal todos eles tratam muito bem seus imigrantes e não são xenófobos. Vislumbrando no kampfinismo o renascimento do nazi-fascismo, os EUA declararam guerra ao Brasil (até que dessa vez o discurso americano que justifica o uso da força teve algum sentido).  Os americanos começaram bombardeando por seis dias incessantemente os pontos estratégicos do Brasil, como radares, bases aéreas, bases marítimas, refinarias, comunicações, etc. Por engano, acabaram acertando uma bomba atômica no Engenho Novo, que foi varrido do mapa. Ninguém sentiu falta dele.
Quando toda a infraestrutura brasileira foi destruída pelos bombardeiros ianques, os americanos invadiram o Brasil e armaram o projeto de exército nordestino, que antes só possuía peixeiras e poucas espingardas, com o fuzil HK 416/417 e equipamento moderno. Os EUA também enviaram tropas americanas para lutarem contra o exército brasileiro, usando armas nucleares, químicas, biológicas, três porta-aviões, tanques, drones, caças, bombardeiros, navios e submarinos. O Brasil, que após a ditadura considera as forças armadas um inimigo e por isso não investe nelas o quanto deveria, lutou apenas usando seu Exército destreinado e sem experiência, portando um fuzil FAL; sua Marinha obsoleta, se bem que possui um porta-aviões; e sua Aeronáutica, essa a mais sucateada de todas as três forças.
Os nordestinos encararam a vinda dos americanos como se fosse uma intervenção divina para salvá-los.  No campo de concentração de Varjota, Adineuda, a ex-emprega doméstica de Paul Liszta, com as mãos para o céu apontou um drone americano e exclamou: “Ó o messias! Ele veio nos sarvar! Brigado, sinhô Deus! Brigado, meu padin Ciço!”
Cumpre agora tratar dos três líderes das forças armadas brasileiras que foram trucidados pelos norte-americanos. O Almirante Jorge Bickel sempre amou a marinha, e queria formar uma família. Então ele se casou com Maria e teve um filho chamado Hugo. Como Jorge Bickel vivia viajando, Maria um dia pressionou Jorge enviando-lhe uma carta com os seguintes dizeres: “Ou eu ou a marinha”. Jorge conseguiu hoje alcançar o maior posto da marinha de guerra do Brasil, e mensalmente envia a pensão alimentícia à sua esposa. O Marechal Olden era um velho corcunda de 90 anos que louvava a guerra, mas costumava dizer com pesar que nasceu no país errado, porque o Brasil era um país pacifista sem espírito guerreiro. Velhote old school, Olden defendia o exército, a disciplina, a família tradicional, a pátria, a ordem, os bons costumes, os cidadãos de bem, a Igreja e a propriedade privada, e tinha uma tatuagem no braço direito escrito “Bolsonaro”. O Brigadeiro Eggenstein era um amigo de Kampf que não tinha experiência prática, mas como era um talentoso autodidata, leitor da Arte da guerra do Sun-tzu e do Maquiavel, e do Da guerra do Klausewitz, Kampf escolheu ele para liderar a aeronáutica brasileira.
Na Batalha naval, Jorge Bickel perdeu todos os seus nove submarinos e cem navios foram afundados. Na batalha aérea, os brasileiros não conseguiram tirar a vida de um americano sequer.  A guerra contra os EUA foi um verdadeiro massacre norte-americano, assim como havia sido a guerra civil um massacre fluminense. A diferença de forças em ambos os casos era proporcionalmente a mesma.
