sexta-feira, 30 de outubro de 2015

METAPOEMA

Minha meta é escrever um poema
Que seja lido e compreendido por todas as gerações,
Que extraia rios de lágrimas dos olhos
De todas as raças e classes sociais

A tua meta é enriquecer
e para atingi-la tu gastarás tua vida,
tua saúde e tua verdade.
Contudo, somos velhos amigos, e te desejo boa sorte.

A minha meta é escrever um poema
Tal qual um colosso, um titã,
que abarque toda a nossa era,
e seja uma mistura de amor e abalos sísmicos

Pela análise de nossas metas, conclui-se o seguinte:
Há uma enorme incompatibilidade entre nós.
Porém, sei que sempre seremos bons amigos,
relembraremos nossas histórias e daremos gargalhadas.

A minha meta é escrever um poema,
e por isso tu dizes que não sou ambicioso.
Nada mais equivocado, meu amigo...
A ambição não é monopolizada pelo dinheiro

Quero que façam uma estátua minha,
com um violão debaixo do braço,
sentado numa pilha de livros.
Podem colocá-la em frente à Cachaça da Lapa.

Quero que os pombos boêmios me batizem
cagando suas bostas sagradas em minha cabeça.
E, na diminuta placa, favor não escrever que fui grande,
pois minha época não permite que eu assim o seja.

Escrevam apenas: "Eis um homem que viveu plenamente".

terça-feira, 8 de setembro de 2015

DJTADOR

DJtador

Comédia em um ato.

Personagens:
- Hugo, o aniversariante
- DJ
- Churrasqueiro
- Barman
- Vidal, o convidado stalinista
- Arturo, o convidado trotskista
- Yudi, o convidado anarquista
- primo do Yudi, também anarquista
- Bob Marley, esquerdista com modos pacíficos
- João von Reichenau – convidado burguês
- Maria strozzelli – convidada burguesa, namorada de João
- Sepúlveda de Nóbrega – convidado burguês
- Carolina Kimura – convidada burguesa, namorada de Sepúlveda

CENA ÚNICA

Na parte central do palco encontra-se o DJ, sentado numa cadeira enorme que o deixa acima dos demais. Também no centro fica o barman. O churrasqueiro encontra-se num ponto mais afastado do palco. No lado direito estão os burgueses; no lado esquerdo os esquerdistas. O DJ está tocando Molejo. Os burgueses, muito bem vestidos, conversam sem animação. Os esquerdistas, com seus enormes blackpower, estão com a cara fechada.

Hugo – Maravilha, chegaram os últimos convidados. Fala, Joãozinho! E aí, Maria!

João von Reichenau – Parabéns, meu parceiro! Trouxe cerveja e esse presente pra você.

Hugo – Brigadão, amigo, não precisava.

João e Maria vão para a mesa do lado direito.

Yudi - Parabéns, irmão! Trouxe o meu primo, ele também é anarquista, sabia? Inclusive é black bloc, não espalha não.

Hugo, virando-se para o primo do Yudi – É mesmo? Muito prazer! Eu escrevi um texto defendendo os black blocs quando eles atuaram em defesa dos professores, mas uma galera da minha família e da religião onde eu fui criado achou que eu fosse um black bloc, inclusive alguém da igreja falou pra todo mundo que eu quebrei um caixa-eletrônico, hahaha. Mas, me diga, por que você decidiu se tornar um black bloc?

Primo do Yudi – Porque nessa manifestação dos professores vi que a polícia tava metendo a porrada nos estudantes, e como eu gosto de uma boa briga, resolvi cobrir o rosto e meter a porrada na polícia. Bati em vários policiais, foi muito bom!

Hugo – Então você só virou black bloc por isso?

Primo do Yudi – Sim.

Hugo – Compreendo... Olha, fica à vontade, tá, tem cerveja, coca-cola...

Yudi e o primo se sentam à mesa da esquerda.

Vidal – Essa música tá uma merda! Molejo não dá, achei que rolaria um samba de verdade, um Cartola...

Bob Marley – Po, brother, podia tocar um Bezerra da Silva, mas Molejo tá suave, na paz.

Vidal – Só quero ver que música vai tocar quando a galera começar a se animar. Aposto que vai ser um popzinho barato, esse DJ é burguês e essa festa tem burguês demais pro meu gosto...

Arturo – Pode crer, vamos ouvir o papo dos caras!

Os esquerdistas param de falar e prestam atenção à conversa dos convidados burgueses.

Sepúlveda de Nóbrega – Blablabla Royalties! Blablabla energia!

Maria Strozzelli – Blablabla iniciativa privada Blablabla iate! Blablabla excelente safra!

Arturo, gargalhando – Olha essa galera, os caras só pensam em dinheiro!!!

Todos concordam e riem.

Carolina Kimura – Aí, gente, vocês tão vendo aquele pessoalzinho estranho ali? Olha o cabelo deles! Parecem até mendigos... Guardem seus celulares, sério. O Hugo é amigo de cada coisa...

Sepúlveda de Nóbrega – Olha aquele ali com camisa da Hering! Playboy se passando por revolucionário. Ser comunistinha sustentado pelos pais é mole, né?

João von Reichenau – É verdade. Vamos ouvir a conversa deles, aposto que só vão falar de drogas e Che Guevara!

Os burgueses param de falar e prestam atenção à conversa dos convidados esquerdistas.

Bob Marley – Blablabla Maconha! Blablabla Miçanga!

Primo do Yudi – Blablabla luau! Blablabla paredão! Blablabla molotov!

João von Reichenau – Viu só? Bando de vagabundos viciados! Depois falam que é preconceito, esteriótipo! Hahahahah! Esteriótipos não são criados à toa...

Maria Strozzelli – Verdade, meu amorzinho, me dá um beijinho aqui! Vou ali pegar uma caipirinha e já volto!

Maria vai até o barman.

Maria Strozzelli – Oi, tem caipirinha de lichia?

Barman – Poxa, meu anjo, de lichia vou ficar te devendo, mas tem de limão, maracujá, morango e abacaxi.

Maria Strozzelli – Deixa pra lá, só gosto da de lichia, não vou querer não.

Barman olha com uma cara de “Ah, burguesinhas...”. Maria volta à mesa. Hugo vai para a parte da esquerda.

Vidal – Que sonho, hein, Hugo, um cara fazendo um bom churrasco e me servindo, o outro preparando drinks pra mim... Festa da burguesia é outra coisa, né! Hahahahah.

Hugo – Não sou burguês!

Vidal – É, mas você também não é um dos nossos! Um dia a vida vai te forçar a escolher um lado.

Hugo – É possível, mas até lá vou continuando em cima do muro.

Bob Marley – Galera, vou ali no meio fumar um cigarro.

Hugo – Cigarro, sei...

Bob Marley acende um cigarro na parte central do palco. João von Reichenau avista a cena de longe e se aproxima lentamente.

João von Reichenau – Ô cabeludo! Opa, desculpa perguntar, mas... você vende maconha?

Bob Marley – Po, brother, tá achando que eu sou trafica só por causa do meu dread?

João von Reichenau – Não, jamais!

Bob Marley – Tá de boa então. Pra falar a verdade eu tenho maconha aqui.

João von Reichenau – Então você vai me vender?

Bob Marley – Não, porra! É pra gente fumar junto, se você quiser.

João von Reichenau – Poxa, valeu mesmo! Somos bastante diferentes, mas a maconha nos une! Tem coisa que todo mundo gosta, independente da classe social.

Bob Marley – É verdade...

Bob e João vão para um canto isolado fumar. Bob fuma com vontade e passa para João, que fuma com cara de nojinho. João volta para a mesa da direita.

Carolina Kimura – Maria, olha o olho vermelho do seu namorado! Que que você andou fazendo, hein, João?

João von Reichenau – Eu...eu me emociono sempre que ouço essa música.

Sepúlveda de Nóbrega – Brincadeira de criança, do Molejo?

João von Reichenau – Tudo que mexe com infância me traz nostalgia, sabe...

Carolina Kimura – Vai mentir pra outro, rapá! Eu vi você de papo com o doidão de dread. Juro, parecia o encontro de dois mundos distintos. É como se vocês fossem feitos de uma massa diferente.

João von Reichenau – Isso é verdade, mas a gente só trocou uma ideia. Até que aquele crackudo é gente boa.

O churrasqueiro serve carne aos burgueses.

Maria Strozzelli – Ih, moço, pode voltar com essa carne, tá muito mal passada!

O churrasqueiro fecha a cara e serve os esquerdistas, que atacam a carne como se fosse a última refeição de suas vidas.

Vidal – Boa, churrasqueiro! Essa carne tá vermelha do jeito que a gente gosta!

Todos à mesa gargalham. Sentindo que o clima da festa era propício, o DJ solta a primeira música mais animada da festa: Barbie girl. O DJ canta e dança empolgado.

Yudi – Porra, Barbie girl é sacanagem!

Vidal – Sim, é um insulto! Hugo, vem cá!

Hugo – Fala, Vidal.

Vidal – Cara, olha a música que esse DJ tá colocando! Eu quero uma festa punk!

Arturo – É, Hugo, fala pro DJ tocar Garotos podres, Gangrena gasosa...

Vidal – Do contrário, vamos ter que tomar uma providência...

Vidal brinca com a faca de plástico.

Hugo – Ih, vai ser difícil, mas vou falar com ele.

Hugo vai até o DJ; os esquerdistas estão atentos à conversa.

Hugo – Aí, DJ, a galera da esquerda ali tá pedindo um som mais pesado, um punk rock...

DJ – Tá maluco? Punk rock num churrasco? Cara, eu sou o DJ e as pessoas vão ouvir o que eu quiser colocar... e elas vão gostar, porque existe uma fórmula infalível para músicas de churrasco: Primeiro, um sambinha; depois, quando o efeito do álcool começa a bater, pop, hip-hop e dance; e quando o álcool já está dominando a todos, funk. É um padrão, é um ritual. Não queira estraga-lo.

Hugo – Tudo bem, vou dar a má notícia a eles.

DJ – Sim, faça isso! Eu tenho uma reputação a zelar...

Hugo vai até os esquerdistas.

Vidal – Já ouvimos tudo. Quer dizer que é assim? “As pessoas vão ouvir o que eu quiser colocar?”. Ditador maldito! Se ele não ouve as reivindicações das massas ele é um inimigo do povo e tem que morrer!

Vidal pega um espeto de churrasco.

Hugo – Tá maluco, Vidal? O DJ é meu amigão, vai querer passar o cara no espeto?

Vidal – Não tem essa de amigão... onde você vê amigão eu vejo opressão! E opressão é opressão e deve ser combatida, seja no Estado, no ambiente de trabalho, numa relação amorosa... ou nas carrapetas de um DJ de churrasco! Me admiro você, Hugo, compactuando com isso...

Hugo – Não tô curtindo as músicas também, só não quero que você mate o meu amigo. E no dia do meu aniversário!

