Wilhelm Kampf oder Solução
do problema nordestino
Capítulo 1 – Ascensão
Pobre Rio de Janeiro. As eleições de
2014 para governador aconteceriam em alguns meses, tendo como candidatos Cesar
Maia, Garotinho, Pezão, Lindberg Farias, entre outros nomes tão péssimos quanto
esses. O jovem Wilhelm Kampf queria trazer uma alternativa, uma salvação a essa
situação precária, afinal o Estado do Rio, que já estava um caos, ficaria ainda
pior com candidatos dessa magnitude. Nosso amigo, formado em História no IFCS,
começou a atuar na política pelo centro acadêmico, esse “estágio” dos políticos.
Wilhelm, a despeito do esquerdismo que monopoliza o IFCS, filiou-se a um
partido de direita chamado PF, Partido Fluminense. Usando de sua excelente
oratória, Wilhelm foi aos poucos subindo os degraus da hierarquia do partido e
obteve finalmente apoio para se candidatar a Governador do Estado do Rio de
Janeiro pelo PF.
As ideias de Wilhelm Kampf eram
extremamente radicais. Talvez pela influência de sua esposa gaúcha, logo,
separatista nata, ele era a favor do Rio de Janeiro se separar do Brasil e
constituir um país autônomo, afinal “tínhamos petróleo, e os demais estados só
faziam roubar nossos royalties!”, mas essa ideia não vingou no seio do PF (o Partido
Fluminense não se sentia um “Partido Gaúcho”). Uma outra ideia, contudo, foi aplaudida pelo
partido inteiro e virou carro-chefe da sua propaganda política: Wilhelm
considerava que o maior problema do Rio de Janeiro era a presença de
nordestinos, e inicialmente sua ideia era mandá-los de volta para seus estados
de origem.
Wilhelm
defendia o “Rio puro”, que nada mais significava do que o Rio de Janeiro sem
nordestinos. Já ele, Wilhelm, não era nada puro, mas sim fruto da mais épica
mistura racial. Sua ascendência era escocesa, árabe, judia, indiana, indígena,
bósnia e alemã (de onde provém seu sobrenome). Apesar da insinuação gerada pelo
seu nome germânico, o elemento racial árabe era o mais presente, o que fica
comprovado pela escura cor de sua pele. Ademais, Wilhelm era baixo, tinha uma
cabeça com cabelos crespos um pouco avantajada, e, tendo esses traços, bem como
ante a dificuldade de classificá-lo em
virtude da mistura racial, alguém poderia arriscar que Wilhelm fosse
nordestino.
Cumpre
mencionar também que Wilhelm, talvez pela predominância da ascendência árabe,
possuía uma fé sincera e profunda no islamismo. Wilhelm ficava muito triste,
porque sua religião era sempre alvo de preconceito, sendo mais comum o famoso
absurdo de considerar os muçulmanos como sendo fanáticos e loucos homens-bomba.
A vida de Wilhelm costumava ser religiosa, reservada e familiar, junto de sua
esposa gaúcha, Marienne Kampf, e seu pequeno filho Abdul Abdala. Certos
acontecimentos, porém, dariam grande notoriedade ao jovem, tornando-o a mais
famosa figura pública do Brasil.
As
doutrinas do PF eram construídas por Wilhelm em parceria com o filósofo oficial
do partido Arthur Linz, rapaz alto, magro, moreno, muito inteligente, que, após
ler Crime e Castigo, achou que
deveria virar um Raskólnikov, um super-homem, e buscar o poder. Para isso,
Arthur Linz se filia ao PSTU sem fé alguma no marxismo e sonha com a revolução,
mero meio para o seu fim (ele poderia ter escolhido um partido mais expressivo,
é verdade). Todavia, acreditando que seu amigo Wilhelm Kampf venceria as
eleições e governaria com mão forte o Estado do Rio, Arthur abraça o kampfinismo
sem acreditar em uma palavra, somente visando ao poder. As seguintes pérolas
foram proferidas pelo filósofo do partido: “Os nordestinos são completamente
diferentes de mim, me recuso a reconhecer a mesma essência. Eles certamente não
possuem alma. Eles são tão diferentes que até o modo grego utilizado pela
música nordestina é diferente, qual seja, o mixolídio”. Outra: “Já dizia
Aristóteles que a natureza não destinou os nordestinos para as coisas
intelectuais. Só resta a eles pegar na enxada e capinar lotes! Lá no nordeste,
é claro...”.
Já
a propaganda de Kampf ficou a cargo do rei da propaganda José Göbbos, um rapaz
magro esquelético com cara de assassino, autor da seguinte frase: “Uma mentira
contada mil vezes enche tanto o saco dos demais que os vence pelo cansaço”. Göbbos
criou diversas músicas daquelas que grudam no ouvido, como a famosa “Nordeste é
uma peste”, bem como foi ele quem retratou em diversos cartazes espalhados pelo
Estado os nordestinos com um semblante traiçoeiro roubando o emprego dos
fluminenses. Em conjunto com Kampf, Göbbos criou o forte símbolo do partido:
uma cruz, que nada mais era que um Cristo Redentor negro, cujo olhar lembrava o
das aves de rapina. Por que os kampfinistas escolheram como símbolo um cristo
redentor negro eu não sei; apenas sei que, pra mim, narrador, ele representava
essa época na qual o Rio de Janeiro mergulharia profundamente nas trevas.
Wilhelm atraía multidões com sua hipnotizadora
retórica e intensa propaganda e virou a sensação do momento, sendo o assunto
mais comentado. Esse discurso proferido no Aterro do Flamengo foi o mais aplaudido
de todos e demonstra que Wilhelm não tinha muito apreço pelos nordestinos:
“Amigos do Rio de Janeiro!
Me refiro aos verdadeiros fluminenses e não aos nordestinos, que obviamente são
do nordeste, e para lá devem retornar. Vocês
já imaginaram como seria maravilhoso se o Rio de Janeiro ficasse sem
nordestinos? Esse sim poderia ser chamado de “Estado Maravilhoso”, assim como
chamamos a cidade do Rio! Oh, esse sonho pode se realizar, se você me der a
chance, votando em mim! (aplausos).
É evidente que todos os
problemas do Rio de Janeiro são causados pela presença dos nordestinos, essa
barbárie em meio à civilização. Eles são mal educados, falam num dialeto
ininteligível, vêm ao nosso Rio sem preparação alguma e já trazem logo a
família inteira, bebem cachaça o tempo todo e só fazem merda! (risos). O que
eles vêm tanto fazer aqui? Voltem para a Paraíba e o Ceará, nós não queremos
vocês aqui! (muitas palmas). Sei que o nordeste é composto por Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Pernambuco, Rio
Grande do Norte e Sergipe, mas Paraíba e Ceará é o nordeste por
excelência, esses são os piores! Será que eles vêm até aqui por causa da
pobreza? Ora essa, eles são pobres porque querem! Não são gente trabalhadora! Por
que naquele interior seco eles não fazem um monte de cassinos e hotéis de luxo,
como Las Vegas fez no deserto? Com esforço conseguimos tudo na vida, mas eles
não querem se esforçar, não é mesmo? São um bando de preguiçosos! (aplausos). Vocês
vão deixar esses parasitas que vieram de fora roubarem o emprego de vocês? Amigos,
se votarem em mim, deixarei o Rio de Janeiro “nordestinenrein”, e, sem os
nordestinos, vocês terão uma cidade mais bonita, mais limpa, com pessoas mais
bem preparadas e falando uma língua que você é capaz de compreender. Muito
obrigado. (estrondo de palmas e grito de “fora nordestinos”).”
