PLAY
MÁGICO
O
prédio da Rua Grão Pará, 288, Engenho Novo, no qual passei meus primeiros dez
anos de vida é simples, com pequenos apartamentos de dois quartos e sem
varanda. Porém, o playground (e é só isso que importa a uma criança) era
mágico! Pela ordem, primeiro havia a Gangorra. As crianças maiores, para meu
desespero, adoravam me deixar “de castigo” no alto. Surfar usando a Gangorra de
prancha também era comum. Logo após vinha o Balanço, um ao lado do outro. Nós
gostávamos de saltar do Balanço quando ele estava bem alto. Acho que eu tinha o
corpo fechado, porque fazia altas atrocidades como essa, mas nunca me machucava
sério. A seguir tínhamos o Rema-rema, algo como uma versão infantil do temido
Barco Viking. Eu, que sempre gostei de emoção, prendia o Rema-rema de um jeito
que quando o soltava fazia um barulho ensurdecedor. Ao lado do Rema-rema havia
o Escorrega, brinquedo perigosíssimo para crianças loucas como nós. Numa parte
do Escorrega era possível se pendurar ficando de cabeça para baixo. Um dia, o
Felipe, menino demoníaco muito mais velho que eu, ficou de cabeça para baixo
ali. Ele estava usando um daqueles conjuntinhos bregas que ele sempre usava:
short e camiseta com cores berrantes, como amarelo fluorescente ou roxo bem
brilhante. Só não estava usando uma coisa: Cueca. Afinal, pra que usar cueca?
Acaso o short estava rasgado? Estava. Então eis que uma gigante e peluda bolsa
escrotal (famoso saco) resolveu pular para fora, para meu grande espanto. Foi
então que pensei: “Ele tem mais cabelos ali do que eu na minha cabeça! É assim
que eu ficarei quando crescer?”. Me perdoem, eu estava na Idade da Inocência...
Finalizando
os brinquedos propriamente ditos, tínhamos o Roda-roda, que já me fez vomitar
umas três vezes e deveria ser proibido por lei. Por que chamo esses de brinquedos
propriamente ditos? Porque existiam também os Brinquedos Impróprios ou Por
Equiparação, forjados pela nossa criatividade. A rampa da garagem, por exemplo, era na verdade uma rampa para
descermos de skate ou bicicleta. Acidentes eram constantes, mas sempre
continuávamos, pois nunca houve óbito. A própria garagem não servia para
guardar carros, mas para brincarmos de pique-esconde. E o muro de tijolos
vermelhos que havia na lateral esquerda do play não estava ali para delimitar
nada, mas sim para ser escalado. Eu era um dos poucos que tinha coragem de
subir até a parte mais alta do muro, e me sentia o rei do mundo por isso.
Agora
imaginem esse play, grande, arejado, cheio de brinquedos e coberto de azulejos
com desenhos de personagens da Disney? Exato, pura magia. Esse play era o lugar
mais próximo da Disney para as crianças do Engenho Novo naquela época. Os anos
noventa não foram fáceis.
A
CRIANÇA É MÁ, A SOCIEDADE ÀS VEZES A CONSERTA
O
play vivia sempre cheio de crianças (hoje, quando vejo um play vazio, minha
alma também fica vazia). Além do Felipe, eu brincava com as irmãs Bruna e
Camila. A Camila era linda e muito má; a Bruna era boa, porém menos bonita.
Vejo esse padrão se repetir com frequência por aí, irmã bonita/”má”; irmã menos
bonita/boazinha. Também lembro do Alexandre, menino legal, engraçado e capeta;
da Viviane e Cristiane, irmãs, sendo que a Viviane era mais bonita, logo,
sabemos quem era a má e a boazinha. O rol é meramente exemplificativo, eram
muitas crianças e o texto deve prosseguir. Nesse mundo mágico não poderia
faltar a princesa: A Roberta, menina linda, magra, branca, traços finos e dos
longos cabelos lisos e negros.