Vidal – Posso mata-lo amanhã, se ficar melhor pra você...

Hugo – Porra, não foi isso que eu quis dizer! Ah!

Hugo vai até o barman.

Hugo – Opa, quero uma dose de cachaça pura.

Barman – purinha mesmo?

Hugo – Sim, manda.

Hugo entorna o copo de cachaça aparentando nervosismo.

Hugo, pensando alto – Vai dar merda, to vendo...

Sepúlveda de Nóbrega – Po, Hugo, você nem tá dando muita atenção pra gente! A gente tava falando aqui que o PT é muito corrupto, precisamos colocar o Aécio na presidência! O PT está acabando com esse país, o euro está mais de quatro reais, só pude ir uma vez pra Europa esse ano!

Hugo – Desculpa, Sepulvedinha, mas sabe como é, o aniversariante é sempre muito requisitado. Vou pegar uma bebida.

Hugo vai até o barman e repete a dose.

Hugo, pensando alto novamente – Porra, tá pra rolar uma revolução sangrenta e esses tucanos nem se tocam! Bando de tapados mesmo.

Vidal – Galera, vamos decidir o que a gente tem que fazer. Eu acho que tem que usar de violência mesmo, revolução é assim. Cada um pega um espeto e a gente bota esse DJ opressor pra correr.

Arturo – Não, sem violência. Esses stalinistas só pensam nisso.

Vidal – E vocês, trotskistas vivem fugindo da raia quando a chapa esquenta. Típico! Você acha que Stalin trouxe a violência pro mundo? Trotsky era o cãozinho do Lênin, e os dois mataram muita gente. Stalin aprendeu a usar a violência política com eles.

Arturo – Nada disso, Vidal. Estamos no aniversário do nosso amigo. Temos que tirar o cara sem violência, e eu vou ser o novo DJ. Estou com meu pen drive aqui.

Vidal – Ei, por que você vai ser o novo DJ? O meu HD externo está comigo e sou um DJ muito melhor que você. Na chopada do IFCS você colocou Macarena e quase te espancaram por causa disso, eu lembro! Bob, dá a sua opinião aí.

Bob Marley – Po, mano, na paz, deixa a música rolar aí, tô tranquilão.

Vidal – Na paz??? Pqp... E você, Yudi, fala aí!

Yudi – Eu acho que não tem que ter DJ, cada um coloca a música que quiser ouvir.

Primo do Yudi – Ta aí uma boa ideia!

Vidal – Porra, mas aí vira bagunça!

Primo do Yudi, exaltado – ô, rapá, bagunça não, vê lá, hein!

Hugo, gritando de longe – Yudi, acalma o porradeiro do seu primo aê.

Vidal, com calma – Yudi, eu já te falei, você tem que ter organização! Vai tirar o DJ como, sozinho? Quebrando o equipamento dele?

Primo do Yudi – Tá aí outra boa ideia...

Yudi – Organização? Tô vendo a organização de vocês, um quer matar o DJ, o outro quer expulsá-lo sem violência e o Bob ali tá sempre de boa com tudo, nem parece que é esquerdista!

Bob Marley – Sem estresse, mano!

Vidal – Bom, como eu não sei, mas a gente vai ter que mudar essas músicas. Quanta desanimação! Olha só em volta, tá todo mundo sentado e calado!

Vidal aponta para a plateia.

Vidal – Se ninguém chega num acordo eu vou lá resolver sozinho.

Vidal faz uma pose imponente e vai até o DJ. Chegando lá, sozinho, ele fica intimidado e baixa a bola.

Vidal – Po, brother, me perdoa, mas será que você deixaria eu colocar uma música? Aqui meu HD externo.

DJ – Vou guardar aqui seu HD, depois eu ponho, ok?

Vidal – Beleza, muito obrigado, viu?

Vidal volta para a mesa dos seus amigos.

Vidal – Aquele safado me enganou direitinho! Vai deixar meu HD mofando ali...

Arturo – Se ferrou, Vidal! Hahahahahah.

Vidal – Você tinha que ter ido comigo, isso sim! Juntos somos fortes! Que a vontade da maioria prevaleça! Olha lá, temos uma pessoa a mais que eles.

Yudi – Errado, o DJ já provou que é burguês, então empata. O Hugo, como sempre, em cima do muro... E o churrasqueiro e o barman, coitados, certamente são pobres e apolíticos.

Bob Marley – Olha o preconceito, Yudi! Por que os caras são apolíticos?

Yudi – Eu sei das coisas. Essa galera mais humilde ou despreza a política ou faz comentários “Bolsomito”, como os taxistas.

Arturo – Camaradas, pra que contar quem é maioria? O DJ tem o poder, não importa o número dos presentes.

Vidal – Tem o poder por pouco tempo... vou ali pegar uma carne sangrando.

Vidal vai até o churrasqueiro. Nesse ínterim o DJ coloca MMM bop, dos Hanson. O DJ dança muito empolgado.

Yudi – Aí já é demais, galera. Botar Hanson é como xingar a minha mãe! Vamos tirar o ditador do poder!

O primo do Yudi esconde o rosto com um lenço. Chega o churrasqueiro na ala esquerda.

Churrasqueiro – Pessoal, uma faca minha sumiu. Alguém viu?

Vidal – Não, mas se eu souber de algo eu te aviso.

O churrasqueiro olha Vidal desconfiado e volta à churrasqueira.

Arturo – Isso tá com cheiro de Vidal, pode falar!

Vidal, mostrando a faca – Meu lema é: Esteja sempre preparado! Agora sim, vamos fazer justiça, galera!

Os cinco esquerdistas vão decididos até o DJ.

Bob Marley, cruzando os braços – Qual vai ser, DJ? Dá o papo!

O DJ olha aquele bando de black power rodeando ele e morre de medo.

DJ – Pessoal, já que vocês queriam colocar outras músicas, podem colocar. Preciso ir, tenho que... pegar minha filha na creche.

Yudi – Domingo à noite?

DJ – Sim. Fui!

DJ sai levando sua enorme cadeira. Esquerdistas rapidamente assumem o poder, colocam Smells like teen spirit no volume máximo e começam a gritar “Aê!” e “Viva la revolucion!”, depois fazem uma rodinha animada, pulando e se empurrando. Os burgueses ficam chocados e decidem ir embora.

FIM

















sexta-feira, 24 de julho de 2015

KEBAB

 Kebab – Comédia em um ato

Personagens
Germano
Otomano
Jan III da Polônia
Landsknecht (mercenário).
Esposa do Otomano

ATO I – Cena I (Cerco da casa do Germano - 1529) 

Germano, assobiando a Missa super dixit Maria (Kyrie), de Hans Leo Hassler, está colocando as últimas pedras no muro que envolve sua casinha em estilo enxaimel, enquanto, ao fundo, o mercenário dorme na grama. Quando termina o serviço, Germano sorri e diz, ao se benzer diante de uma cruz posicionada em cima da porta:

GERMANO –
Pronto, trabalho exaurido!
Agora estou protegido!

Eis que o Otomano, com seus trajes típicos, turbante e cimitarra (espada curva) aparece gritando, como um alucinado:

OTOMANO –
AAAAAAAA...llaaaaaaah!!! Por Allaaaaah!!!
Allah! Olha a casa lá!

GERMANO –
Jesus Cristo, meu guia, luz para mim,
aquele que me fez parar de louvar Odin
(mitologia nórdica, grande besteira!)
O que significa tamanha asneira?
Parece que o Otomano, com todas as suas propriedades
Quer também o resto da Terra, o céu e o Hades!
Maldita ânsia de poder, erva daninha...
Pois venha! Que eu defenderei minha casinha!

Enquanto o Otomano começa a investir contra o muro da casa, Germano inicia uma reza a Jesus enquanto coloca sua armadura:

GERMANO –  
Cristo, rei dos reis, proteja minha veste...
peraí, me proteja também, ô Landsknecht,
eu te pago pra isso!
Cadê esse estrupício?
Dormindo como um rei!
Onde foi que eu errei?

LANDSKNECHT (MERCENÁRIO), acordando meio bêbado, de sono e álcool
Bom dia, senhor meu!
Por que me acorda nesse breu?

GERMANO, desesperado
Mein Gott! Mas você é burro ou insano?
Estamos sendo atacados pelo Otomano,
você não tá vendo? Me ajuda logo, vem!
mercenários... se não recebessem dinheiro, hein!

LANDSKNECHT, interrompendo
Falando nisso, meu nobre senhor,
que Deus te proteja de toda a dor,
ainda não recebi a paga referente a essa peleja.
Aceito ouro, prata ou um litro de cerveja.
Um pagamento para cada ajudada.
O senhor sabe que só trabalho por empreitada.

GERMANO, com raiva
Mas que grande salafrário!
Toma, que tu és mesmo um mercenário!

Germano atira um saco de moedas de ouro para o mercenário, que diz, contente:

LANDSKNECHT –
Deus te dê em triplo, meu senhor, meu bom paizão!
Hora de defendermos sua casa e nossa nobre religião!

O Landsknecht pega sua enorme lança e se atira na direção do Otomano. Começa a nevar, porque o inverno também resolve aparecer.

OTOMANO, cansado de tentar em vão quebrar o muro
Minhas forças se esvaem, crescem as do adversário
Agora tenho que me bater com esse louco mercenário.
E que frio de rachar desse clima hodierno!
O Germano convocou o general inverno.

Juntos, Germano, Mercenário e o frio do inverno espancam o Otomano, que sai gritando:

OTOMANO –
Me aguardem, eu vou voltar!
Essa casa é minha, por Alá!!!

Cena II (Batalha pela casa do Germano -1683)  

Germano, regando as plantas, feliz da vida, canta a Schwanengesangen, de Heinrich Schütz. Eis que surge o Otomano, com a mesma roupa e equipamento, gritando igualmente:

OTOMANO – Allah!!! Por Allah!!! Olha ele lá!

Otomano tenta mais uma vez destruir o muro da casa.

GERMANO, assustadíssimo, -
De novo? Cara chato demais!
Vê se me deixa em paz!
O pior é que o Landsknecht me deixou sozinho
Deixei de pagá-lo uma vez e ele se foi com o meu vinho!
E agora, quem poderá ajudar esse humilde camponês?
O Otomano vem com mais vigor do que da última vez!

Jan III aparece, com cara de quem está perdido.

GERMANO –
Mas veja, um milagre surge!
Ajude-me, senhor, o tempo urge!
A propósito ,sou Germano, o dono da casa,
E, Vossa Excelência, qual é a vossa graça?

JAN III –
Sou o grande Jan III da Polônia
Saí pra pescar porque sofro de insônia
Acabei tomando rumos errados
E vim parar por esses lados

GERMANO –
Pois creia, nobre senhor, que foi a própria Providência
Que aqui o colocou para minha diligência
Proteja minha casa desse mouro
Que te darei mil moedas de ouro!