Wilhelm
já tinha ganho a zona sul inteira e parte da zona norte (como, por exemplo, a
Tijuca) e região dos lagos (a burguesa Búzios), porém a baixada fluminense
possui inúmeros nordestinos, e ninguém votaria em Wilhelm lá (com exceção de
uns poucos que já queriam mesmo voltar pro nordeste e pensaram na possibilidade
de viajar gratuitamente). Nosso amigo então passou a intensificar a campanha a fim
de garantir a vitória. Bandeiras do Rio de Janeiro com a inscrição PF estavam
em toda parte. Muitos milionários das indústrias armamentista, química e
metalúrgica investiram pesado na campanha de Kampf, já prevendo que com essa
ideologia e com esse sobrenome ele levaria inevitavelmente o país à guerra.
Conforme o esperado, preconceitos contra os
nordestinos começaram a aparecer, como, por exemplo, não pagar 10% aos garçons
nordestinos. Houve um caso desses num restaurante do Leblon, onde um cliente
fluminense falou ao garçom nordestino: “Quando eu te pedir paçoca, você me traz
o doce e não farofa, seu nordestino burro! Não vou te pagar o serviço”. Além
disso, quem ouvia arrocha, axé ou forró era vilipendiado (o mesmo aconteceria
com o baião, mas infelizmente ninguém mais ouve música boa por aqui). A cidade
estava em polvorosa quando finalmente ocorreram as eleições. Wilhelm Kampf
venceu já no primeiro turno. Começaria o suplício do povo nordestino.
Capítulo
2 – Kampfinização
Apesar de obter o poder de forma
democrática, Wilhelm Kampf não perdeu tempo em conquistar o poder total no Rio
de Janeiro. Com o controle da Polícia Militar, da Polícia Civil, de uma Polícia
Secreta recentemente criada, e do Povo, não foi difícil se assenhorar da
imprensa e dos três poderes. Ele então cria rapidamente uma série de leis
estaduais, as chamadas “leis do Rio de Janeiro puro” ou “Reinheitsgebote”. Uma
delas autorizava as futuras deportações de nordestinos; outra obrigava os
nordestinos a usarem no braço um emblema que consistia num chapéu de cangaceiro
com a palavra “nordestino” escrita na parte central; outra proibia no Rio o
casamento entre um nordestino e um não-nordestino; mais outra tirava o direito
dos nordestinos de serem servidores públicos, médicos, advogados e engenheiros;
a última delas proibia o usucapião, retroagindo inclusive para tornar sem
efeito legal os usucapiões já finalizados nos trâmites legais. Era um jeito de
limpar rapidamente a Baixada Fluminense, que segundo Kampf era uma extensão do
nordeste no território do Rio (sem moradia aqui, Kampf imaginou que os
nordestinos não resistiriam ao serem mandados de volta para sua região de
origem). Nas partes mais pobres da Baixada Fluminense, a regra é a posse
mediante invasão, com o ulterior usucapião para fins de legalização. Kampf, com
desdém, disse sobre isso um dia: “Só pensam em Usucampeão! É
Usucampeão pra lá, é Usucampeão pra cá... Bandidos usurpadores da propriedade
alheia! Pagar pela propriedade que é bom vocês não fazem, né?”.
Wilhelm não pensou duas
vezes e, após um decreto de sua lavra, o islamismo se tornou a religião oficial
do Brasil. “Com isso eu salvo esse Estado católico, nada laico, de se tornar um
Estado fundamentalista crente, controlado por pastores ladrões”, disse Wilhelm
sobre seu ato.
Tudo aconteceu muito rápido.
Num piscar de olhos foi forjada uma imensa teia burocrática, com centenas de
ministérios, departamentos e seções. Milhares de cargos foram criados, e todos
queriam uma boquinha nessa festa, pouco importando a ideologia íntima e
pessoal; muitos, talvez a maioria, pensavam mesmo era no dinheiro e nas suas
carreiras. O kampfinismo tomou conta das universidades,
destronando finalmente o marxismo, que detinha o monopólio ali desde a época de
Adão. O responsável por isso, homem que corrompeu uma geração inteira de
jovens, foi Van Petta, o líder da juventude kampfinista, rapaz branco, loiro,
alto e de olhos azuis. Possuindo esses traços, bem como esse vil cargo ninguém
imaginaria que Van Petta era nordestino, nascido em Recife, tendo vindo ao Rio
de Janeiro ainda criança, razão pela qual não tinha nenhum vestígio de sotaque
pernambucano.
Também foi criada a
mencionada Polícia Secreta, a NN (Neutralizadora de Nordestinos). Seu chefe se
chamava Paul Liszta, um rapaz alto, branco, com traços de mafioso italiano e
sotaque irritante. Paul Liszta sempre odiou os nordestinos, e se mostrou o
caçador de nordestino mais hábil de todos. “Sou capaz de reconhecer um
nordestino a trezentas jardas de distância”, dizia Paul Liszta se gabando. A NN
atuando em conjunto com o Ministério de Realocação foi o terror dos
nordestinos, indefesas caças desses implacáveis caçadores.
Os kampfinistas eram todos jovens e
“estadistas” (nacionalistas em nível estadual). Com unhas e dentes defendiam a
supremacia da cultura do Rio de Janeiro ante as influências inferiores e
perniciosas da cultura nordestina. Os membros do partido só se comunicavam entre
si usando gírias do Rio; o uniforme era leve, estampado e fabricado pela Osckley;
além disso, o gesto de cumprimento utilizado pelos kampfinistas era o braço direito
estendido com a mão fazendo um hang-loose.
Esse bando de jovens irados fez uma
série de desfiles militares pelas ruas, cantando o grude “Nordeste é uma
peste”, e quebrando todos os estabelecimentos comerciais de donos nordestinos,
principalmente restaurantes. Num certo dia, esses loucos tiveram a ousadia de
pintar de preto o Cristo Redentor, símbolo do Rio de Janeiro. Algumas horas
depois, quinhentos kampfinistas armados com explosivos, porretes, martelos,
machados e um nunchaku se reuniram e marcharam até o templo dos nordestinos no
Rio de Janeiro: o Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Uma banda de
forró se apresentava no palco para delírio das centenas de nordestinos que
estavam presentes, buscando um momento de merecido lazer após um fatigante dia
de trabalho. Chegando lá, o mais exaltado do grupo kampfinista gritou: “A feira
dos paraíbas foi criada pro nordestino se sentir em casa... Nordestino, se
liga, mermão, o Rio de Janeiro não é a tua casa! Vamo quebrar tudo, galera!!!”.
