segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A IDADE DA INOCÊNCIA (DESCOBERTA)




PLAY MÁGICO


O prédio da Rua Grão Pará, 288, Engenho Novo, no qual passei meus primeiros dez anos de vida é simples, com pequenos apartamentos de dois quartos e sem varanda. Porém, o playground (e é só isso que importa a uma criança) era mágico! Pela ordem, primeiro havia a Gangorra. As crianças maiores, para meu desespero, adoravam me deixar “de castigo” no alto. Surfar usando a Gangorra de prancha também era comum. Logo após vinha o Balanço, um ao lado do outro. Nós gostávamos de saltar do Balanço quando ele estava bem alto. Acho que eu tinha o corpo fechado, porque fazia altas atrocidades como essa, mas nunca me machucava sério. A seguir tínhamos o Rema-rema, algo como uma versão infantil do temido Barco Viking. Eu, que sempre gostei de emoção, prendia o Rema-rema de um jeito que quando o soltava fazia um barulho ensurdecedor. Ao lado do Rema-rema havia o Escorrega, brinquedo perigosíssimo para crianças loucas como nós. Numa parte do Escorrega era possível se pendurar ficando de cabeça para baixo. Um dia, o Felipe, menino demoníaco muito mais velho que eu, ficou de cabeça para baixo ali. Ele estava usando um daqueles conjuntinhos bregas que ele sempre usava: short e camiseta com cores berrantes, como amarelo fluorescente ou roxo bem brilhante. Só não estava usando uma coisa: Cueca. Afinal, pra que usar cueca? Acaso o short estava rasgado? Estava. Então eis que uma gigante e peluda bolsa escrotal (famoso saco) resolveu pular para fora, para meu grande espanto. Foi então que pensei: “Ele tem mais cabelos ali do que eu na minha cabeça! É assim que eu ficarei quando crescer?”. Me perdoem, eu estava na Idade da Inocência...

Finalizando os brinquedos propriamente ditos, tínhamos o Roda-roda, que já me fez vomitar umas três vezes e deveria ser proibido por lei. Por que chamo esses de brinquedos propriamente ditos? Porque existiam também os Brinquedos Impróprios ou Por Equiparação, forjados pela nossa criatividade. A rampa da garagem, por exemplo, era na verdade uma rampa para descermos de skate ou bicicleta. Acidentes eram constantes, mas sempre continuávamos, pois nunca houve óbito. A própria garagem não servia para guardar carros, mas para brincarmos de pique-esconde. E o muro de tijolos vermelhos que havia na lateral esquerda do play não estava ali para delimitar nada, mas sim para ser escalado. Eu era um dos poucos que tinha coragem de subir até a parte mais alta do muro, e me sentia o rei do mundo por isso.

Agora imaginem esse play, grande, arejado, cheio de brinquedos e coberto de azulejos com desenhos de personagens da Disney? Exato, pura magia. Esse play era o lugar mais próximo da Disney para as crianças do Engenho Novo naquela época. Os anos noventa não foram fáceis.


A CRIANÇA É MÁ, A SOCIEDADE ÀS VEZES A CONSERTA


O play vivia sempre cheio de crianças (hoje, quando vejo um play vazio, minha alma também fica vazia). Além do Felipe, eu brincava com as irmãs Bruna e Camila. A Camila era linda e muito má; a Bruna era boa, porém menos bonita. Vejo esse padrão se repetir com frequência por aí, irmã bonita/”má”; irmã menos bonita/boazinha. Também lembro do Alexandre, menino legal, engraçado e capeta; da Viviane e Cristiane, irmãs, sendo que a Viviane era mais bonita, logo, sabemos quem era a má e a boazinha. O rol é meramente exemplificativo, eram muitas crianças e o texto deve prosseguir. Nesse mundo mágico não poderia faltar a princesa: A Roberta, menina linda, magra, branca, traços finos e dos longos cabelos lisos e negros.

Todos esses e muitos outros, com exceção da Roberta, eram mais velhos que eu, a maioria era até adolescente já. Eu e Roberta éramos da mesma idade, então a aproximação era algo natural, bem como o bullying por parte das crianças, más por natureza (será que Rousseau conheceu alguma criança?).

Uma das maiores maldades que as crianças fizeram (mais precisamente a Camila), foi pegar pelas antenas uma barata cascuda morta e colocá-la à força na boca da pobre Roberta. Eu assisti a essa tortura de perto, calado e com medo de ser a próxima vítima. Roberta subiu chorando, Camila deu uma gargalhada doentia e eu me senti, com razão, o maior covarde da história mundial.