O Otomano ouve a conversa e se mete, berrando com ira:

OTOMANO –
Não sou mouro, Germano ignorante!
Sou o Otomano do Levante!
Aquele que vai te jogar no ralo,
E te transformar num vassalo!

JAN III –
Agradeço sua proposta, senhor Germano
Mas temo dizer que frustrarei seu plano
Moedas de ouro tenho muitas no meu armário
Achas mesmo que sou um mercenário?

GERMANO –
Não, jamais, meu nobre Jan
Mas veja que esse é um pesado afã
Não deixe seu irmão aqui desprotegido,
Ajude-me, ouça meu triste alarido!
Deus dá sempre em dobro,
a quem tira o próximo de um soçobro!

JAN III –
Nunca é bom arriscar a vida sozinho
Pela grama do nosso vizinho
Esfomeado, voltarei pra minha casa, minha mesa
Desejo-te sorte nessa tão árdua empresa

Jan se vira pra ir embora, quando Germano, ao ver que o Otomano está quase destruindo o muro, diz, desesperado:

GERMANO –
Espere, amigo Jan terceiro,
Senhor tão vistoso, tão faceiro,
Pense ao menos na cristandade minha e tua!
Vamos deixar o Otomano colocar estrela e lua
No lugar dessa tão bela cruz,
Símbolo do sacrifício de Jesus?
Reflita também, Oh, polonês augusto,
Que o Otomano, réptil astuto,
Não se satisfaz com tudo aquilo que tem,
E, após a minha, vai tomar a sua casa também!

JAN III, após refletir
No meu coração não cabe egoísmo
Nele bate vero humanismo
Falaste sobre nossa fé com propriedade,
Sem ti, vizinho cristão, sentiria soledade
Amo-te como amo a mim mesmo,
Não posso deixar-te a esmo.
Com os meus punhos você pode contar,
contra o inimigo de Cristo devemos lutar!

Jan corre até o Otomano e aplica-lhe uma voadora. Depois, como um touro, dá uma cabeçada na barriga dele.

OTOMANO, com pesar
É, nunca vou conseguir entrar nessa casa boa...
 Allah, me perdoa!!!

Otomano deixa a cena.

GERMANO –
Conseguimos, Jan! Minha casa está salva
Veja, há sangue cobrindo minha pele alva,
Mas sempre vale a pena sangue derramar
Para a nossa fé verdadeira guardar

JAN III –
Sim, bom vizinho e amigo
Pode contar sempre comigo
Salvamos sua casa daquela religião turva
E nossas carnes daquela espada curva!
Agora preciso ir, aperta-me a fome,
Quando precisar, clame pelo meu nome!

Os novos amigos se abraçam e Jan III deixa a cena.


Cena III (pós-segunda guerra mundial)

Assobiando a Carmina Burana , Germano coloca com naturalidade a suástica no lugar da cruz em cima da porta. Em seguida, ele grita com a mão perto da boca, como para amplificar o som:

GERMANO -
Agora eu sou nazi!
Morte ao judeu  Ashkenazi
Acabem com o comunista!
E o judeu sefardita!
Queimem as testemunhas de jeová,
e o povo cigano que se vá!
Dá-me eloquência, Ó, Calíope!
E morte ao judeu etíope!
O Eslavo não passa de um verme,
e o Polonês é desse lixo o cerne!
O Germano cresceu e virou superior
Da casa dos outros serei senhor!

Na maior empolgação, Germano começa a cantarolar A Cavalgada da Valquíria, de Richard Wagner, fingindo voar numa vassoura e também fingindo com ela atirar.
Nesse ínterim, cai uma bomba e destrói a casa dele. Germano cai no chão desmaiado. A suástica também cai no chão, e quando Germano lentamente se levanta, a primeira coisa que ele faz é colocar novamente a cruz cristã em cima da porta. Em seguida aparece o Otomano, sem turbante, sem espada, vestindo roupas modernas. Ele não nota a destruição e senta debaixo de uma árvore visando descansar.

GERMANO –
Oh, que dor sinto no peito,
agora me pegaram de jeito.
A casa que construí com amor e zelo,
aqui jaz destruída sem apelo!
Não posso sozinho meu lar reconstruir
Preciso a alguém ajuda pedir
Olha, o Otomano ali no ócio
A ele proporei um negócio!
Otomano, grande amigo meu,
há tempos não vejo o rosto teu!

OTOMANO, levantando-se assustado
Que Allah leve minha alma!
Me vem à mente antigo trauma.
Não me bata, senhor Germano,
venho em paz, isso é um engano!

GERMANO, rindo
Amigo Otomano, porque tamanha aflição?
Até parece que avistou assombração.

OTOMANO –
Porque recordo bem da última vez
dos galos na cabeça que você me fez!

GERMANO -     
Mas isso é coisa do passado!
Está findo, está superado,
Eu estava com a cabeça quente,
peço perdão, fui inconsequente.

OTOMANO –
Meu amigo, também peço desculpa
Aquela violência foi por minha culpa.
Perdão por esse imenso desatino,
É que deu certo na casa do Bizantino,
E o sucesso sempre sobe à cabeça
E demora até que de lá desça

GERMANO –
Vamos então nesse tema colocar cal,
Por aqui as coisas vão muito mal.
Olhe minha casa, que trágico!
Reconstruí-la, só sendo um mágico.
Por isso pensei em te convidar
para trabalhar aqui comigo,
Já que não és mais meu inimigo,
Podes inclusive na minha casa morar
Algo provisório, não vás se demorar!

OTOMANO, transbordando felicidade
Mal creio no que tu narras!
Quando brandi cimitarras
falhei duas vezes seguidas
em destruir suas guaridas.
 De entrar na sua casa já havia desanimado,
eis que agora, meu fiel Allah, sou convidado!

GERMANO –
Respeito-te muito, Otomano
 És um sábio ser humano,
Ser inteligente como tu eu quero.
Grande matemático, inventaste o zero,
 tudo sabes sobre escalenos e isósceles
e ainda preservaste textos de Aristóteles!

OTOMANO -
Quem fez tudo isso foi o árabe, meu nerd irmão.
Mas valeu a tentativa, amigo Germanão!
Peço desculpas pela intimidade,
Ela é fruto de nossa nova amizade

GERMANO –
Agora entre sem cerimônia!
Viveremos com parcimônia,
pois os tempos não são leves.
Você se acostumará com as neves,
E com a nossa culinária.
A melhor é a da Bavária,
mas aqui temos Schnitzel vienense,
melhor carne não há, nem pense!

Germano serve o Schnitzel e o Otomano prova.

OTOMANO –
O nome é bem pomposo
já o prato, insosso
Agradeço pela carne que se encontra nessa mesa
Porém creio que ela é um simples bife à milanesa
Se me permite, trarei uma iguaria
Da minha ex-casa, da Turquia

GERMANO –
Fique à vontade, vá, que aqui te espero
Mas se prepare para meu julgamento severo

O Otomano sai de cena e volta com uma barraquinha de kebab.

OTOMANO –
Isso se chama Kebab
Não sei se você sabe,
é uma carne semelhante ao cupim
o gosto é excelente pra mim.
Pode-se servir com pão
Ou como uma refeição.
Acompanha salada e molho picante.
Ora, Venha aqui provar, avante!

GERMANO –
Gott im Himmel, que alegria
provar de carne tão macia,
e esse molho de pimenta
que meu corpo acalenta...
Com certeza esse prato vence
o meu Schnitzel vienense.

Os amigos trocam um abraço caloroso e riem, ao som da marcha turca de Mozart.

OTOMANO –
 Até que você é um cara legal
 Apenas começamos muito mal
Quem diria que o Germano
Hoje seria o meu mano!

Os amigos trabalham juntos e começam a reconstruir a casa alegremente. Tudo vai bem, até que o Otomano começa a cantar uma música típica da Turquia e o Germano, com raiva, responde cantando a nona de Beethoven. Após, Otomano se ajoelha pra rezar e o Germano fica chocado.

GERMANO –
Mas que absurdo é esse numa casa cristã?
Não posso suportar tal atitude pagã.
na sua casa você pode adorar seus ídolos
Pouco me importam seus deuses frívolos

OTOMANO –
No vasto e antigo otomano império,
que tantas terras possuía do planisfério
Como havia mais tolerância
com o cristão em nossa entrância!

O Otomano, contrariado, desiste de rezar. Germano liga a TV, e o narrador fala, ao apresentar o programa esportivo:


NARRADOR ESPORTIVO –
Esses foram os resultados da Bundesliga
Agora vamos aos da Turquia, nossa amiga.

OTOMANO –
Isso muito me interessa, diz logo, vai
Será que ganhou o meu Galatasaray?

GERMANO, desligando a TV
Isso muito errado está!
Turquia? Aqui é o MEU lar!

O Otomano olha irado pro Germano, no seu coração só cabe ódio.

OTOMANO, sussurrando
Ah, seu monstro maldito
Você me paga, tenho dito!

O Otomano, decidido, vai até a porta e começa a prender uma lua e uma estrela bem ao lado da cruz.

GERMANO –
Oh, que afronta, venenosa cobra!
Do demônio só pode vir tal obra
Bem dizia o francês douto:
O inferno é o outro!
E agora tem mais essa?
Quem vem ali com pressa?

Chega a esposa do Otomano.

ESPOSA DO OTOMANO, toda simpática
Muito obrigada pelo convite!
Demorei porque tive apendicite
Espero que possamos viver em harmonia
E que o senhor goste da minha companhia

GERMANO, bufando

Convite? Estarão saudáveis meus ouvidos?
Jesus Cristo, que horrorosos estampidos,
Saem da boca dessa turca descrente,
E que dizer desse lenço incoerente?

ESPOSA DO OTOMANO, sentida
É da minha cultura esse belo lenço rosa
Esperava uma recepção mais calorosa...

 GERMANO –
Vamos acabar de vez com esse teatro
Não quero uma cena número quatro.
Vem uma, vem outra, já vira uma orgia...
Sei que vocês praticam a poligamia!

ESPOSA DO OTOMANO –
Sou a única mulher do Otomano, senhor.
Exijo mais respeito comigo, faz favor.

OTOMANO –
O senhor quer me despachar para além...
Ora, eu moro nessa casa também!
Vivendo aqui há mais de um ano,
será que eu não me tornei um germano?

GERMANO –
Só pode estar brincando!
Seu dizer é nefando!
Enquanto na minha casa morar
sempre um turco você será!
Diga pra toda a sua gangue
Que o que vale é o sangue!!!

E, arregalando os olhos, o Germano bate no antebraço seguidas vezes com força.

GERMANO -
Cansei de ser por vocês burlado,
Agora estou é descontrolado!

Germano, como um louco, vai até a porta de casa, tira a cruz e a lua com estrela e recoloca a suástica.

GERMANO, fazendo a saudação nazista ao mesmo tempo que aponta para a saída
Na minha casa o turco não cabe,
Saiam logo... mas deixem o kebab.