Os kampfinistas transformaram a “feira dos paraíbas” num coliseu nordestino. Foi
uma destruição selvagem, que não deixou pedra sobre pedra. Os nordestinos
conseguiram fugir, porém alguns ficaram feridos.
A arte também foi kampfinizada. O
novo estilo, chamado de arte kampfinista, era clássico, inspirado na arte
greco-romana, e louvava a perfeição estética, as virtudes guerreiras e tudo o
que era puramente fluminense. Trezentas estátuas de um Wilhelm Kampf alto,
forte e idealizado foram feitas e espalhadas pelos quatro cantos do Rio. Seu autor
se chamava Marcel Verkauft, um jovem baixinho de óculos, que antes era um
artista de verdade, um escultor talentoso e criativo. Contudo o mesmo se vendeu
ao vil capital e à traiçoeira fama, passando a somente fazer estátuas de
Wilhelm Kampf, seja de Kampf segurando uma cruz kampfinista, Kampf pisando num
cangaceiro, Kampf fazendo a saudação do hang loose ou a famosa estátua equestre
de Kampf. Wilhelm considerava Verkauft o maior artista de todos.
Tratemos agora da enorme queima de
livros de autores nordestinos promovida pelos loucos kampfinistas.
Capítulo 3 – Queima de
livros
“...dort wo man
Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen” – Heine
(Lá
onde queimam-se livros, queimam-se também no final pessoas).
Uma
enorme queima de livros organizada por Göbbos ocorreu justamente em frente à
Academia Brasileira de Letras, no Centro do Rio, essa seríssima instituição que
recebeu Sarney e Paulo Coelho, se negando a receber Drummond e Lima Barreto.
Uma total afronta! Ato bárbaro e medieval! A cena foi tão chocante que eu, um
típico narrador onisciente de histórias, portanto um bibliomaníaco, fui às
lágrimas.
Milhares
de pessoas, carregando tochas, traziam livros e mais livros para serem ali
sacrificados. Göbbos, estreiando, arremessou ao fogo o livro Iracema, do nordestino José de Alencar,
e, corrompendo o lema da ABL, gritou: “Ad mortalitatem!”. Em seguida foi um
festival de arremessos. Era possível ver as seguintes obras que ali jaziam
(alguém já disse que manuscritos não ardem, mas aqueles arderam e muito): Capitães da areia, do nordestino Jorge
Amado; O auto da Compadecida, do
nordestino Ariano Suassuna; Morte e Vida
Severina, do nordestino João Cabral de Melo Neto; um volume de poesia
completa, do nordestino Ferreira Gullar; Bonitinha,
mas ordinária, do nordestino Nelson Rodrigues; O cortiço, do nordestino Aluísio de Azevedo; Vidas Secas, do nordestino Graciliano Ramos; e, ironicamente,
morreu no fogo o livro Fogo Morto, do
nordestino José Lins do Rego. Minutos depois sobraria até para o Dicionário, do nordestino Aurélio
Buarque.
Uma
mulher arremessou ao fogo um exemplar da Canção
do exílio, do nordestino Gonçalves dias, dizendo: “Nordestino, o teu exílio
é o Rio. Se tem saudade da tua terra, volte logo para o nordeste! Ninguém te
quer aqui!”. Outro cidadão arremessou dois livros da nordestina Rachel de
Queiroz, dizendo: “Esse aqui, O quinze,
eu taco no fogo por você ser nordestina; já esse, o Memorial de Maria Moura, eu taco no fogo por você ter sido uma
comunista que apoiou a ditadura de 64, onde já se viu isso???”. Um rapazote
magrelo, ao contemplar aquela medieval e imensa fogueira de livros, inadvertidamente
deixou escapar sua surpresa, dizendo: “Puxa, eu não sabia que o nordeste tinha
dado tanto escritor assim à literatura brasileira”. Por ter constatado uma
verdade que ninguém queria ouvir, o rapazote foi espancado pelos demais.
Após,
um homem estava para lançar ao fogo o Grande
Sertão: Veredas, quando Göbbos viu a cena e o impediu, gritando: “Não, seu
idiota, o Guimarães Rosa não é nordestino, é mineiro!”. Um jovem estudante de
Direito arremessou a Oração aos moços,
do nordestino Ruy Barbosa, berrando: “Ruy Barbosa cabeção!”. Um outro jogou as
poesias completas do nordestino Gregório de Matos no fogo, dizendo: “Boca do
inferno, vai pro inferno!”. O livro de poesias Libertinagem, do nordestino Manuel Bandeira, que contém o famoso
poema Vou-me embora pra Pasárgada,
foi atirado aos gritos de “Já vai tarde, Bandeira!”. Até que num dado momento,
todos pararam para observar uma curiosa cena: Um senhor bem idoso, com a ajuda
de um carrinho, jogou calmamente na fogueira os sessenta volumes do Tratado de Direito Privado, do nordestino
Pontes de Miranda.
Dentre a multidão ensandecida, um deles ainda
mais exaltado gritou: “Esses autores envergonham a gloriosa literatura
brasileira! A natureza os criou para serem garçons, mas eles teimaram em virar
escritores! Agora queimem, nordestinos!”. Ele falara como um profeta, pois “Lá
onde queimam-se livros, queimam-se também no final pessoas”.
Capítulo 4 – Primeira
solução: DEPORTAÇÃO
De
modo a preparar a primeira solução, Paul Liszta ministrou uma palestra sobre Cesare
Lombroso aos membros da NN, ensinando como reconhecer um nordestino
principalmente pelos traços, mas também pelas suas roupas, gestos ou sotaque. Nesse
trecho da palestra, Paul Liszta descreve a aparência do nordestino:
“Dentre os nordestinos, os
que mais me irritam são os típicos, aqueles que são o molde que Deus usou para
criar os demais nordestinos. Os homens são cabeçudos, orelhudos, baixos,
possuem um nariz grande e gordo, pernas arqueadas, e todos usam aquele maldito
chapéu; as mulheres são baixas, lentas, têm os ombros largos, as pernas finas,
traços de bruxa, usam óculos, e todas têm diabetes, osteoporose e hipertensão
arterial (por isso nossos hospitais do SUS vivem cheios!)”.
Começava a caça aos nordestinos, e o Cristo
Redentor pintado de preto assistiu lá de cima esse crime de braços abertos,
indiferente. Eu disse crime? Tudo foi feito na mais límpida legalidade, de
acordo com os ditames da noção de justiça kampfinista. Afinal, o que é o Justo
senão o que os poderosos assim o consideram?