Todos
esses e muitos outros, com exceção da Roberta, eram mais velhos que eu, a
maioria era até adolescente já. Eu e Roberta éramos da mesma idade, então a aproximação
era algo natural, bem como o bullying por parte das crianças, más por natureza
(será que Rousseau conheceu alguma criança?).
Uma
das maiores maldades que as crianças fizeram (mais precisamente a Camila), foi
pegar pelas antenas uma barata cascuda morta e colocá-la à força na boca da
pobre Roberta. Eu assisti a essa tortura de perto, calado e com medo de ser a
próxima vítima. Roberta subiu chorando, Camila deu uma gargalhada doentia e eu
me senti, com razão, o maior covarde da história mundial.
Um
bullying frequente e não tão maldoso, mas que me incomodava absurdamente era
quando as crianças maiores diziam: “Hugo é namorado da Roberta!”. Bom, ao mesmo
tempo que eu não gostava, eu sabia que sentia pela Roberta, não o Agape, e
certamente não o Eros, mas sim o Filos, esse amor-amizade grego. E sentia
também que era correspondido. Nós sempre negávamos a insinuação, mas ninguém
acreditava, porque de alguma forma demonstrávamos o mútuo sentimento.
Num
belo dia, Roberta espertamente teve uma ideia genial: “Hugo, já sei como fazer
com que todos parem de nos chatear: Vamos namorar!”. Até hoje não sei se isso
foi meramente uma estratégia para se defender do bullying ou se ela usou isso
de desculpa para me namorar. Só sei que aceitei na hora.
MEU
PRIMEIRO “AMOR”
Além
de aliviado, fiquei feliz mesmo. Minha primeira namorada! Como seria isso de
namorar? Mesmo criança, eu já sabia que isso haveria de ser um marco na minha
vida, uma fase de descoberta. Só não imaginei que Descoberta significaria
descobrir a Roberta...
Roberta
costumava me chamar para brincarmos em sua casa. Nós não contamos aos nossos
pais sobre o namoro, por vergonha e medo (só as crianças souberam, e o bullying
naquele aspecto realmente cessou). Por isso eu morria de vergonha de estar na
presença dos pais dela. Mas eles eram muito amáveis, porque sempre pediam pizza
de mussarela para nós (na primeira vez que eu comi pizza de mussarela,
perguntei aos pais dela se era uma pizza sem sabor). A família da Roberta
morava no quarto andar, o último do prédio. Por causa disso eu achava que era o
andar dos ricos.
Essa
fase inicial do namoro consistia em montar quebra-cabeças e jogar jogos de
tabuleiro, como o Jogo da vida. Eu sempre tirava a profissão advogado, e ficava
contente por isso (ah, a Idade da Inocência...). Quem vinha atrapalhar nossa
vida era o Leonardo, irmão mais velho da Roberta, verdadeira peste. Uma vez ele
chutou de propósito o tabuleiro do jogo e todas as peças saíram do lugar. Ele
não fazia essas coisas por ciúme da irmã, que só andava comigo. Ele era chato
incurável mesmo. Eu odiava ele, mas morria de medo daquele branco magrelo
gigante. Leonardo era tão mau elemento que foi convidado a se retirar do
colégio, por causa de constantes brigas. O inocente aqui pensou na época: “Ora,
por que ele não recusa o convite?”.
Uma
coisa me deixava completamente constrangido quando brincávamos na casa da
Roberta. Frequentemente, o pai da Roberta dizia na minha frente: “Roberta,
agora papai e mamãe vão tomar juntos um banho na banheira”. Roberta,
acostumada, achava isso natural, mas eu sabia que eles faziam aquele tal de
sexo. Ora, nenhum banho dura uma hora e meia! Eu era inocente, mas não tapado.
Que pais moderninhos! Meus pais não tomavam juntos banho na banheira (ok, só os
ricos do quarto andar tinham banheira).