ESPOSA DO OTOMANO –
Ah, então é assim, você quer o Kebab,
Mas não quer aquele que fazê-lo sabe?

GERMANO –
Isso, exatamente...
Sumam da minha frente!

MULHER DO OTOMANO –
Besta insensível,
Não és indefectível!
Uma maldição desejo pra ti,
Teu fim doloroso te aguarda aqui!


OTOMANO, fora de si
Vamos então, meu amor
Aqui está seu kebab, senhor.

Otomano recheia um kebab com uma banana de dinamite imensa.

OTOMANO -
Que a refeição esteja ótima,
Porque será a sua última!

 A dinamite explode matando todos os três na hora.

                                                                             FIM





















quarta-feira, 8 de abril de 2015

WILHELM KAMPF oder SOLUÇÃO DO PROBLEMA NORDESTINO

Wilhelm Kampf oder Solução do problema nordestino

Capítulo 1 – Ascensão
            Pobre Rio de Janeiro. As eleições de 2014 para governador aconteceriam em alguns meses, tendo como candidatos Cesar Maia, Garotinho, Pezão, Lindberg Farias, entre outros nomes tão péssimos quanto esses. O jovem Wilhelm Kampf queria trazer uma alternativa, uma salvação a essa situação precária, afinal o Estado do Rio, que já estava um caos, ficaria ainda pior com candidatos dessa magnitude. Nosso amigo, formado em História no IFCS, começou a atuar na política pelo centro acadêmico, esse “estágio” dos políticos. Wilhelm, a despeito do esquerdismo que monopoliza o IFCS, filiou-se a um partido de direita chamado PF, Partido Fluminense. Usando de sua excelente oratória, Wilhelm foi aos poucos subindo os degraus da hierarquia do partido e obteve finalmente apoio para se candidatar a Governador do Estado do Rio de Janeiro pelo PF.
            As ideias de Wilhelm Kampf eram extremamente radicais. Talvez pela influência de sua esposa gaúcha, logo, separatista nata, ele era a favor do Rio de Janeiro se separar do Brasil e constituir um país autônomo, afinal “tínhamos petróleo, e os demais estados só faziam roubar nossos royalties!”, mas essa ideia não vingou no seio do PF (o Partido Fluminense não se sentia um “Partido Gaúcho”).  Uma outra ideia, contudo, foi aplaudida pelo partido inteiro e virou carro-chefe da sua propaganda política: Wilhelm considerava que o maior problema do Rio de Janeiro era a presença de nordestinos, e inicialmente sua ideia era mandá-los de volta para seus estados de origem.
Wilhelm defendia o “Rio puro”, que nada mais significava do que o Rio de Janeiro sem nordestinos. Já ele, Wilhelm, não era nada puro, mas sim fruto da mais épica mistura racial. Sua ascendência era escocesa, árabe, judia, indiana, indígena, bósnia e alemã (de onde provém seu sobrenome). Apesar da insinuação gerada pelo seu nome germânico, o elemento racial árabe era o mais presente, o que fica comprovado pela escura cor de sua pele. Ademais, Wilhelm era baixo, tinha uma cabeça com cabelos crespos um pouco avantajada, e, tendo esses traços, bem como ante a  dificuldade de classificá-lo em virtude da mistura racial, alguém poderia arriscar que Wilhelm fosse nordestino.
Cumpre mencionar também que Wilhelm, talvez pela predominância da ascendência árabe, possuía uma fé sincera e profunda no islamismo. Wilhelm ficava muito triste, porque sua religião era sempre alvo de preconceito, sendo mais comum o famoso absurdo de considerar os muçulmanos como sendo fanáticos e loucos homens-bomba. A vida de Wilhelm costumava ser religiosa, reservada e familiar, junto de sua esposa gaúcha, Marienne Kampf, e seu pequeno filho Abdul Abdala. Certos acontecimentos, porém, dariam grande notoriedade ao jovem, tornando-o a mais famosa figura pública do Brasil.
As doutrinas do PF eram construídas por Wilhelm em parceria com o filósofo oficial do partido Arthur Linz, rapaz alto, magro, moreno, muito inteligente, que, após ler Crime e Castigo, achou que deveria virar um Raskólnikov, um super-homem, e buscar o poder. Para isso, Arthur Linz se filia ao PSTU sem fé alguma no marxismo e sonha com a revolução, mero meio para o seu fim (ele poderia ter escolhido um partido mais expressivo, é verdade). Todavia, acreditando que seu amigo Wilhelm Kampf venceria as eleições e governaria com mão forte o Estado do Rio, Arthur abraça o kampfinismo sem acreditar em uma palavra, somente visando ao poder. As seguintes pérolas foram proferidas pelo filósofo do partido: “Os nordestinos são completamente diferentes de mim, me recuso a reconhecer a mesma essência. Eles certamente não possuem alma. Eles são tão diferentes que até o modo grego utilizado pela música nordestina é diferente, qual seja, o mixolídio”. Outra: “Já dizia Aristóteles que a natureza não destinou os nordestinos para as coisas intelectuais. Só resta a eles pegar na enxada e capinar lotes! Lá no nordeste, é claro...”.
Já a propaganda de Kampf ficou a cargo do rei da propaganda José Göbbos, um rapaz magro esquelético com cara de assassino, autor da seguinte frase: “Uma mentira contada mil vezes enche tanto o saco dos demais que os vence pelo cansaço”. Göbbos criou diversas músicas daquelas que grudam no ouvido, como a famosa “Nordeste é uma peste”, bem como foi ele quem retratou em diversos cartazes espalhados pelo Estado os nordestinos com um semblante traiçoeiro roubando o emprego dos fluminenses. Em conjunto com Kampf, Göbbos criou o forte símbolo do partido: uma cruz, que nada mais era que um Cristo Redentor negro, cujo olhar lembrava o das aves de rapina. Por que os kampfinistas escolheram como símbolo um cristo redentor negro eu não sei; apenas sei que, pra mim, narrador, ele representava essa época na qual o Rio de Janeiro mergulharia profundamente nas trevas.
            Wilhelm atraía multidões com sua hipnotizadora retórica e intensa propaganda e virou a sensação do momento, sendo o assunto mais comentado. Esse discurso proferido no Aterro do Flamengo foi o mais aplaudido de todos e demonstra que Wilhelm não tinha muito apreço pelos nordestinos:

“Amigos do Rio de Janeiro! Me refiro aos verdadeiros fluminenses e não aos nordestinos, que obviamente são do nordeste, e para lá devem retornar.  Vocês já imaginaram como seria maravilhoso se o Rio de Janeiro ficasse sem nordestinos? Esse sim poderia ser chamado de “Estado Maravilhoso”, assim como chamamos a cidade do Rio! Oh, esse sonho pode se realizar, se você me der a chance, votando em mim! (aplausos).
É evidente que todos os problemas do Rio de Janeiro são causados pela presença dos nordestinos, essa barbárie em meio à civilização. Eles são mal educados, falam num dialeto ininteligível, vêm ao nosso Rio sem preparação alguma e já trazem logo a família inteira, bebem cachaça o tempo todo e só fazem merda! (risos). O que eles vêm tanto fazer aqui? Voltem para a Paraíba e o Ceará, nós não queremos vocês aqui! (muitas palmas). Sei que o nordeste é composto por Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe, mas Paraíba e Ceará é o nordeste por excelência, esses são os piores! Será que eles vêm até aqui por causa da pobreza? Ora essa, eles são pobres porque querem! Não são gente trabalhadora! Por que naquele interior seco eles não fazem um monte de cassinos e hotéis de luxo, como Las Vegas fez no deserto? Com esforço conseguimos tudo na vida, mas eles não querem se esforçar, não é mesmo? São um bando de preguiçosos! (aplausos). Vocês vão deixar esses parasitas que vieram de fora roubarem o emprego de vocês? Amigos, se votarem em mim, deixarei o Rio de Janeiro “nordestinenrein”, e, sem os nordestinos, vocês terão uma cidade mais bonita, mais limpa, com pessoas mais bem preparadas e falando uma língua que você é capaz de compreender. Muito obrigado. (estrondo de palmas e grito de “fora nordestinos”).”

Wilhelm já tinha ganho a zona sul inteira e parte da zona norte (como, por exemplo, a Tijuca) e região dos lagos (a burguesa Búzios), porém a baixada fluminense possui inúmeros nordestinos, e ninguém votaria em Wilhelm lá (com exceção de uns poucos que já queriam mesmo voltar pro nordeste e pensaram na possibilidade de viajar gratuitamente). Nosso amigo então passou a intensificar a campanha a fim de garantir a vitória. Bandeiras do Rio de Janeiro com a inscrição PF estavam em toda parte. Muitos milionários das indústrias armamentista, química e metalúrgica investiram pesado na campanha de Kampf, já prevendo que com essa ideologia e com esse sobrenome ele levaria inevitavelmente o país à guerra.  
  Conforme o esperado, preconceitos contra os nordestinos começaram a aparecer, como, por exemplo, não pagar 10% aos garçons nordestinos. Houve um caso desses num restaurante do Leblon, onde um cliente fluminense falou ao garçom nordestino: “Quando eu te pedir paçoca, você me traz o doce e não farofa, seu nordestino burro! Não vou te pagar o serviço”. Além disso, quem ouvia arrocha, axé ou forró era vilipendiado (o mesmo aconteceria com o baião, mas infelizmente ninguém mais ouve música boa por aqui). A cidade estava em polvorosa quando finalmente ocorreram as eleições. Wilhelm Kampf venceu já no primeiro turno. Começaria o suplício do povo nordestino.