A
primeira vítima curiosamente foi uma exceção ao modelo de nordestino exposto na
palestra: uma baiana vendedora de acarajé, cuja barraca fica no Largo da
Carioca, bem ao lado daquele cristão de bom coração que grita com um megafone
“Você merece o inferno!”. Paul Liszta, ao avistá-la, disse: “Senhora, não tenho
nada contra os negros, mas como a senhora é baiana, consequentemente é
nordestina. Assine esse documento, por favor. A Bahia te espera de volta de
braços abertos. Ufa, já não aguentava o fedor da sua comida! Fique tranquila,
na Bahia as pessoas comem mais acarajé do que no Rio”.
Tonhão,
garçom do BDP, o bar do IFCS, era um rapaz nordestino simpático e brincalhão,
amigo de todos e amigo principalmente de uma boa bebida alcóolica (podia ser
ruim também a bebida, contanto que fosse alcoólica). Enquanto bebia em serviço
Tonhão foi pego pela NN, e alegando inocência sem mesmo saber do que estava
sendo acusado, ele disse: “Ma o que que eu fiz? Tu é doido, é?”. Entretanto,
ele de fato era nordestino, logo, para o poder constituído ele era culpado...
Paul
Liszta, com seus olhos de lince, avistou na rua uma mulher loira, apontou pra
ela e disse: “Nordeste detected! Senhora, não adianta descolorir o cabelo, seus
traços denunciam”. Ele era tão implacável que não poupou nem a própria
empregada doméstica, a Adineuda, uma “nordestina molde” risonha e amante de
forró. Futuramente ele ficaria irado ante a dificuldade de arrumar uma
empregada que cobrasse tão barato quanto ela.
A primeira leva de nordestinos que foi
despachada sumariamente do Rio para o nordeste era de aproximadamente seis mil
pessoas. Chegando lá, ocorreu o primeiro problema da primeira solução: Os Estados
nordestinos se recusaram veementemente a receber seus conterrâneos. O
governador da Paraíba protestou, dizendo “Isso não é justo, não temos como
receber essa quantidade de pessoas, e nem fomos ouvidos, fomos pegos de
surpresa na trairagem!”. Já o governador do Ceará exclamou: “O nordeste já está
repleto de nordestinos!”. Com isso houve uma grave crise diplomática entre o
Rio e os estados do nordeste.
Como
pôde a PresidentA Dilma ficar tão inerte ante a política ilegal e criminosa de
Wilhelm Kampf é coisa que ninguém entendeu. Este ficou irado quando soube da
resistência, e disse o seguinte a Paul Liszta: “Parceiro, não quero saber, se
os nordestinos não querem os próprios nordestinos, nós então não queremos eles
duas vezes. Vamo pensar urgentemente no que fazer com essa penca de gente
indesejável, valeu?”. E Paul Liszta respondeu, fazendo a saudação hang loose:
“Tranquilo, mermão, tranquilo!”.
Capítulo 5 – Segunda
solução: CONCENTRAÇÃO
Após refletir profundamente, Kampf decide que
o melhor a se fazer é prender todos os nordestinos em campos de concentração e
usá-los como mão de obra escrava. Para convencer a população fluminense, ele
proferiu o seguinte discurso para uma plateia de dois milhões de ouvintes na
praia de Copacabana:
“Amigos fluminenses, pensem
num nordestino baixinho, de chapéu, sotaque irritante, com as pernas finas e a
parte superior do corpo larga. Seria ele igual a nós? Mas é evidente que não! E
se são diferentes, inferiores, por que merecem os mesmos direitos a que nós,
fluminenses de verdade, fazemos jus? (palmas e gritos). Vejam, essa parte
superior do corpo mais larga só confirma o que Arthur Linz disse sobre os
nordestinos, que eles foram destinados pela natureza para o trabalho braçal,
coisa que eles não fazem, só ficando inertes, deitados nas suas redes a esperar
o depósito do bolsa-família! E fazem mais e mais filhos para ganharem mais
bolsa-família. E como são férteis esses nordestinos! Para cada pessoa que nasce
no seio de uma família civilizada, oitenta nordestinos nascem, aguardando uma
péssima educação em casa, completamente desprovida de valores, estando nesse
mundo somente com a missão de perpetuar a barbárie. Se não querem trabalhar,
vamos força-los a trabalhar para nós em campos de concentração!”. (Palmas e
apoio total).
Os nordestinos não são um povo passivo, que
suporta calado e indefeso a opressão. São todos machos, brabos e cabras-da-peste.
Após ler no jornal o discurso maldito, um garçom cearense e parrudo chamado
Josenildo foi até uma praça pública em Fortaleza e bradou: “Nós, que somo fi de
Lampião, temo que nos unir e RESISTIR a essa injustiça! Sempre servimo com
muito zelo esses bicho riquinho ingrato, seja na faxina ou sendo garçom. E é
isso que recebemo em troca? Esse ódio sem cabimento? Já trabalhamo muito e
ganhamo poco, ma virá escravo já é demais da conta. Vamo pa peleja!”.
O
discurso de Josenildo inflamou os nordestinos, que se armaram com peixeiras,
umas poucas espingardas, vestiram roupas de cangaceiro, e marcharam cheios de
ódio no coração em direção ao RJ cantando “Mulher Rendeira”. Os nordestinos,
mesmo com suas diferenças, se uniram, porém um episódio ou outro de preconceito
ocorreu entre eles, fato que beira ao absurdo, mas o ser humano é esse ser
absurdo, não há o que se fazer a respeito. Cito como exemplo a frase que um
cearense arretado proferiu contra um paraibano que não sabia recarregar a
espingarda: “Esse paraíba viado fi duma jumenta nunca atirou de espingarda na
vida! Odeio esses paraíba!”.
Nesse
conflito ulteriormente chamado de guerra civil brasileira o nordeste pelejaria movido
pela autopreservação e o direito à dignidade, enquanto que o Rio, com ajuda de
São Paulo e os Estados do Sul lutariam movidos pelo ódio e preconceito, essa
dupla inseparável.
Ao
entrarem na diminuta Varre-Sai, no Estado do Rio, os nordestinos tiveram uma
supresa: Van Petta estava sozinho andando na rua despreocupadamente. O líder da
juventude kampferiana havia acabado de proferir na recém-inaugurada
Universidade Kampfinista de Varre-Sai um discurso para os estudantes intitulado
“Já varreram demais, hora de sair”, e o mesmo só foi reconhecido pelos
nordestinos porque trajava seu elegante uniforme da Osckley. Josenildo falou
aos seus companheiros: “Óia um deles dando sopa aí! Não vamo deixar esses bicho
escravizar nós nordestino!”. Ao ver aquela massa de cangaceiros com sangue nos
olhos e peixeira em punho vindo correndo e berrando em sua direção, Van Petta
assustado e ofegante, gritou a todos dizendo: “Calma, companheiros, eu sou
nordestino também! Tenho o cabelo loiro porque minha ascendência é holandesa,
sou até um parente distante de Mauricio de Nassau! Irmãos, tenham piedade desse
pobre nordestino!”. Porém, os nordestinos não engoliram essa. Josenildo,
erguendo uma ripa de madeira que havia encontrado na rua, disse: “Se ocê é memo
nordestino, ocê é um traidor fi duma égua! Segura esse disgramado dos diacho”.