O Brigadeiro Eggenstein, vendo que a derrota brasileira era iminente, fez uma ligação urgente para Wilhelm Kampf e disse a este: “Mermão, a gente tem que recuar, os americanos tão avançando, ganhando bases e pontos estratégicos importantes e massacrando o Brasil”. Mas Wilhelm confiava cegamente em sua vitória, e gritou no outro lado da linha “Não recuem! Resistam até o último homem!”. O Brigadeiro, com educação, replicou “Mas, mermão, eu li no A arte da guerra que...” “Não recuem, cacete!!!”, berrou, irado, Kampf. O Brigadeiro aceitou contrariado, desligou o telefone e pensou alto: “Que cara chato, fica dando palpite em tudo”.
Muito ofegante, Paul Liszta entrou no Palácio Guanabara, fez rapidamente a saudação do hang-loose e deu péssimas notícias a Wilhelm Kampf: “Mermão, fudeu, trezentos mil soldados americanos estão invadindo o Rio de Janeiro juntamente com um batalhão da República de Virgulino”. “Nein, nein, nein!!!”, respondeu Kampf, dando um soco potente na mesa. O pânico reinou no Palácio Guanabara. “Esses americanos desgraçados vivem se metendo onde não são chamados!”, disse Kampf, em seguida se virando pra direção de Meca e rezando desesperado a Alá.
Teve início a famosa e épica Batalha do Rio de Janeiro. Foi uma matança sem precedentes, milhões de brasileiros morreram e a cidade foi reduzida a um monte de escombros. Wilhelm finalmente foi preso no Palácio Guanabara pelo batalhão da República de Virgulino, que conseguiu chegar lá antes dos americanos. Os nordestinos aos gritos de “Morte ao fio do belzebu!” desembainharam as peixeiras e Wilhelm, indefeso, recebeu sete estocadas. Após, os nordestinos levaram de avião o inconsciente Kampf até o Ceará. O voo ocorreu sem problemas, mas no interior do avião o clima estava tenso.  Kampf perdia muito sangue, muitos queriam aplicar logo um golpe de misericórdia, outros impediam. Ninguém sabia ao certo o que fazer com o ex-ditador. Quando o avião chegou ao Ceará, e todos desceram com o moribundo num vasto campo deserto, um nordestino se apresentou à frente de todos e falou: “Sou Raimundo Nonato, um dos sete fio do falecido pai Antonho, vulgo Tonhão. Esse disgramado aí matou meu pai. Eu sei bem o que esse bicho merece!”. Então o rapaz jogou Wilhelm semiacordado num mandacaru, o famoso cacto do nordeste, que assim como os nordestinos, resiste à seca com bravura. As costas de Kampf bateram nos espinhos, que rasgaram sua carne. Percebendo então que o cacto lembrava o formato de uma cruz, Raimundo Nonato e os nordestinos decidiram crucificar Wilhelm naquele mandacaru cearense, debaixo de um sol de 40 graus. E o que havia começado com uma cruz terminaria na cruz...
Os nordestinos fizeram em volta do corpo uma festa regada à cachaça e dança ao som de zabumba, sanfona e triângulo. No meio da curtição, Raimundo Nonato, que bebia que nem o pai colocou um chapéu de cangaceiro no defunto crucificado.
Com o fim do conflito, o número de mortos norte-americanos e virgulinos foi ao todo vinte e sete. Já o número de brasileiros mortos chegou a dez milhões. Outros milhões de brasileiros foram feitos prisioneiros e liberados dias depois, porque os EUA pensaram que, prendendo os brasileiros, eles estavam perdendo um precioso mercado consumidor.
Os demais líderes kampfinistas que sobreviveram foram julgados pelos norte-americanos na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e tal tema merece um capítulo próprio.