Capítulo 2 – Kampfinização  

Apesar de obter o poder de forma democrática, Wilhelm Kampf não perdeu tempo em conquistar o poder total no Rio de Janeiro. Com o controle da Polícia Militar, da Polícia Civil, de uma Polícia Secreta recentemente criada, e do Povo, não foi difícil se assenhorar da imprensa e dos três poderes. Ele então cria rapidamente uma série de leis estaduais, as chamadas “leis do Rio de Janeiro puro” ou “Reinheitsgebote”. Uma delas autorizava as futuras deportações de nordestinos; outra obrigava os nordestinos a usarem no braço um emblema que consistia num chapéu de cangaceiro com a palavra “nordestino” escrita na parte central; outra proibia no Rio o casamento entre um nordestino e um não-nordestino; mais outra tirava o direito dos nordestinos de serem servidores públicos, médicos, advogados e engenheiros; a última delas proibia o usucapião, retroagindo inclusive para tornar sem efeito legal os usucapiões já finalizados nos trâmites legais. Era um jeito de limpar rapidamente a Baixada Fluminense, que segundo Kampf era uma extensão do nordeste no território do Rio (sem moradia aqui, Kampf imaginou que os nordestinos não resistiriam ao serem mandados de volta para sua região de origem). Nas partes mais pobres da Baixada Fluminense, a regra é a posse mediante invasão, com o ulterior usucapião para fins de legalização. Kampf, com desdém, disse sobre isso um dia: “Só pensam em Usucampeão! É Usucampeão pra lá, é Usucampeão pra cá... Bandidos usurpadores da propriedade alheia! Pagar pela propriedade que é bom vocês não fazem, né?”. 
Wilhelm não pensou duas vezes e, após um decreto de sua lavra, o islamismo se tornou a religião oficial do Brasil. “Com isso eu salvo esse Estado católico, nada laico, de se tornar um Estado fundamentalista crente, controlado por pastores ladrões”, disse Wilhelm sobre seu ato.
Tudo aconteceu muito rápido. Num piscar de olhos foi forjada uma imensa teia burocrática, com centenas de ministérios, departamentos e seções. Milhares de cargos foram criados, e todos queriam uma boquinha nessa festa, pouco importando a ideologia íntima e pessoal; muitos, talvez a maioria, pensavam mesmo era no dinheiro e nas suas carreiras. O kampfinismo tomou conta das universidades, destronando finalmente o marxismo, que detinha o monopólio ali desde a época de Adão. O responsável por isso, homem que corrompeu uma geração inteira de jovens, foi Van Petta, o líder da juventude kampfinista, rapaz branco, loiro, alto e de olhos azuis. Possuindo esses traços, bem como esse vil cargo ninguém imaginaria que Van Petta era nordestino, nascido em Recife, tendo vindo ao Rio de Janeiro ainda criança, razão pela qual não tinha nenhum vestígio de sotaque pernambucano.
Também foi criada a mencionada Polícia Secreta, a NN (Neutralizadora de Nordestinos). Seu chefe se chamava Paul Liszta, um rapaz alto, branco, com traços de mafioso italiano e sotaque irritante. Paul Liszta sempre odiou os nordestinos, e se mostrou o caçador de nordestino mais hábil de todos. “Sou capaz de reconhecer um nordestino a trezentas jardas de distância”, dizia Paul Liszta se gabando. A NN atuando em conjunto com o Ministério de Realocação foi o terror dos nordestinos, indefesas caças desses implacáveis caçadores.
Os kampfinistas eram todos jovens e “estadistas” (nacionalistas em nível estadual). Com unhas e dentes defendiam a supremacia da cultura do Rio de Janeiro ante as influências inferiores e perniciosas da cultura nordestina. Os membros do partido só se comunicavam entre si usando gírias do Rio; o uniforme era leve, estampado e fabricado pela Osckley; além disso, o gesto de cumprimento utilizado pelos kampfinistas era o braço direito estendido com a mão fazendo um hang-loose.  
Esse bando de jovens irados fez uma série de desfiles militares pelas ruas, cantando o grude “Nordeste é uma peste”, e quebrando todos os estabelecimentos comerciais de donos nordestinos, principalmente restaurantes. Num certo dia, esses loucos tiveram a ousadia de pintar de preto o Cristo Redentor, símbolo do Rio de Janeiro. Algumas horas depois, quinhentos kampfinistas armados com explosivos, porretes, martelos, machados e um nunchaku se reuniram e marcharam até o templo dos nordestinos no Rio de Janeiro: o Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Uma banda de forró se apresentava no palco para delírio das centenas de nordestinos que estavam presentes, buscando um momento de merecido lazer após um fatigante dia de trabalho. Chegando lá, o mais exaltado do grupo kampfinista gritou: “A feira dos paraíbas foi criada pro nordestino se sentir em casa... Nordestino, se liga, mermão, o Rio de Janeiro não é a tua casa! Vamo quebrar tudo, galera!!!”. Os kampfinistas transformaram a “feira dos paraíbas” num coliseu nordestino. Foi uma destruição selvagem, que não deixou pedra sobre pedra. Os nordestinos conseguiram fugir, porém alguns ficaram feridos.
A arte também foi kampfinizada. O novo estilo, chamado de arte kampfinista, era clássico, inspirado na arte greco-romana, e louvava a perfeição estética, as virtudes guerreiras e tudo o que era puramente fluminense. Trezentas estátuas de um Wilhelm Kampf alto, forte e idealizado foram feitas e espalhadas pelos quatro cantos do Rio. Seu autor se chamava Marcel Verkauft, um jovem baixinho de óculos, que antes era um artista de verdade, um escultor talentoso e criativo. Contudo o mesmo se vendeu ao vil capital e à traiçoeira fama, passando a somente fazer estátuas de Wilhelm Kampf, seja de Kampf segurando uma cruz kampfinista, Kampf pisando num cangaceiro, Kampf fazendo a saudação do hang loose ou a famosa estátua equestre de Kampf. Wilhelm considerava Verkauft o maior artista de todos.  
Tratemos agora da enorme queima de livros de autores nordestinos promovida pelos loucos kampfinistas.




Capítulo 3 – Queima de livros
“...dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen” – Heine
(Lá onde queimam-se livros, queimam-se também no final pessoas).

Uma enorme queima de livros organizada por Göbbos ocorreu justamente em frente à Academia Brasileira de Letras, no Centro do Rio, essa seríssima instituição que recebeu Sarney e Paulo Coelho, se negando a receber Drummond e Lima Barreto. Uma total afronta! Ato bárbaro e medieval! A cena foi tão chocante que eu, um típico narrador onisciente de histórias, portanto um bibliomaníaco, fui às lágrimas.
Milhares de pessoas, carregando tochas, traziam livros e mais livros para serem ali sacrificados. Göbbos, estreiando, arremessou ao fogo o livro Iracema, do nordestino José de Alencar, e, corrompendo o lema da ABL, gritou: “Ad mortalitatem!”. Em seguida foi um festival de arremessos. Era possível ver as seguintes obras que ali jaziam (alguém já disse que manuscritos não ardem, mas aqueles arderam e muito): Capitães da areia, do nordestino Jorge Amado; O auto da Compadecida, do nordestino Ariano Suassuna; Morte e Vida Severina, do nordestino João Cabral de Melo Neto; um volume de poesia completa, do nordestino Ferreira Gullar; Bonitinha, mas ordinária, do nordestino Nelson Rodrigues; O cortiço, do nordestino Aluísio de Azevedo; Vidas Secas, do nordestino Graciliano Ramos; e, ironicamente, morreu no fogo o livro Fogo Morto, do nordestino José Lins do Rego. Minutos depois sobraria até para o Dicionário, do nordestino Aurélio Buarque.
Uma mulher arremessou ao fogo um exemplar da Canção do exílio, do nordestino Gonçalves dias, dizendo: “Nordestino, o teu exílio é o Rio. Se tem saudade da tua terra, volte logo para o nordeste! Ninguém te quer aqui!”. Outro cidadão arremessou dois livros da nordestina Rachel de Queiroz, dizendo: “Esse aqui, O quinze, eu taco no fogo por você ser nordestina; já esse, o Memorial de Maria Moura, eu taco no fogo por você ter sido uma comunista que apoiou a ditadura de 64, onde já se viu isso???”. Um rapazote magrelo, ao contemplar aquela medieval e imensa fogueira de livros, inadvertidamente deixou escapar sua surpresa, dizendo: “Puxa, eu não sabia que o nordeste tinha dado tanto escritor assim à literatura brasileira”. Por ter constatado uma verdade que ninguém queria ouvir, o rapazote foi espancado pelos demais.
Após, um homem estava para lançar ao fogo o Grande Sertão: Veredas, quando Göbbos viu a cena e o impediu, gritando: “Não, seu idiota, o Guimarães Rosa não é nordestino, é mineiro!”. Um jovem estudante de Direito arremessou a Oração aos moços, do nordestino Ruy Barbosa, berrando: “Ruy Barbosa cabeção!”. Um outro jogou as poesias completas do nordestino Gregório de Matos no fogo, dizendo: “Boca do inferno, vai pro inferno!”. O livro de poesias Libertinagem, do nordestino Manuel Bandeira, que contém o famoso poema Vou-me embora pra Pasárgada, foi atirado aos gritos de “Já vai tarde, Bandeira!”. Até que num dado momento, todos pararam para observar uma curiosa cena: Um senhor bem idoso, com a ajuda de um carrinho, jogou calmamente na fogueira os sessenta volumes do Tratado de Direito Privado, do nordestino Pontes de Miranda.
 Dentre a multidão ensandecida, um deles ainda mais exaltado gritou: “Esses autores envergonham a gloriosa literatura brasileira! A natureza os criou para serem garçons, mas eles teimaram em virar escritores! Agora queimem, nordestinos!”. Ele falara como um profeta, pois “Lá onde queimam-se livros, queimam-se também no final pessoas”.




Capítulo 4 – Primeira solução: DEPORTAÇÃO
De modo a preparar a primeira solução, Paul Liszta ministrou uma palestra sobre Cesare Lombroso aos membros da NN, ensinando como reconhecer um nordestino principalmente pelos traços, mas também pelas suas roupas, gestos ou sotaque. Nesse trecho da palestra, Paul Liszta descreve a aparência do nordestino:
“Dentre os nordestinos, os que mais me irritam são os típicos, aqueles que são o molde que Deus usou para criar os demais nordestinos. Os homens são cabeçudos, orelhudos, baixos, possuem um nariz grande e gordo, pernas arqueadas, e todos usam aquele maldito chapéu; as mulheres são baixas, lentas, têm os ombros largos, as pernas finas, traços de bruxa, usam óculos, e todas têm diabetes, osteoporose e hipertensão arterial (por isso nossos hospitais do SUS vivem cheios!)”.
 Começava a caça aos nordestinos, e o Cristo Redentor pintado de preto assistiu lá de cima esse crime de braços abertos, indiferente. Eu disse crime? Tudo foi feito na mais límpida legalidade, de acordo com os ditames da noção de justiça kampfinista. Afinal, o que é o Justo senão o que os poderosos assim o consideram?
A primeira vítima curiosamente foi uma exceção ao modelo de nordestino exposto na palestra: uma baiana vendedora de acarajé, cuja barraca fica no Largo da Carioca, bem ao lado daquele cristão de bom coração que grita com um megafone “Você merece o inferno!”. Paul Liszta, ao avistá-la, disse: “Senhora, não tenho nada contra os negros, mas como a senhora é baiana, consequentemente é nordestina. Assine esse documento, por favor. A Bahia te espera de volta de braços abertos. Ufa, já não aguentava o fedor da sua comida! Fique tranquila, na Bahia as pessoas comem mais acarajé do que no Rio”.
Tonhão, garçom do BDP, o bar do IFCS, era um rapaz nordestino simpático e brincalhão, amigo de todos e amigo principalmente de uma boa bebida alcóolica (podia ser ruim também a bebida, contanto que fosse alcoólica). Enquanto bebia em serviço Tonhão foi pego pela NN, e alegando inocência sem mesmo saber do que estava sendo acusado, ele disse: “Ma o que que eu fiz? Tu é doido, é?”. Entretanto, ele de fato era nordestino, logo, para o poder constituído ele era culpado...
Paul Liszta, com seus olhos de lince, avistou na rua uma mulher loira, apontou pra ela e disse: “Nordeste detected! Senhora, não adianta descolorir o cabelo, seus traços denunciam”. Ele era tão implacável que não poupou nem a própria empregada doméstica, a Adineuda, uma “nordestina molde” risonha e amante de forró. Futuramente ele ficaria irado ante a dificuldade de arrumar uma empregada que cobrasse tão barato quanto ela.
 A primeira leva de nordestinos que foi despachada sumariamente do Rio para o nordeste era de aproximadamente seis mil pessoas. Chegando lá, ocorreu o primeiro problema da primeira solução: Os Estados nordestinos se recusaram veementemente a receber seus conterrâneos. O governador da Paraíba protestou, dizendo “Isso não é justo, não temos como receber essa quantidade de pessoas, e nem fomos ouvidos, fomos pegos de surpresa na trairagem!”. Já o governador do Ceará exclamou: “O nordeste já está repleto de nordestinos!”. Com isso houve uma grave crise diplomática entre o Rio e os estados do nordeste.
Como pôde a PresidentA Dilma ficar tão inerte ante a política ilegal e criminosa de Wilhelm Kampf é coisa que ninguém entendeu. Este ficou irado quando soube da resistência, e disse o seguinte a Paul Liszta: “Parceiro, não quero saber, se os nordestinos não querem os próprios nordestinos, nós então não queremos eles duas vezes. Vamo pensar urgentemente no que fazer com essa penca de gente indesejável, valeu?”. E Paul Liszta respondeu, fazendo a saudação hang loose: “Tranquilo, mermão, tranquilo!”.