Os nordestinos seguraram Van Petta, que gritava desesperado pedindo clemência.
Então Josenildo abaixou as calças de Van Petta e empalou o mesmo sem dó. A
madeira saiu pela boca daquele kampfinista; por onde ela entrou fica fácil
adivinhar. Após esse, que foi o maior acontecimento na história de Varre-Sai,
os nordestinos, eufóricos, avançaram rumo à cidade do Rio de Janeiro.
Quando
chegaram em Miracema, os nordestinos foram emboscados e completamente esmagados
pelos kampfinistas, muito mais disciplinados e melhor equipados. Josenildo, o
líder, foi um dos primeiros a morrer. Ao todo um milhão de nordestinos morreu,
outro milhão ficou ferido e dois milhões foram presos em campos de concentração
(Wilhelm conseguiu o que queria). As cabeças dos nordestinos mortos foram
cortadas para dar o exemplo, e os corpos deixados aos urubus; o escultor Marcel
Verkauft fez na Nova Iguaçu “nordestinenrein” uma enorme escultura de um
Wilhelm de três metros segurando as cabeças dos nordestinos para louvar a
vitória kampfinista. Nessa altura, não só Nova Iguaçu, como o Estado do Rio de
Janeiro inteiro estava sem nordestinos. Isso gerou uma enorme dificuldade de se
repor essa mão de obra usando somente moradores fluminenses. Muitas empresas
foram obrigadas a declarar falência e uma crise econômica se instaurou no Rio.
Os Estados vencedores tiraram a inerte
presidenta Dilma e colocaram Wilhelm como ditador do Brasil, e o Rio de Janeiro
virou a capital do país. O primeiro passo de Kampf, com a feitura das leis de
praxe, foi tirar o nordeste do mapa do Brasil, que deu uma emagrecida
considerável, ficando no formato de um cavalo-marinho. Agora não mais fazia
parte do Brasil o Baião, o Frevo, o Forró, o Maracatu, o Bumba-meu-Boi, as
Festas Juninas, a Literatura de Cordel, o Cinema de Glauber Rocha, o Baião de
dois, os humoristas cearenses, o Manguebeat, a Tropicália, a Carne de sol, bem
como todos aqueles gênios queimados na mencionada fogueira medieval. Os números
de desenvolvimento e educação melhoraram consideravelmente sem o nordeste, e a
propaganda kampfinista se valeu disso (“vejam como melhoramos o IDH do país!”).
Já os hospitais públicos brasileiros continuaram lotados...
O
novo país passou a se chamar República de Virgulino (bocas maldosas disseram
que o idioma falado nesse novo país era o nordestinês, só compreendido entre os
nordestinos). Alguns nordestinos donos de terra, que já tinham cargos públicos
no nordeste, como deputados e senadores, continuaram no poder na Rep. de
Virgulino e governaram o novo Estado. Digo, governaram apenas no papel, porque
na prática mandava o Brasil, que ocupava militarmente o nordeste.
Um
campo de concentração foi criado em Varjota, Fortaleza, e Wilhelm foi visita-lo
na companhia de Arthur Linz. Pela primeira vez Kampf conheceria o nordeste.
Antes do campo, ele fez um turismo, conheceu Iracema, a carnaúba, as praias, as
falésias, a ponte dos ingleses. “Por Alá! Eu não sabia que aqui era um lugar
tão bonito!”, disse ele. Contudo, Wilhelm, como um típico turista que chega
naquelas bandas, reclamou: “Mas onde está o nordeste de verdade, a miséria, o
chão rachado, os esqueletos das vaquinhas?”. Então ele deixou os pontos
turísticos e fez um verdadeiro “tour da seca”, terminando no KZ Varjota.
Durante
o tour da seca, ocorreu um bate papo filosófico entre Wilhelm Kampf e Arthur
Linz. Este começou dizendo: “Nietzsche dizia que existe um abismo entre a
linguagem e as coisas que ela representa. Se liga como é bizarro, usando a
palavra ‘nordestino’ a linguagem trata como iguais um baiano e um cearense. O
mesmo ocorre quando usamos a palavra ‘oriental’, como se um libanês fosse igual
a um japonês. Fala sério...”. Wilhelm então responde: “Parceiro, você não vê
semelhanças entre os diferentes povos nordestinos? Se liga, né! Todos falam
estranho, são ignorantes, moram em estados pobres, roubam nossos empregos, e o
mais óbvio: todos moram na região nordeste do Brasil, hehehe. Quanto aos
orientais, você tá certo, como podemos tratar igualmente um seguidor dos
ensinamentos do Profeta Muhammad e um infiel?”. A conversa estava nesses termos
quando eles puderam avistar de longe o KZ Varjota.
Não
é a primeira vez que campos de concentração são feitos no nordeste. Nas grandes
secas de 1915 e 1932, foram criados campos de concentração no Ceará para que
não se repetisse o que já havia ocorrido na também histórica seca de 1877: a
invasão e saque da capital Fortaleza pelas vítimas da seca.
O
KZ Varjota foi feito numa área de caatinga e era um campo vasto de terra
envolvido por um arame farpado. Naquela área delimitada pelo arame havia três
galpões, um usado como dormitório, outro como refeitório e o último como
fábrica de armamentos, onde os presos, em regime de escravidão, trabalhavam
para os industriais que bancaram a candidatura de Kampf. Ao chegar no KZ
Varjota, Kampf viu uma criança esquelética e barrigudinha, que se chama
Vinicius e disse com escárnio: “Olha como as crianças estão barrigudinhas,
ninguém pode nos acusar de estar alimentando mal elas!”. Na verdade, a escassa
comida que os kampfinistas distribuíam aos presos do campo só fornecia diariamente
um terço dos nutrientes mínimos necessários ao bom funcionamento do corpo
humano. A mãe de Vinicius foi até Wilhelm e disse: “Sinhô presidente, brigado
pela comida que ocê nos dá. É poca sim, mar antes nem sempre eu tinha comida pa
da po meus doze fio”.
Restou
claro para todos que a Concentração possuía uma série de problemas graves: Era
muito difícil organizar todos os campos de concentração, levar mantimentos e
manter a ordem; os gastos necessários à manutenção dos campos eram enormes; sucederam
muitos episódios de revolta devido ao trabalho escravo, insalubridade e pouca
comida; e o maior problema de todos: Os kampfinistas não sabiam o que fazer com
tanto nordestino, pessoas indesejadas.
Quando
Wilhelm deixou o KZ Varjota, um mau pensamento brotou na sua mente: “Quanto
nordestino junto! Como eles são inúteis... Não, não, são perniciosos mesmo! Uma
praga! Se eles continuarem vivos vão se reproduzir! E como eles são férteis!!!
Todas as soluções tentadas falharam, só nos resta a Ultima ratio... É preciso cortar o mal pela raiz”.