PRIMEIRO
BEIJO
Num outro
belo dia (tudo de bom acontece num belo dia) os dois pombinhos estávamos no
balanço, e não havia mais ninguém no play. Foi então que Roberta soltou: “E se
a gente beijasse na boca?”. Só não parei instantaneamente o balanço porque a
Física não permitiu. “Beijar na boca? Não sei fazer isso!”. “Ah, a gente começa
com selinho, depois partimos pro beijo de língua”. “Selinho? De língua?”. “É,
vamos começar com o selinho, naquele canto do play escondido ali”. Então lá
fomos nós para o cantinho em forma de U, antes só usado para se contar no
pique-esconde, e que eu dolosamente omiti na descrição do play. Mas afinal, o
que passou na cabeça do engenheiro que desenhou um cantinho escondido, em forma
de U, num play de criança? Era óbvio que ia dar problema...
Eu
estava muito nervoso e suava frio. Ela rapidamente disse, para meu alívio: “É
assim, oh”, e colou sua boca na minha. Uau, selinho é muito bom! Trocamos
inúmeros selinhos, não apaixonados, mas cheios de afeto. Eu já havia retomado a
calma, e estava feliz por ter dado meu primeiro beijo. Eis que Roberta diz: “Agora
de língua!”. “Opa, calma! De língua? Mas não é nojento?”. Eu pensava na
saliva... “Bom, se você não quiser, tudo bem”. Roberta respeitava meu corpo,
minhas regras.
Enquanto
ficamos só na base do selinho eu não sentia culpa, só alegria. Nós tínhamos um
segredo! Pela primeira vez me senti superior às crianças mais velhas. Mas
Roberta queria mais, e creio que o exemplo de seus pais liberais influenciou
muito nesse aspecto.
DESCOBERTA
O
dia estava belo, e nós estávamos novamente sozinhos no play. Enquanto
rodávamos-rodávamos, ela disparou: “E se a gente ficasse pelado e um visse o
outro?”. Acho que nunca fiquei tão envergonhado na minha vida. “Jura? Por que isso?”.
“Bom, é o que namorados fazem, né?”. Sim, um forte argumento! Era o que os
namorados faziam, por que não fazer?
Então
lá fomos nós de novo para o nosso cantinho em U. A pedidos, fui o primeiro, arriando
o short devagar, hesitante, no meio do Pateta, Mickey e cia. Ela observou com
muita curiosidade, e, nem seria necessário mencionar, com muita inocência. A
criança é má, porém pura, ali um apenas desejava conhecer O Outro. A seguir ela
disse: “Agora é a minha vez”. Uma ansiedade me invadiu naquele momento. Finalmente
iria contemplar o órgão feminino, a famosa periquita, aquele tabu, que as
mulheres escondem de todos com suas roupas. Primeiro ela disse: “Meu peito é
assim”, e levantou a blusa escrito Bazooka, que segundo ela se lia Bazóka, porque "álcool" tem dois “o” e se lê assim (a teoria até que era boa...). O peito dela era
igualzinho ao meu, não teve graça alguma. Após isso, Roberta abaixou seu
shortinho rapidamente. Uma rachadura??? Uma pequena rachadura! Só isso? Nem tem
pelos como o sacão do Felipe! Então essa é a famosa periquita, que de periquita
não tem nada? Foi o que eu pensei na hora decepcionado. E pensar que por causa
dessa pequena rachadura eu iria fazer loucuras no futuro, que
inclusive afetariam grandes amizades minhas...
A
partir daquele dia, o conhecido “mostra-o-seu-que-eu-mostro-o-meu” se tornou
frequente, não só no cantinho em U, como no meu apartamento. Quando enjoávamos
de brincar de jogos de tabuleiro, a Roberta, sempre ela, tomava a atitude e
dizia: “Vamos tomar banhos juntos?”. Eu, como sempre, concordava. Minha avó
Gerusa, que era cega, ficava o dia todo em casa. A gente esperava pacientemente
a minha vó ir à cozinha, então nos trancávamos no banheiro. Eu achava que por
ser cega, minha vó não saberia de nada, mas a ceguinha era capaz de ouvir como ninguém
o barulho do chuveiro, e sentir o cheiro de sabão, xampu e creme. Um dia fomos
pegos no flagra, pulando etapas e tomando banho juntos, como os adultos. Vovó perguntou
preocupada: “Hugo, Roberta, o que vocês estão fazendo aí trancados?”. Eu fiz
sinal para a Roberta ficar quieta e disse, com aquele tom de voz que entrega o
erro: “Vó, estou sozinho no banheiro, dá licença?”. Me sequei, coloquei num
segundo a roupa e saí do banheiro na cara de pau. Roberta ficou escondida
dentro do box abaixada; minha vó fechou a cara e voltou contrariada para a
cozinha.