Capítulo 5 – Segunda solução: CONCENTRAÇÃO

 Após refletir profundamente, Kampf decide que o melhor a se fazer é prender todos os nordestinos em campos de concentração e usá-los como mão de obra escrava. Para convencer a população fluminense, ele proferiu o seguinte discurso para uma plateia de dois milhões de ouvintes na praia de Copacabana:
“Amigos fluminenses, pensem num nordestino baixinho, de chapéu, sotaque irritante, com as pernas finas e a parte superior do corpo larga. Seria ele igual a nós? Mas é evidente que não! E se são diferentes, inferiores, por que merecem os mesmos direitos a que nós, fluminenses de verdade, fazemos jus? (palmas e gritos). Vejam, essa parte superior do corpo mais larga só confirma o que Arthur Linz disse sobre os nordestinos, que eles foram destinados pela natureza para o trabalho braçal, coisa que eles não fazem, só ficando inertes, deitados nas suas redes a esperar o depósito do bolsa-família! E fazem mais e mais filhos para ganharem mais bolsa-família. E como são férteis esses nordestinos! Para cada pessoa que nasce no seio de uma família civilizada, oitenta nordestinos nascem, aguardando uma péssima educação em casa, completamente desprovida de valores, estando nesse mundo somente com a missão de perpetuar a barbárie. Se não querem trabalhar, vamos força-los a trabalhar para nós em campos de concentração!”. (Palmas e apoio total). 
  Os nordestinos não são um povo passivo, que suporta calado e indefeso a opressão. São todos machos, brabos e cabras-da-peste. Após ler no jornal o discurso maldito, um garçom cearense e parrudo chamado Josenildo foi até uma praça pública em Fortaleza e bradou: “Nós, que somo fi de Lampião, temo que nos unir e RESISTIR a essa injustiça! Sempre servimo com muito zelo esses bicho riquinho ingrato, seja na faxina ou sendo garçom. E é isso que recebemo em troca? Esse ódio sem cabimento? Já trabalhamo muito e ganhamo poco, ma virá escravo já é demais da conta. Vamo pa peleja!”.
O discurso de Josenildo inflamou os nordestinos, que se armaram com peixeiras, umas poucas espingardas, vestiram roupas de cangaceiro, e marcharam cheios de ódio no coração em direção ao RJ cantando “Mulher Rendeira”. Os nordestinos, mesmo com suas diferenças, se uniram, porém um episódio ou outro de preconceito ocorreu entre eles, fato que beira ao absurdo, mas o ser humano é esse ser absurdo, não há o que se fazer a respeito. Cito como exemplo a frase que um cearense arretado proferiu contra um paraibano que não sabia recarregar a espingarda: “Esse paraíba viado fi duma jumenta nunca atirou de espingarda na vida! Odeio esses paraíba!”.  
Nesse conflito ulteriormente chamado de guerra civil brasileira o nordeste pelejaria movido pela autopreservação e o direito à dignidade, enquanto que o Rio, com ajuda de São Paulo e os Estados do Sul lutariam movidos pelo ódio e preconceito, essa dupla inseparável.
Ao entrarem na diminuta Varre-Sai, no Estado do Rio, os nordestinos tiveram uma supresa: Van Petta estava sozinho andando na rua despreocupadamente. O líder da juventude kampferiana havia acabado de proferir na recém-inaugurada Universidade Kampfinista de Varre-Sai um discurso para os estudantes intitulado “Já varreram demais, hora de sair”, e o mesmo só foi reconhecido pelos nordestinos porque trajava seu elegante uniforme da Osckley. Josenildo falou aos seus companheiros: “Óia um deles dando sopa aí! Não vamo deixar esses bicho escravizar nós nordestino!”. Ao ver aquela massa de cangaceiros com sangue nos olhos e peixeira em punho vindo correndo e berrando em sua direção, Van Petta assustado e ofegante, gritou a todos dizendo: “Calma, companheiros, eu sou nordestino também! Tenho o cabelo loiro porque minha ascendência é holandesa, sou até um parente distante de Mauricio de Nassau! Irmãos, tenham piedade desse pobre nordestino!”. Porém, os nordestinos não engoliram essa. Josenildo, erguendo uma ripa de madeira que havia encontrado na rua, disse: “Se ocê é memo nordestino, ocê é um traidor fi duma égua! Segura esse disgramado dos diacho”. Os nordestinos seguraram Van Petta, que gritava desesperado pedindo clemência. Então Josenildo abaixou as calças de Van Petta e empalou o mesmo sem dó. A madeira saiu pela boca daquele kampfinista; por onde ela entrou fica fácil adivinhar. Após esse, que foi o maior acontecimento na história de Varre-Sai, os nordestinos, eufóricos, avançaram rumo à cidade do Rio de Janeiro.
Quando chegaram em Miracema, os nordestinos foram emboscados e completamente esmagados pelos kampfinistas, muito mais disciplinados e melhor equipados. Josenildo, o líder, foi um dos primeiros a morrer. Ao todo um milhão de nordestinos morreu, outro milhão ficou ferido e dois milhões foram presos em campos de concentração (Wilhelm conseguiu o que queria). As cabeças dos nordestinos mortos foram cortadas para dar o exemplo, e os corpos deixados aos urubus; o escultor Marcel Verkauft fez na Nova Iguaçu “nordestinenrein” uma enorme escultura de um Wilhelm de três metros segurando as cabeças dos nordestinos para louvar a vitória kampfinista. Nessa altura, não só Nova Iguaçu, como o Estado do Rio de Janeiro inteiro estava sem nordestinos. Isso gerou uma enorme dificuldade de se repor essa mão de obra usando somente moradores fluminenses. Muitas empresas foram obrigadas a declarar falência e uma crise econômica se instaurou no Rio.
 Os Estados vencedores tiraram a inerte presidenta Dilma e colocaram Wilhelm como ditador do Brasil, e o Rio de Janeiro virou a capital do país. O primeiro passo de Kampf, com a feitura das leis de praxe, foi tirar o nordeste do mapa do Brasil, que deu uma emagrecida considerável, ficando no formato de um cavalo-marinho. Agora não mais fazia parte do Brasil o Baião, o Frevo, o Forró, o Maracatu, o Bumba-meu-Boi, as Festas Juninas, a Literatura de Cordel, o Cinema de Glauber Rocha, o Baião de dois, os humoristas cearenses, o Manguebeat, a Tropicália, a Carne de sol, bem como todos aqueles gênios queimados na mencionada fogueira medieval. Os números de desenvolvimento e educação melhoraram consideravelmente sem o nordeste, e a propaganda kampfinista se valeu disso (“vejam como melhoramos o IDH do país!”). Já os hospitais públicos brasileiros continuaram lotados...
O novo país passou a se chamar República de Virgulino (bocas maldosas disseram que o idioma falado nesse novo país era o nordestinês, só compreendido entre os nordestinos). Alguns nordestinos donos de terra, que já tinham cargos públicos no nordeste, como deputados e senadores, continuaram no poder na Rep. de Virgulino e governaram o novo Estado. Digo, governaram apenas no papel, porque na prática mandava o Brasil, que ocupava militarmente o nordeste.
Um campo de concentração foi criado em Varjota, Fortaleza, e Wilhelm foi visita-lo na companhia de Arthur Linz. Pela primeira vez Kampf conheceria o nordeste. Antes do campo, ele fez um turismo, conheceu Iracema, a carnaúba, as praias, as falésias, a ponte dos ingleses. “Por Alá! Eu não sabia que aqui era um lugar tão bonito!”, disse ele. Contudo, Wilhelm, como um típico turista que chega naquelas bandas, reclamou: “Mas onde está o nordeste de verdade, a miséria, o chão rachado, os esqueletos das vaquinhas?”. Então ele deixou os pontos turísticos e fez um verdadeiro “tour da seca”, terminando no KZ Varjota.
Durante o tour da seca, ocorreu um bate papo filosófico entre Wilhelm Kampf e Arthur Linz. Este começou dizendo: “Nietzsche dizia que existe um abismo entre a linguagem e as coisas que ela representa. Se liga como é bizarro, usando a palavra ‘nordestino’ a linguagem trata como iguais um baiano e um cearense. O mesmo ocorre quando usamos a palavra ‘oriental’, como se um libanês fosse igual a um japonês. Fala sério...”. Wilhelm então responde: “Parceiro, você não vê semelhanças entre os diferentes povos nordestinos? Se liga, né! Todos falam estranho, são ignorantes, moram em estados pobres, roubam nossos empregos, e o mais óbvio: todos moram na região nordeste do Brasil, hehehe. Quanto aos orientais, você tá certo, como podemos tratar igualmente um seguidor dos ensinamentos do Profeta Muhammad e um infiel?”. A conversa estava nesses termos quando eles puderam avistar de longe o KZ Varjota.
Não é a primeira vez que campos de concentração são feitos no nordeste. Nas grandes secas de 1915 e 1932, foram criados campos de concentração no Ceará para que não se repetisse o que já havia ocorrido na também histórica seca de 1877: a invasão e saque da capital Fortaleza pelas vítimas da seca.
O KZ Varjota foi feito numa área de caatinga e era um campo vasto de terra envolvido por um arame farpado. Naquela área delimitada pelo arame havia três galpões, um usado como dormitório, outro como refeitório e o último como fábrica de armamentos, onde os presos, em regime de escravidão, trabalhavam para os industriais que bancaram a candidatura de Kampf. Ao chegar no KZ Varjota, Kampf viu uma criança esquelética e barrigudinha, que se chama Vinicius e disse com escárnio: “Olha como as crianças estão barrigudinhas, ninguém pode nos acusar de estar alimentando mal elas!”. Na verdade, a escassa comida que os kampfinistas distribuíam aos presos do campo só fornecia diariamente um terço dos nutrientes mínimos necessários ao bom funcionamento do corpo humano. A mãe de Vinicius foi até Wilhelm e disse: “Sinhô presidente, brigado pela comida que ocê nos dá. É poca sim, mar antes nem sempre eu tinha comida pa da po meus doze fio”. 
Restou claro para todos que a Concentração possuía uma série de problemas graves: Era muito difícil organizar todos os campos de concentração, levar mantimentos e manter a ordem; os gastos necessários à manutenção dos campos eram enormes; sucederam muitos episódios de revolta devido ao trabalho escravo, insalubridade e pouca comida; e o maior problema de todos: Os kampfinistas não sabiam o que fazer com tanto nordestino, pessoas indesejadas.
Quando Wilhelm deixou o KZ Varjota, um mau pensamento brotou na sua mente: “Quanto nordestino junto! Como eles são inúteis... Não, não, são perniciosos mesmo! Uma praga! Se eles continuarem vivos vão se reproduzir! E como eles são férteis!!! Todas as soluções tentadas falharam, só nos resta a Ultima ratio... É preciso cortar o mal pela raiz”. 
  