Capítulo 6 – Solução Final:
EXTERMINAÇÃO
Wilhelm por fim resolveu negar ao nordestino o
seu direito de existência. Esse discurso, televisionado para todo o Brasil, foi
o mais inflamado de todos, e visava o apoio popular para a implementação da
solução final:
“Amigos
brasileiros, nossa política de deixar o Brasil “nordestinenrein” está sendo um
sucesso, porém ela deve avançar mais, o problema ainda não foi solucionado. Vocês
não percebem como dávamos poder aos nordestinos? Deixávamos eles cuidando de
nossos filhos, fazendo nossa comida... Percebam a tragédia que pode acontecer
caso os nordestinos voltem a ter o direito de convívio entre nós: As babás
poderão matar nossas crianças; os porteiros, motoristas e empregadas, que sabem
tudo da nossa vida, nos roubarão quando desejarem; e os pedreiros, estes são os
mais perigosos! Eles podem de propósito construir errado nossa casa, que
desabará e certamente matará na hora toda a nossa família! Vocês estão
compreendendo? Eles podem a qualquer momento nos matar e matar nossos queridos filhos!
Brasileiros, eis que vos digo: Matemos eles primeiro! E comecemos pelos mais perniciosos, os cearenses e paraíbas,
nordestinos por excelência! Nordestinos, seu bando de messiânicos, vocês estão
liquidados e ninguém vai vir salvar vocês, aceitem isso!”.
Todos os cegos presentes aplaudiram durante cinco
minutos esse discurso odioso. E eis que os campos de concentração se transformaram
em campos de extermínio.
*
Poucos
nordestinos ricos conseguiram escapar da morte pagando altas somas de dinheiro.
Sobre esses, é interessante observar que eles não gostam de ser confundidos com
os outros, os nordestinos pobres. Como
ficam irados quando alguém associa o nordeste à seca e à miséria! “O nordeste
não é pobre e seco como querem nos fazer crer”, brada a elite nordestina. Eles
preferem negar a existência de ambos os problemas, problemas dos outros, pois
se sentem diminuídos por eles.
Os
nordestinos pobres, sem dinheiro algum, não puderam escapar. O divertido Tonhão
tentava animar a todos no KZ Varjota contando a seguinte piada: “Antes de vir
pra essa prisão eu sonhava em ir pros steitis, pra California... O máximo que
eu consegui foi morar lá na California, em Nova Iguaçu”. Enquanto todos
gargalhavam, os kampfinistas chegaram com a lista negra dos escolhidos para
serem fuzilados. Tonhão foi escolhido na primeira leva e colocado no paredão. O
próprio Kampf estava presente e daria a ordem fatal aos soldados. Tonhão reconheceu
Kampf e disse: “Tu é doido é? Sempre te servi bem, com educação... Não fiz nada
pra me tacarem balaço, homi!” E Kampf finalizou, dizendo: “Mas você é
nordestino, e dos piores, já que é do Ceará. Lembro que você bebia muito,
Tonhão... Agora não vai mais beber, adeus!”.
Então lágrimas escorreram dos olhos de Tonhão, e ele cantou, emocionado:
Eu
perguntei a Deus do céu, ai
Por
que tamanha judiação.
Kampf deu a ordem de fuzilamento e vinte balas atingiram o peito de Tonhão, que morreu sem ter feito mal algum pra ninguém. Vinicius, sua mãe e seus onze irmãos morreram de fome dias depois, pois a comida nos campos de concentração, que já era pouca, parou de ser fornecida quando a solução final foi implementada. Adineuda, que também se encontrava presa no KZ Varjota, milagrosamente foi uma das poucas pessoas poupadas, e viveria para contar a história.
Ao
todo foi aproximadamente cem mil o número de nordestinos mortos, seja por
fuzilamento ou fome. A notícia do começo da matança chegou aos ouvidos dos
norte-americanos, xerifes do mundo; esses sim certamente não quedariam
indiferentes.
Capítulo 7 – EUA declaram guerra ao Brasil
Os
EUA e os países europeus protestaram contra o massacre dos nordestinos, afinal
todos eles tratam muito bem seus imigrantes e não são xenófobos. Vislumbrando
no kampfinismo o renascimento do nazi-fascismo, os EUA declararam guerra ao
Brasil (até que dessa vez o discurso americano que justifica o uso da força
teve algum sentido). Os americanos
começaram bombardeando por seis dias incessantemente os pontos estratégicos do
Brasil, como radares, bases aéreas, bases marítimas, refinarias, comunicações,
etc. Por engano, acabaram acertando uma bomba atômica no Engenho Novo, que foi
varrido do mapa. Ninguém sentiu falta dele.
Quando
toda a infraestrutura brasileira foi destruída pelos bombardeiros ianques, os
americanos invadiram o Brasil e armaram o projeto de exército nordestino, que
antes só possuía peixeiras e poucas espingardas, com o fuzil HK 416/417 e
equipamento moderno. Os EUA também enviaram tropas americanas para lutarem
contra o exército brasileiro, usando armas nucleares, químicas, biológicas,
três porta-aviões, tanques, drones, caças, bombardeiros, navios e submarinos. O
Brasil, que após a ditadura considera as forças armadas um inimigo e por isso
não investe nelas o quanto deveria, lutou apenas usando seu Exército
destreinado e sem experiência, portando um fuzil FAL; sua Marinha obsoleta, se
bem que possui um porta-aviões; e sua Aeronáutica, essa a mais sucateada de
todas as três forças.
Os
nordestinos encararam a vinda dos americanos como se fosse uma intervenção
divina para salvá-los. No campo de
concentração de Varjota, Adineuda, a ex-emprega doméstica de Paul Liszta, com
as mãos para o céu apontou um drone americano e exclamou: “Ó o messias! Ele
veio nos sarvar! Brigado, sinhô Deus! Brigado, meu padin Ciço!”
Cumpre
agora tratar dos três líderes das forças armadas brasileiras que foram
trucidados pelos norte-americanos. O Almirante Jorge Bickel sempre amou a
marinha, e queria formar uma família. Então ele se casou com Maria e teve um
filho chamado Hugo. Como Jorge Bickel vivia viajando, Maria um dia pressionou
Jorge enviando-lhe uma carta com os seguintes dizeres: “Ou eu ou a marinha”.
Jorge conseguiu hoje alcançar o maior posto da marinha de guerra do Brasil, e
mensalmente envia a pensão alimentícia à sua esposa. O Marechal Olden era um velho
corcunda de 90 anos que louvava a guerra, mas costumava dizer com pesar que
nasceu no país errado, porque o Brasil era um país pacifista sem espírito
guerreiro. Velhote old school, Olden defendia o exército, a disciplina, a
família tradicional, a pátria, a ordem, os bons costumes, os cidadãos de bem, a
Igreja e a propriedade privada, e tinha uma tatuagem no braço direito escrito
“Bolsonaro”. O Brigadeiro Eggenstein era um amigo de Kampf que não tinha
experiência prática, mas como era um talentoso autodidata, leitor da Arte da
guerra do Sun-tzu e do Maquiavel, e do Da guerra do Klausewitz, Kampf escolheu
ele para liderar a aeronáutica brasileira.