Capítulo 8 - Os julgamentos de Mossoró

 Acabara o festim kampfinista, agora era a hora de pagar pelos erros (para sorte dos kampfinistas sobreviventes as penas que os americanos davam eram muito mais leves que as penas que os nordestinos costumavam aplicar). Alguns líderes do partido conseguiram fugir para a Europa, muitos foram encontrados e presos, outros estão sendo caçados por lá até hoje. Vejamos agora as sentenças recebidas pelos kampfinistas em Mossoró.
Tentando se defender da acusação de prática de crimes de guerra o velho Marechal Olden disse que só cumpria ordens. Tal defesa não colou... Ele foi condenado a 11 anos de reclusão, mas como já estava bem velho, morreu do coração no dia seguinte. O Brigadeiro Eggenstein falou que estava numa guerra, e “na guerra tem mais é que matar mesmo”. Foi condenado a 13 anos de reclusão e lembrado polidamente pelo juiz de que ele não havia matado ninguém. O Almirante Jorge Bickel disse que todo esse julgamento era um teatro ridículo, porque se o Brasil tivesse ganho a guerra, quem estaria no banco dos réus seriam os americanos e nordestinos, sendo certo que a justiça não é uma existência em si, mas sim uma propriedade dos vencedores. Devido a essa defesa ousada, o Almirante só pegou uma pena de prestação infinita de serviços à comunidade.  Arthur Linz, o filósofo corrompido pelo poder é julgado e condenado a reler Crime e Castigo, pra ver se dessa vez ele entende o livro corretamente. Paul Liszta foi condenado a conviver em paz com os nordestinos e a parar de chamar todos eles de baianos. Marcel Verkauft, por ser um vendido, foi condenado a ler O retrato, de Gogol. Os juízes aproveitaram para julgar a mulher de Wilhelm, Marienne Kampf, condenando ela a uma pena de multa por ter incutido ideias gaúchas na cabeça do marido.
José Göbbos não foi julgado em Mossoró, e aqui está o motivo disso: vendo que tudo estava perdido, Göbbos matou com veneno todos os seis filhos Karl, Karla, Katia, Kriemhild, Kamille e Kleydislaine; minutos depois a esposa se matou da mesma forma. Quando chegou a vez de Göbbos, ele ficou com medo e saiu correndo gritando e pulando. Foi preso e internado num manicômio.
Quando os julgamentos terminaram, os americanos, aproveitando que já estavam por aqui mesmo, resolveram ocupar militarmente a floresta amazônica.   



Capítulo 9 - Deskampfinização

Com a queda dos kampfinistas, o nordeste voltou a fazer parte do Brasil, e a fake e artificial Brasília é hoje a capital do país novamente. Os EUA, pra variar, bancaram a reconstrução do país, e lucraram muito com tal empreitada. Isso sem mencionar a Amazônia, abocanhada pelos norte-americanos, sob o argumento de que “A Amazônia é o pulmão do mundo, ela é de todos”.
Foram feitas cotas para nordestino por motivos de reparação histórica.  Além disso, foi criado o crime de nordestinofobia, com pena de 10 a 20 anos de reclusão, sendo também proibidos por lei a arte kampfinista, o símbolo do cristo negro e a saudação de hang loose (esta última proibição deixou os surfistas irados). O Cristo foi pintado de branco, como o original, e as trevas finalmente deixaram a nossa cidade.
Existe um grande museu do holocausto nordestino no centro do RJ, e muitos memoriais, como placas e esculturas foram espalhados pelo país. A “Feira dos paraíbas” foi reconstruída, e está mais animada do que nunca, com apresentações musicais de grupos nordestinos e inúmeros restaurantes servindo deliciosas carnes de sol e o imbatível baião de dois. Os campos de concentração viraram atrações turísticas. Naqueles lugares de morte os casais hoje se abraçam e tiram selfies rindo.
Os ricos industriais que bancaram a campanha de Kampf e lucraram muito com ambas as guerras fizeram autobiografias para pagar seus pecados, dando a elas nomes como “Eu financiei Wilhelm Kampf”, contudo não convenceram muita gente quanto à sinceridade desse arrependimento.
Raimundo Nonato conseguiu um emprego de garçom no BDP, onde seu pai trabalhava. Ele virou o maior ídolo do nordeste, se transformando num verdadeiro herói mitológico, mas como é um rapaz humilde, não gosta de ficar falando sobre isso.
Adineuda, fonte viva de toda essa história, constantemente dá entrevistas, ficando famosa e milionária. Ela cobra um cachê de vinte mil reais somente para permanecer meia hora em um forró.
Por fim, o islamismo não é mais a religião oficial do Brasil, e o país voltou a ser esse estado pseudolaico com o qual estamos acostumados.
Hoje no Rio de Janeiro e no Brasil todos se dão muito bem com os nordestinos (poucos são os grupos neokampfinistas, que ainda insistem no erro). Mas o assunto é um tabu, ninguém gosta de falar sobre tal episódio delicado e há um sentimento profundo de culpa nos brasileiros, mesmo naqueles que não viveram nessa época.

                                                                 FIM

POSFÁCIO PARA O AMIGO G.K.