Capítulo 6 – Solução Final: EXTERMINAÇÃO
 Wilhelm por fim resolveu negar ao nordestino o seu direito de existência. Esse discurso, televisionado para todo o Brasil, foi o mais inflamado de todos, e visava o apoio popular para a implementação da solução final:
  “Amigos brasileiros, nossa política de deixar o Brasil “nordestinenrein” está sendo um sucesso, porém ela deve avançar mais, o problema ainda não foi solucionado. Vocês não percebem como dávamos poder aos nordestinos? Deixávamos eles cuidando de nossos filhos, fazendo nossa comida... Percebam a tragédia que pode acontecer caso os nordestinos voltem a ter o direito de convívio entre nós: As babás poderão matar nossas crianças; os porteiros, motoristas e empregadas, que sabem tudo da nossa vida, nos roubarão quando desejarem; e os pedreiros, estes são os mais perigosos! Eles podem de propósito construir errado nossa casa, que desabará e certamente matará na hora toda a nossa família! Vocês estão compreendendo? Eles podem a qualquer momento nos matar e matar nossos queridos filhos! Brasileiros, eis que vos digo: Matemos eles primeiro! E comecemos pelos mais perniciosos, os cearenses e paraíbas, nordestinos por excelência! Nordestinos, seu bando de messiânicos, vocês estão liquidados e ninguém vai vir salvar vocês, aceitem isso!”.
Todos os cegos presentes aplaudiram durante cinco minutos esse discurso odioso. E eis que os campos de concentração se transformaram em campos de extermínio.
*
Poucos nordestinos ricos conseguiram escapar da morte pagando altas somas de dinheiro. Sobre esses, é interessante observar que eles não gostam de ser confundidos com os outros, os nordestinos pobres.  Como ficam irados quando alguém associa o nordeste à seca e à miséria! “O nordeste não é pobre e seco como querem nos fazer crer”, brada a elite nordestina. Eles preferem negar a existência de ambos os problemas, problemas dos outros, pois se sentem diminuídos por eles.
Os nordestinos pobres, sem dinheiro algum, não puderam escapar. O divertido Tonhão tentava animar a todos no KZ Varjota contando a seguinte piada: “Antes de vir pra essa prisão eu sonhava em ir pros steitis, pra California... O máximo que eu consegui foi morar lá na California, em Nova Iguaçu”. Enquanto todos gargalhavam, os kampfinistas chegaram com a lista negra dos escolhidos para serem fuzilados. Tonhão foi escolhido na primeira leva e colocado no paredão. O próprio Kampf estava presente e daria a ordem fatal aos soldados. Tonhão reconheceu Kampf e disse: “Tu é doido é? Sempre te servi bem, com educação... Não fiz nada pra me tacarem balaço, homi!” E Kampf finalizou, dizendo: “Mas você é nordestino, e dos piores, já que é do Ceará. Lembro que você bebia muito, Tonhão... Agora não vai mais beber, adeus!”.  Então lágrimas escorreram dos olhos de Tonhão, e ele cantou, emocionado:

Eu perguntei a Deus do céu, ai
    Por que tamanha judiação.

           Kampf deu a ordem de fuzilamento e vinte balas atingiram o peito de Tonhão, que morreu sem ter feito mal algum pra ninguém. Vinicius, sua mãe e seus onze irmãos morreram de fome dias depois, pois a comida nos campos de concentração, que já era pouca, parou de ser fornecida quando a solução final foi implementada. Adineuda, que também se encontrava presa no KZ Varjota, milagrosamente foi uma das poucas pessoas poupadas, e viveria para contar a história.
Ao todo foi aproximadamente cem mil o número de nordestinos mortos, seja por fuzilamento ou fome. A notícia do começo da matança chegou aos ouvidos dos norte-americanos, xerifes do mundo; esses sim certamente não quedariam indiferentes.


Capítulo 7 – EUA declaram guerra ao Brasil

Os EUA e os países europeus protestaram contra o massacre dos nordestinos, afinal todos eles tratam muito bem seus imigrantes e não são xenófobos. Vislumbrando no kampfinismo o renascimento do nazi-fascismo, os EUA declararam guerra ao Brasil (até que dessa vez o discurso americano que justifica o uso da força teve algum sentido).  Os americanos começaram bombardeando por seis dias incessantemente os pontos estratégicos do Brasil, como radares, bases aéreas, bases marítimas, refinarias, comunicações, etc. Por engano, acabaram acertando uma bomba atômica no Engenho Novo, que foi varrido do mapa. Ninguém sentiu falta dele.
Quando toda a infraestrutura brasileira foi destruída pelos bombardeiros ianques, os americanos invadiram o Brasil e armaram o projeto de exército nordestino, que antes só possuía peixeiras e poucas espingardas, com o fuzil HK 416/417 e equipamento moderno. Os EUA também enviaram tropas americanas para lutarem contra o exército brasileiro, usando armas nucleares, químicas, biológicas, três porta-aviões, tanques, drones, caças, bombardeiros, navios e submarinos. O Brasil, que após a ditadura considera as forças armadas um inimigo e por isso não investe nelas o quanto deveria, lutou apenas usando seu Exército destreinado e sem experiência, portando um fuzil FAL; sua Marinha obsoleta, se bem que possui um porta-aviões; e sua Aeronáutica, essa a mais sucateada de todas as três forças.
Os nordestinos encararam a vinda dos americanos como se fosse uma intervenção divina para salvá-los.  No campo de concentração de Varjota, Adineuda, a ex-emprega doméstica de Paul Liszta, com as mãos para o céu apontou um drone americano e exclamou: “Ó o messias! Ele veio nos sarvar! Brigado, sinhô Deus! Brigado, meu padin Ciço!”
Cumpre agora tratar dos três líderes das forças armadas brasileiras que foram trucidados pelos norte-americanos. O Almirante Jorge Bickel sempre amou a marinha, e queria formar uma família. Então ele se casou com Maria e teve um filho chamado Hugo. Como Jorge Bickel vivia viajando, Maria um dia pressionou Jorge enviando-lhe uma carta com os seguintes dizeres: “Ou eu ou a marinha”. Jorge conseguiu hoje alcançar o maior posto da marinha de guerra do Brasil, e mensalmente envia a pensão alimentícia à sua esposa. O Marechal Olden era um velho corcunda de 90 anos que louvava a guerra, mas costumava dizer com pesar que nasceu no país errado, porque o Brasil era um país pacifista sem espírito guerreiro. Velhote old school, Olden defendia o exército, a disciplina, a família tradicional, a pátria, a ordem, os bons costumes, os cidadãos de bem, a Igreja e a propriedade privada, e tinha uma tatuagem no braço direito escrito “Bolsonaro”. O Brigadeiro Eggenstein era um amigo de Kampf que não tinha experiência prática, mas como era um talentoso autodidata, leitor da Arte da guerra do Sun-tzu e do Maquiavel, e do Da guerra do Klausewitz, Kampf escolheu ele para liderar a aeronáutica brasileira.
Na Batalha naval, Jorge Bickel perdeu todos os seus nove submarinos e cem navios foram afundados. Na batalha aérea, os brasileiros não conseguiram tirar a vida de um americano sequer.  A guerra contra os EUA foi um verdadeiro massacre norte-americano, assim como havia sido a guerra civil um massacre fluminense. A diferença de forças em ambos os casos era proporcionalmente a mesma.
O Brigadeiro Eggenstein, vendo que a derrota brasileira era iminente, fez uma ligação urgente para Wilhelm Kampf e disse a este: “Mermão, a gente tem que recuar, os americanos tão avançando, ganhando bases e pontos estratégicos importantes e massacrando o Brasil”. Mas Wilhelm confiava cegamente em sua vitória, e gritou no outro lado da linha “Não recuem! Resistam até o último homem!”. O Brigadeiro, com educação, replicou “Mas, mermão, eu li no A arte da guerra que...” “Não recuem, cacete!!!”, berrou, irado, Kampf. O Brigadeiro aceitou contrariado, desligou o telefone e pensou alto: “Que cara chato, fica dando palpite em tudo”.
Muito ofegante, Paul Liszta entrou no Palácio Guanabara, fez rapidamente a saudação do hang-loose e deu péssimas notícias a Wilhelm Kampf: “Mermão, fudeu, trezentos mil soldados americanos estão invadindo o Rio de Janeiro juntamente com um batalhão da República de Virgulino”. “Nein, nein, nein!!!”, respondeu Kampf, dando um soco potente na mesa. O pânico reinou no Palácio Guanabara. “Esses americanos desgraçados vivem se metendo onde não são chamados!”, disse Kampf, em seguida se virando pra direção de Meca e rezando desesperado a Alá.
Teve início a famosa e épica Batalha do Rio de Janeiro. Foi uma matança sem precedentes, milhões de brasileiros morreram e a cidade foi reduzida a um monte de escombros. Wilhelm finalmente foi preso no Palácio Guanabara pelo batalhão da República de Virgulino, que conseguiu chegar lá antes dos americanos. Os nordestinos aos gritos de “Morte ao fio do belzebu!” desembainharam as peixeiras e Wilhelm, indefeso, recebeu sete estocadas. Após, os nordestinos levaram de avião o inconsciente Kampf até o Ceará. O voo ocorreu sem problemas, mas no interior do avião o clima estava tenso.  Kampf perdia muito sangue, muitos queriam aplicar logo um golpe de misericórdia, outros impediam. Ninguém sabia ao certo o que fazer com o ex-ditador. Quando o avião chegou ao Ceará, e todos desceram com o moribundo num vasto campo deserto, um nordestino se apresentou à frente de todos e falou: “Sou Raimundo Nonato, um dos sete fio do falecido pai Antonho, vulgo Tonhão. Esse disgramado aí matou meu pai. Eu sei bem o que esse bicho merece!”. Então o rapaz jogou Wilhelm semiacordado num mandacaru, o famoso cacto do nordeste, que assim como os nordestinos, resiste à seca com bravura. As costas de Kampf bateram nos espinhos, que rasgaram sua carne. Percebendo então que o cacto lembrava o formato de uma cruz, Raimundo Nonato e os nordestinos decidiram crucificar Wilhelm naquele mandacaru cearense, debaixo de um sol de 40 graus. E o que havia começado com uma cruz terminaria na cruz...
Os nordestinos fizeram em volta do corpo uma festa regada à cachaça e dança ao som de zabumba, sanfona e triângulo. No meio da curtição, Raimundo Nonato, que bebia que nem o pai colocou um chapéu de cangaceiro no defunto crucificado.
Com o fim do conflito, o número de mortos norte-americanos e virgulinos foi ao todo vinte e sete. Já o número de brasileiros mortos chegou a dez milhões. Outros milhões de brasileiros foram feitos prisioneiros e liberados dias depois, porque os EUA pensaram que, prendendo os brasileiros, eles estavam perdendo um precioso mercado consumidor.
Os demais líderes kampfinistas que sobreviveram foram julgados pelos norte-americanos na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e tal tema merece um capítulo próprio.