Na
Batalha naval, Jorge Bickel perdeu todos os seus nove submarinos e cem navios
foram afundados. Na batalha aérea, os brasileiros não conseguiram tirar a vida
de um americano sequer. A guerra contra
os EUA foi um verdadeiro massacre norte-americano, assim como havia sido a guerra
civil um massacre fluminense. A diferença de forças em ambos os casos era proporcionalmente
a mesma.
O
Brigadeiro Eggenstein, vendo que a derrota brasileira era iminente, fez uma
ligação urgente para Wilhelm Kampf e disse a este: “Mermão, a gente tem que
recuar, os americanos tão avançando, ganhando bases e pontos estratégicos importantes
e massacrando o Brasil”. Mas Wilhelm confiava cegamente em sua vitória, e
gritou no outro lado da linha “Não recuem! Resistam até o último homem!”. O Brigadeiro,
com educação, replicou “Mas, mermão, eu li no A arte da guerra que...” “Não
recuem, cacete!!!”, berrou, irado, Kampf. O Brigadeiro aceitou contrariado,
desligou o telefone e pensou alto: “Que cara chato, fica dando palpite em
tudo”.
Muito
ofegante, Paul Liszta entrou no Palácio Guanabara, fez rapidamente a saudação
do hang-loose e deu péssimas notícias a Wilhelm Kampf: “Mermão, fudeu,
trezentos mil soldados americanos estão invadindo o Rio de Janeiro juntamente
com um batalhão da República de Virgulino”. “Nein, nein, nein!!!”, respondeu Kampf,
dando um soco potente na mesa. O pânico reinou no Palácio Guanabara. “Esses
americanos desgraçados vivem se metendo onde não são chamados!”, disse Kampf,
em seguida se virando pra direção de Meca e rezando desesperado a Alá.
Teve
início a famosa e épica Batalha do Rio de Janeiro. Foi uma matança sem
precedentes, milhões de brasileiros morreram e a cidade foi reduzida a um monte
de escombros. Wilhelm finalmente foi preso no Palácio Guanabara pelo batalhão
da República de Virgulino, que conseguiu chegar lá antes dos americanos. Os
nordestinos aos gritos de “Morte ao fio do belzebu!” desembainharam as
peixeiras e Wilhelm, indefeso, recebeu sete estocadas. Após, os nordestinos
levaram de avião o inconsciente Kampf até o Ceará. O voo ocorreu sem problemas,
mas no interior do avião o clima estava tenso.
Kampf perdia muito sangue, muitos queriam aplicar logo um golpe de
misericórdia, outros impediam. Ninguém sabia ao certo o que fazer com o
ex-ditador. Quando o avião chegou ao Ceará, e todos desceram com o moribundo
num vasto campo deserto, um nordestino se apresentou à frente de todos e falou:
“Sou Raimundo Nonato, um dos sete fio do falecido pai Antonho, vulgo Tonhão.
Esse disgramado aí matou meu pai. Eu sei bem o que esse bicho merece!”. Então o
rapaz jogou Wilhelm semiacordado num mandacaru, o famoso cacto do nordeste, que
assim como os nordestinos, resiste à seca com bravura. As costas de Kampf
bateram nos espinhos, que rasgaram sua carne. Percebendo então que o cacto
lembrava o formato de uma cruz, Raimundo Nonato e os nordestinos decidiram
crucificar Wilhelm naquele mandacaru cearense, debaixo de um sol de 40 graus. E
o que havia começado com uma cruz terminaria na cruz...
Os
nordestinos fizeram em volta do corpo uma festa regada à cachaça e dança ao som
de zabumba, sanfona e triângulo. No meio da curtição, Raimundo Nonato, que
bebia que nem o pai colocou um chapéu de cangaceiro no defunto crucificado.
Com
o fim do conflito, o número de mortos norte-americanos e virgulinos foi ao todo
vinte e sete. Já o número de brasileiros mortos chegou a dez milhões. Outros
milhões de brasileiros foram feitos prisioneiros e liberados dias depois,
porque os EUA pensaram que, prendendo os brasileiros, eles estavam perdendo um
precioso mercado consumidor.
Os
demais líderes kampfinistas que sobreviveram foram julgados pelos
norte-americanos na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e tal tema
merece um capítulo próprio.
Capítulo 8 - Os julgamentos
de Mossoró
Acabara o festim kampfinista, agora era a hora
de pagar pelos erros (para sorte dos kampfinistas sobreviventes as penas que os
americanos davam eram muito mais leves que as penas que os nordestinos
costumavam aplicar). Alguns líderes do partido conseguiram fugir para a Europa,
muitos foram encontrados e presos, outros estão sendo caçados por lá até hoje.
Vejamos agora as sentenças recebidas pelos kampfinistas em Mossoró.
Tentando
se defender da acusação de prática de crimes de guerra o velho Marechal Olden disse
que só cumpria ordens. Tal defesa não colou... Ele foi condenado a 11 anos de
reclusão, mas como já estava bem velho, morreu do coração no dia seguinte. O
Brigadeiro Eggenstein falou que estava numa guerra, e “na guerra tem mais é que
matar mesmo”. Foi condenado a 13 anos de reclusão e lembrado polidamente pelo
juiz de que ele não havia matado ninguém. O Almirante Jorge Bickel disse que
todo esse julgamento era um teatro ridículo, porque se o Brasil tivesse ganho a
guerra, quem estaria no banco dos réus seriam os americanos e nordestinos,
sendo certo que a justiça não é uma existência em si, mas sim uma propriedade
dos vencedores. Devido a essa defesa ousada, o Almirante só pegou uma pena de
prestação infinita de serviços à comunidade.
Arthur Linz, o filósofo corrompido pelo poder é julgado e condenado a
reler Crime e Castigo, pra ver se dessa vez ele entende o livro corretamente. Paul
Liszta foi condenado a conviver em paz com os nordestinos e a parar de chamar todos
eles de baianos. Marcel Verkauft, por ser um vendido, foi condenado a ler O
retrato, de Gogol. Os juízes aproveitaram para julgar a mulher de Wilhelm, Marienne
Kampf, condenando ela a uma pena de multa por ter incutido ideias gaúchas na
cabeça do marido.
José
Göbbos não foi julgado em Mossoró, e aqui está o motivo disso: vendo que tudo
estava perdido, Göbbos matou com veneno todos os seis filhos Karl, Karla,
Katia, Kriemhild, Kamille e Kleydislaine; minutos depois a esposa se matou da
mesma forma. Quando chegou a vez de Göbbos, ele ficou com medo e saiu correndo
gritando e pulando. Foi preso e internado num manicômio.
Quando
os julgamentos terminaram, os americanos, aproveitando que já estavam por aqui
mesmo, resolveram ocupar militarmente a floresta amazônica.