Recebi autorização expressa do meu amigo G. K. para criar essa história totalmente fictícia baseada em opiniões dele não muito amistosas sobre os nordestinos, contudo opiniões que distam bastante dos exageros acima escritos por mim visando fins literários e educacionais. Isso é óbvio e nem precisava ser dito. Wilhelm Kampf, minha criação, é um verdadeiro monstro; já G. K. é um rapaz bom, religioso, inteligente, estudioso, inclusive é a pessoa com mais capacidade para analisar um fato histórico que eu conheço. Só quanto aos nordestinos sua interpretação falhou.
 É mais fácil negar a existência dO outro, dar as costas aO outro, destruir O outro, do que enxergar O outro e tentar compreender sua cultura e seus valores. Não restam dúvidas de que lidar com O outro é um grande desafio (e quem nunca deu uma de Wilhelm Kampf que atire a primeira pedra); O outro não fala como nós, não pensa como nós, não ouve a música que nós ouvimos e não se veste como nós. Todavia é dever de todos encarar esse desafio. O mundo é mais belo justamente pela pluralidade. Que maçante seria o mundo se só houvesse um povo e uma cultura. Imagine quão pobre seria o Brasil se o nosso ditador da história ‘carioquisasse’ inteiramente ele. Saiba que quem, movido por seu preconceito, quiser retirar do Brasil os nordestinos, índios ou negros, retirará desse país não só inúmeros gênios, como também a essência mesma dessa misturada terra, pois o Brasil só é completo, só é Brasil, com nordestinos, índios e negros. Além disso, sem o nordeste, o excelente autor dessa história não existiria, porque ele é filho de uma alagoana. Meu amigo, o teu preconceito não te deixou ver que, em verdade, os principais problemas do Rio de Janeiro atual são a miséria, a falta de educação e saúde públicas de qualidade, a corrupção, o trânsito caótico, o caos urbano, a poluição, o nível pífio das nossas universidades, a nossa malandragem (no pior sentido da palavra), o desrespeito ao próximo, a indiferença, a limitada possibilidade de acesso à cultura, os políticos despreparados e descompromissados, a atuação truculenta da nossa Polícia Militar, o aumento da homofobia, do machismo, do preconceito racial e da intolerância religiosa, entre muitos outros exemplos. E não, amigo G.K., a culpa de todas essas mazelas certamente não é dos nordestinos.  Quer você aceite ou não, os nordestinos são uma força de trabalho indispensável aqui no Rio. Ao contrário de vilões, os nordestinos pobres são vítimas do sistema injusto e da natureza, ambos implacáveis e indiferentes ao sofrimento humano. Como você pode crer que a origem de todo o mal de uma cidade seja um grupo que consiste na mão de obra mais barata da atualidade, os ‘escravos modernos’ indispensáveis ao sistema? Eles são um problema ou a consequência de um problema? E aquela criancinha de Varjota, magrinha e barrigudinha ao mesmo tempo, suja, descalça, desnutrida, vestindo trapos. Você não pensa nela? Ela, que mora num lugar sem oportunidades, sem dignidade. Menos preconceito e mais pensamento na criancinha de Varjota, é disso que precisamos.
Veja só, G. K, você é um membro do islamismo, e o que você faz com os nordestinos é a mesma coisa que fazem contra os muçulmanos. Para muitas pessoas, movidas pelo preconceito, os muçulmanos não passam de loucos homens-bomba.

Então, G.K., é chegada a hora da sentença: Por você considerar que os nordestinos são o maior problema do Rio de Janeiro (e esse e só esse foi o seu crime, que fique claro), te condeno a ler esse texto e refletir sobre o seguinte: Para onde as ideias podem levar. Em algum lugar do mundo, numa época não tão distante, ideias como a sua geraram uma doutrina assassina que matou milhões. E tudo começou com uma simples ideia... O mundo atual precisa urgentemente de mais tolerância para com os nordestinos, mas também para com os outros Outros, como os gays, os adeptos das religiões africanas, os muçulmanos, os negros, entre outros Outros). É nesse mundo que eu acredito, é esse mundo que eu defendo. E você, amigo G. K., quer finalmente se juntar a mim?”.

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