Capítulo 8 - Os julgamentos de Mossoró

 Acabara o festim kampfinista, agora era a hora de pagar pelos erros (para sorte dos kampfinistas sobreviventes as penas que os americanos davam eram muito mais leves que as penas que os nordestinos costumavam aplicar). Alguns líderes do partido conseguiram fugir para a Europa, muitos foram encontrados e presos, outros estão sendo caçados por lá até hoje. Vejamos agora as sentenças recebidas pelos kampfinistas em Mossoró.
Tentando se defender da acusação de prática de crimes de guerra o velho Marechal Olden disse que só cumpria ordens. Tal defesa não colou... Ele foi condenado a 11 anos de reclusão, mas como já estava bem velho, morreu do coração no dia seguinte. O Brigadeiro Eggenstein falou que estava numa guerra, e “na guerra tem mais é que matar mesmo”. Foi condenado a 13 anos de reclusão e lembrado polidamente pelo juiz de que ele não havia matado ninguém. O Almirante Jorge Bickel disse que todo esse julgamento era um teatro ridículo, porque se o Brasil tivesse ganho a guerra, quem estaria no banco dos réus seriam os americanos e nordestinos, sendo certo que a justiça não é uma existência em si, mas sim uma propriedade dos vencedores. Devido a essa defesa ousada, o Almirante só pegou uma pena de prestação infinita de serviços à comunidade.  Arthur Linz, o filósofo corrompido pelo poder é julgado e condenado a reler Crime e Castigo, pra ver se dessa vez ele entende o livro corretamente. Paul Liszta foi condenado a conviver em paz com os nordestinos e a parar de chamar todos eles de baianos. Marcel Verkauft, por ser um vendido, foi condenado a ler O retrato, de Gogol. Os juízes aproveitaram para julgar a mulher de Wilhelm, Marienne Kampf, condenando ela a uma pena de multa por ter incutido ideias gaúchas na cabeça do marido.
José Göbbos não foi julgado em Mossoró, e aqui está o motivo disso: vendo que tudo estava perdido, Göbbos matou com veneno todos os seis filhos Karl, Karla, Katia, Kriemhild, Kamille e Kleydislaine; minutos depois a esposa se matou da mesma forma. Quando chegou a vez de Göbbos, ele ficou com medo e saiu correndo gritando e pulando. Foi preso e internado num manicômio.
Quando os julgamentos terminaram, os americanos, aproveitando que já estavam por aqui mesmo, resolveram ocupar militarmente a floresta amazônica.   



Capítulo 9 - Deskampfinização

Com a queda dos kampfinistas, o nordeste voltou a fazer parte do Brasil, e a fake e artificial Brasília é hoje a capital do país novamente. Os EUA, pra variar, bancaram a reconstrução do país, e lucraram muito com tal empreitada. Isso sem mencionar a Amazônia, abocanhada pelos norte-americanos, sob o argumento de que “A Amazônia é o pulmão do mundo, ela é de todos”.
Foram feitas cotas para nordestino por motivos de reparação histórica.  Além disso, foi criado o crime de nordestinofobia, com pena de 10 a 20 anos de reclusão, sendo também proibidos por lei a arte kampfinista, o símbolo do cristo negro e a saudação de hang loose (esta última proibição deixou os surfistas irados). O Cristo foi pintado de branco, como o original, e as trevas finalmente deixaram a nossa cidade.
Existe um grande museu do holocausto nordestino no centro do RJ, e muitos memoriais, como placas e esculturas foram espalhados pelo país. A “Feira dos paraíbas” foi reconstruída, e está mais animada do que nunca, com apresentações musicais de grupos nordestinos e inúmeros restaurantes servindo deliciosas carnes de sol e o imbatível baião de dois. Os campos de concentração viraram atrações turísticas. Naqueles lugares de morte os casais hoje se abraçam e tiram selfies rindo.
Os ricos industriais que bancaram a campanha de Kampf e lucraram muito com ambas as guerras fizeram autobiografias para pagar seus pecados, dando a elas nomes como “Eu financiei Wilhelm Kampf”, contudo não convenceram muita gente quanto à sinceridade desse arrependimento.
Raimundo Nonato conseguiu um emprego de garçom no BDP, onde seu pai trabalhava. Ele virou o maior ídolo do nordeste, se transformando num verdadeiro herói mitológico, mas como é um rapaz humilde, não gosta de ficar falando sobre isso.
Adineuda, fonte viva de toda essa história, constantemente dá entrevistas, ficando famosa e milionária. Ela cobra um cachê de vinte mil reais somente para permanecer meia hora em um forró.
Por fim, o islamismo não é mais a religião oficial do Brasil, e o país voltou a ser esse estado pseudolaico com o qual estamos acostumados.
Hoje no Rio de Janeiro e no Brasil todos se dão muito bem com os nordestinos (poucos são os grupos neokampfinistas, que ainda insistem no erro). Mas o assunto é um tabu, ninguém gosta de falar sobre tal episódio delicado e há um sentimento profundo de culpa nos brasileiros, mesmo naqueles que não viveram nessa época.

                                                                 FIM

POSFÁCIO PARA O AMIGO G.K.

Recebi autorização expressa do meu amigo G. K. para criar essa história totalmente fictícia baseada em opiniões dele não muito amistosas sobre os nordestinos, contudo opiniões que distam bastante dos exageros acima escritos por mim visando fins literários e educacionais. Isso é óbvio e nem precisava ser dito. Wilhelm Kampf, minha criação, é um verdadeiro monstro; já G. K. é um rapaz bom, religioso, inteligente, estudioso, inclusive é a pessoa com mais capacidade para analisar um fato histórico que eu conheço. Só quanto aos nordestinos sua interpretação falhou.
 É mais fácil negar a existência dO outro, dar as costas aO outro, destruir O outro, do que enxergar O outro e tentar compreender sua cultura e seus valores. Não restam dúvidas de que lidar com O outro é um grande desafio (e quem nunca deu uma de Wilhelm Kampf que atire a primeira pedra); O outro não fala como nós, não pensa como nós, não ouve a música que nós ouvimos e não se veste como nós. Todavia é dever de todos encarar esse desafio. O mundo é mais belo justamente pela pluralidade. Que maçante seria o mundo se só houvesse um povo e uma cultura. Imagine quão pobre seria o Brasil se o nosso ditador da história ‘carioquisasse’ inteiramente ele. Saiba que quem, movido por seu preconceito, quiser retirar do Brasil os nordestinos, índios ou negros, retirará desse país não só inúmeros gênios, como também a essência mesma dessa misturada terra, pois o Brasil só é completo, só é Brasil, com nordestinos, índios e negros. Além disso, sem o nordeste, o excelente autor dessa história não existiria, porque ele é filho de uma alagoana. Meu amigo, o teu preconceito não te deixou ver que, em verdade, os principais problemas do Rio de Janeiro atual são a miséria, a falta de educação e saúde públicas de qualidade, a corrupção, o trânsito caótico, o caos urbano, a poluição, o nível pífio das nossas universidades, a nossa malandragem (no pior sentido da palavra), o desrespeito ao próximo, a indiferença, a limitada possibilidade de acesso à cultura, os políticos despreparados e descompromissados, a atuação truculenta da nossa Polícia Militar, o aumento da homofobia, do machismo, do preconceito racial e da intolerância religiosa, entre muitos outros exemplos. E não, amigo G.K., a culpa de todas essas mazelas certamente não é dos nordestinos.  Quer você aceite ou não, os nordestinos são uma força de trabalho indispensável aqui no Rio. Ao contrário de vilões, os nordestinos pobres são vítimas do sistema injusto e da natureza, ambos implacáveis e indiferentes ao sofrimento humano. Como você pode crer que a origem de todo o mal de uma cidade seja um grupo que consiste na mão de obra mais barata da atualidade, os ‘escravos modernos’ indispensáveis ao sistema? Eles são um problema ou a consequência de um problema? E aquela criancinha de Varjota, magrinha e barrigudinha ao mesmo tempo, suja, descalça, desnutrida, vestindo trapos. Você não pensa nela? Ela, que mora num lugar sem oportunidades, sem dignidade. Menos preconceito e mais pensamento na criancinha de Varjota, é disso que precisamos.
Veja só, G. K, você é um membro do islamismo, e o que você faz com os nordestinos é a mesma coisa que fazem contra os muçulmanos. Para muitas pessoas, movidas pelo preconceito, os muçulmanos não passam de loucos homens-bomba.

Então, G.K., é chegada a hora da sentença: Por você considerar que os nordestinos são o maior problema do Rio de Janeiro (e esse e só esse foi o seu crime, que fique claro), te condeno a ler esse texto e refletir sobre o seguinte: Para onde as ideias podem levar. Em algum lugar do mundo, numa época não tão distante, ideias como a sua geraram uma doutrina assassina que matou milhões. E tudo começou com uma simples ideia... O mundo atual precisa urgentemente de mais tolerância para com os nordestinos, mas também para com os outros Outros, como os gays, os adeptos das religiões africanas, os muçulmanos, os negros, entre outros Outros). É nesse mundo que eu acredito, é esse mundo que eu defendo. E você, amigo G. K., quer finalmente se juntar a mim?”.