Capítulo 9 - Deskampfinização
Com
a queda dos kampfinistas, o nordeste voltou a fazer parte do Brasil, e a fake e
artificial Brasília é hoje a capital do país novamente. Os EUA, pra variar,
bancaram a reconstrução do país, e lucraram muito com tal empreitada. Isso sem
mencionar a Amazônia, abocanhada pelos norte-americanos, sob o argumento de que
“A Amazônia é o pulmão do mundo, ela é de todos”.
Foram
feitas cotas para nordestino por motivos de reparação histórica. Além disso, foi criado o crime de
nordestinofobia, com pena de 10 a 20 anos de reclusão, sendo também proibidos
por lei a arte kampfinista, o símbolo do cristo negro e a saudação de hang
loose (esta última proibição deixou os surfistas irados). O Cristo foi pintado
de branco, como o original, e as trevas finalmente deixaram a nossa cidade.
Existe
um grande museu do holocausto nordestino no centro do RJ, e muitos memoriais,
como placas e esculturas foram espalhados pelo país. A “Feira dos paraíbas” foi
reconstruída, e está mais animada do que nunca, com apresentações musicais de
grupos nordestinos e inúmeros restaurantes servindo deliciosas carnes de sol e
o imbatível baião de dois. Os campos de concentração viraram atrações
turísticas. Naqueles lugares de morte os casais hoje se abraçam e tiram selfies
rindo.
Os
ricos industriais que bancaram a campanha de Kampf e lucraram muito com ambas
as guerras fizeram autobiografias para pagar seus pecados, dando a elas nomes
como “Eu financiei Wilhelm Kampf”, contudo não convenceram muita gente quanto à
sinceridade desse arrependimento.
Raimundo
Nonato conseguiu um emprego de garçom no BDP, onde seu pai trabalhava. Ele
virou o maior ídolo do nordeste, se transformando num verdadeiro herói
mitológico, mas como é um rapaz humilde, não gosta de ficar falando sobre isso.
Adineuda,
fonte viva de toda essa história, constantemente dá entrevistas, ficando famosa
e milionária. Ela cobra um cachê de vinte mil reais somente para permanecer
meia hora em um forró.
Por
fim, o islamismo não é mais a religião oficial do Brasil, e o país voltou a ser
esse estado pseudolaico com o qual estamos acostumados.
Hoje
no Rio de Janeiro e no Brasil todos se dão muito bem com os nordestinos (poucos
são os grupos neokampfinistas, que ainda insistem no erro). Mas o assunto é um
tabu, ninguém gosta de falar sobre tal episódio delicado e há um sentimento
profundo de culpa nos brasileiros, mesmo naqueles que não viveram nessa época.
FIM
POSFÁCIO
PARA O AMIGO G.K.
Recebi
autorização expressa do meu amigo G. K. para criar essa história totalmente
fictícia baseada em opiniões dele não muito amistosas sobre os nordestinos,
contudo opiniões que distam bastante dos exageros acima escritos por mim
visando fins literários e educacionais. Isso é óbvio e nem precisava ser dito.
Wilhelm Kampf, minha criação, é um verdadeiro monstro; já G. K. é um rapaz bom,
religioso, inteligente, estudioso, inclusive é a pessoa com mais capacidade
para analisar um fato histórico que eu conheço. Só quanto aos nordestinos sua
interpretação falhou.
É mais fácil negar a existência dO outro, dar
as costas aO outro, destruir O outro, do que enxergar O outro e tentar
compreender sua cultura e seus valores. Não restam dúvidas de que lidar com O
outro é um grande desafio (e quem nunca deu uma de Wilhelm Kampf que atire a
primeira pedra); O outro não fala como nós, não pensa como nós, não ouve a
música que nós ouvimos e não se veste como nós. Todavia é dever de todos
encarar esse desafio. O mundo é mais belo justamente pela pluralidade. Que
maçante seria o mundo se só houvesse um povo e uma cultura. Imagine quão pobre seria
o Brasil se o nosso ditador da história ‘carioquisasse’ inteiramente ele. Saiba
que quem, movido por seu preconceito, quiser retirar do Brasil os nordestinos, índios
ou negros, retirará desse país não só inúmeros gênios, como também a essência mesma
dessa misturada terra, pois o Brasil só é completo, só é Brasil, com
nordestinos, índios e negros. Além disso, sem o nordeste, o excelente autor
dessa história não existiria, porque ele é filho de uma alagoana. Meu amigo, o
teu preconceito não te deixou ver que, em verdade, os principais problemas do
Rio de Janeiro atual são a miséria, a falta de educação e saúde públicas de
qualidade, a corrupção, o trânsito caótico, o caos urbano, a poluição, o nível
pífio das nossas universidades, a nossa malandragem (no pior sentido da
palavra), o desrespeito ao próximo, a indiferença, a limitada possibilidade de
acesso à cultura, os políticos despreparados e descompromissados, a atuação
truculenta da nossa Polícia Militar, o aumento da homofobia, do machismo, do
preconceito racial e da intolerância religiosa, entre muitos outros exemplos. E
não, amigo G.K., a culpa de todas essas mazelas certamente não é dos
nordestinos. Quer você aceite ou não, os
nordestinos são uma força de trabalho indispensável aqui no Rio. Ao contrário
de vilões, os nordestinos pobres são vítimas do sistema injusto e da natureza,
ambos implacáveis e indiferentes ao sofrimento humano. Como você pode crer que
a origem de todo o mal de uma cidade seja um grupo que consiste na mão de obra
mais barata da atualidade, os ‘escravos modernos’ indispensáveis ao sistema?
Eles são um problema ou a consequência de um problema? E aquela criancinha de
Varjota, magrinha e barrigudinha ao mesmo tempo, suja, descalça, desnutrida, vestindo
trapos. Você não pensa nela? Ela, que mora num lugar sem oportunidades, sem
dignidade. Menos preconceito e mais pensamento na criancinha de Varjota, é
disso que precisamos.
Veja
só, G. K, você é um membro do islamismo, e o que você faz com os nordestinos é
a mesma coisa que fazem contra os muçulmanos. Para muitas pessoas, movidas pelo
preconceito, os muçulmanos não passam de loucos homens-bomba.
Então,
G.K., é chegada a hora da sentença: Por você considerar que os nordestinos são
o maior problema do Rio de Janeiro (e esse e só esse foi o seu crime, que fique
claro), te condeno a ler esse texto e refletir sobre o seguinte: Para onde
as ideias podem levar. Em algum lugar do mundo, numa época não tão
distante, ideias como a sua geraram uma doutrina assassina que matou milhões. E
tudo começou com uma simples ideia... O mundo atual precisa urgentemente de
mais tolerância para com os nordestinos, mas também para com os outros Outros,
como os gays, os adeptos das religiões africanas, os muçulmanos, os negros,
entre outros Outros). É nesse mundo que eu acredito, é esse mundo que eu defendo.
E você, amigo G. K., quer finalmente se juntar a mim?”.