Por
essas e outras comecei a perceber que estava fazendo algo errado. Começou a
brotar em mim um sentimento profundo de culpa. No domingo, na igreja, o bispo
falava sobre pureza e eu sofria com dor na consciência. Mas a gente só fazia
mais e mais aquilo (tenho certeza que vocês leitores de alguma forma já
atestaram por experiência própria a veracidade da afirmativa “tudo o que é
proibido é mais gostoso”). Na banheira nunca tivemos coragem de tomar banho, a
Roberta não tinha uma vovó cega.
Quando
estávamos mais uma vez no nosso cantinho em U, naquele nosso refúgio onde
éramos livres, Roberta, a criança insaciável, foi longe demais: “E se eu desse
um beijo no seu, e você um beijo na minha?”. “Opa, calma! Um beijo aí? Mas não
é nojento?”. Eu pensava na urina... Bom, se você não quiser, tudo bem”. Essa
menina era um poço de respeito.
FIM
DO SONHO
Às vezes
a gente brigava e ficava de gelinho, e, num dia nublado, por um motivo bobo
desses de criança, eu “cortei” os dois dedos mínimos dela unidos, e ficamos sem nos falar por muito tempo. Para não ficar sozinho, eu ia muito brincar com a filha
do zelador. Ela fedia a fezes humana, e um dia descobri o motivo, quando
brinquei na casa dela e vi pelo buraco da tábua da porta do banheiro enquanto
ela fazia suas necessidades, sem cerimônia alguma: Ela nunca se limpava. Pensei
em falar pra ela, no intuito de educá-la, mas não tive coragem. A coitada, por
falta de instrução, deve andar cagada por aí até hoje. A mulher do zelador, mãe
dela, não tinha nada na cabeça. Um dia ela brincou de amarelinha comigo,
grávida. Eu perguntei, com toda a sapiência de uma criança de nove anos: “Isso
não é perigoso pra saúde do bebê?”. E ela “Claro que não!”. O bebê morreu...
Roberta
ficava de longe, nos vendo brincar e morria de ciúme. Eu sentia muita falta
dela, e provavelmente ela de mim, mas por orgulho um não foi lá estender ao
outro os dois dedos indicadores unidos para serem “cortados”, e assim reatar
nossa relação de amor/amizade.
Foi
então que, num dia frio e escuro ouvi no play um barulho de carro e gente conversando.
Quando olhei pela janela do meu quarto, não podia acreditar no que via: A
família da Roberta estava colocando utensílios da casa no carro, fatalmente
iriam se mudar do prédio! Roberta não havia me dito nada por causa do nosso
maldito gelinho. Como um louco, coloquei a primeira roupa que vi e desci
descalço mesmo, de escada, quase voando. Só deu tempo de ver o carro deixar o
prédio com meu primeiro amor, para um lugar desconhecido e pra sempre. Enquanto
o carro saía, vi Roberta no banco de trás se virando, como se sentisse minha
presença, e olhando pra mim um olhar triste e assustado. Eu fiz o mesmo e ninguém acenou com a mão ao outro. Naquele momento senti
minha primeira dor por amor, a espécie de dor mais intensa que esse vasto mundo de
dores possui (outras muitas me aguardariam no futuro). Após o portão abrir, o
carro deixou o prédio lentamente, e eu fiquei no corredor da garagem sozinho com minhas
lágrimas.
FIM
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