Um bullying frequente e não tão maldoso, mas que me incomodava absurdamente era quando as crianças maiores diziam: “Hugo é namorado da Roberta!”. Bom, ao mesmo tempo que eu não gostava, eu sabia que sentia pela Roberta, não o Agape, e certamente não o Eros, mas sim o Filos, esse amor-amizade grego. E sentia também que era correspondido. Nós sempre negávamos a insinuação, mas ninguém acreditava, porque de alguma forma demonstrávamos o mútuo sentimento.

Num belo dia, Roberta espertamente teve uma ideia genial: “Hugo, já sei como fazer com que todos parem de nos chatear: Vamos namorar!”. Até hoje não sei se isso foi meramente uma estratégia para se defender do bullying ou se ela usou isso de desculpa para me namorar. Só sei que aceitei na hora.


MEU PRIMEIRO “AMOR”


Além de aliviado, fiquei feliz mesmo. Minha primeira namorada! Como seria isso de namorar? Mesmo criança, eu já sabia que isso haveria de ser um marco na minha vida, uma fase de descoberta. Só não imaginei que Descoberta significaria descobrir a Roberta...

Roberta costumava me chamar para brincarmos em sua casa. Nós não contamos aos nossos pais sobre o namoro, por vergonha e medo (só as crianças souberam, e o bullying naquele aspecto realmente cessou). Por isso eu morria de vergonha de estar na presença dos pais dela. Mas eles eram muito amáveis, porque sempre pediam pizza de mussarela para nós (na primeira vez que eu comi pizza de mussarela, perguntei aos pais dela se era uma pizza sem sabor). A família da Roberta morava no quarto andar, o último do prédio. Por causa disso eu achava que era o andar dos ricos.

Essa fase inicial do namoro consistia em montar quebra-cabeças e jogar jogos de tabuleiro, como o Jogo da vida. Eu sempre tirava a profissão advogado, e ficava contente por isso (ah, a Idade da Inocência...). Quem vinha atrapalhar nossa vida era o Leonardo, irmão mais velho da Roberta, verdadeira peste. Uma vez ele chutou de propósito o tabuleiro do jogo e todas as peças saíram do lugar. Ele não fazia essas coisas por ciúme da irmã, que só andava comigo. Ele era chato incurável mesmo. Eu odiava ele, mas morria de medo daquele branco magrelo gigante. Leonardo era tão mau elemento que foi convidado a se retirar do colégio, por causa de constantes brigas. O inocente aqui pensou na época: “Ora, por que ele não recusa o convite?”.

Uma coisa me deixava completamente constrangido quando brincávamos na casa da Roberta. Frequentemente, o pai da Roberta dizia na minha frente: “Roberta, agora papai e mamãe vão tomar juntos um banho na banheira”. Roberta, acostumada, achava isso natural, mas eu sabia que eles faziam aquele tal de sexo. Ora, nenhum banho dura uma hora e meia! Eu era inocente, mas não tapado. Que pais moderninhos! Meus pais não tomavam juntos banho na banheira (ok, só os ricos do quarto andar tinham banheira).


PRIMEIRO BEIJO


Num outro belo dia (tudo de bom acontece num belo dia) os dois pombinhos estávamos no balanço, e não havia mais ninguém no play. Foi então que Roberta soltou: “E se a gente beijasse na boca?”. Só não parei instantaneamente o balanço porque a Física não permitiu. “Beijar na boca? Não sei fazer isso!”. “Ah, a gente começa com selinho, depois partimos pro beijo de língua”. “Selinho? De língua?”. “É, vamos começar com o selinho, naquele canto do play escondido ali”. Então lá fomos nós para o cantinho em forma de U, antes só usado para se contar no pique-esconde, e que eu dolosamente omiti na descrição do play. Mas afinal, o que passou na cabeça do engenheiro que desenhou um cantinho escondido, em forma de U, num play de criança? Era óbvio que ia dar problema...

Eu estava muito nervoso e suava frio. Ela rapidamente disse, para meu alívio: “É assim, oh”, e colou sua boca na minha. Uau, selinho é muito bom! Trocamos inúmeros selinhos, não apaixonados, mas cheios de afeto. Eu já havia retomado a calma, e estava feliz por ter dado meu primeiro beijo. Eis que Roberta diz: “Agora de língua!”. “Opa, calma! De língua? Mas não é nojento?”. Eu pensava na saliva... “Bom, se você não quiser, tudo bem”. Roberta respeitava meu corpo, minhas regras.

Enquanto ficamos só na base do selinho eu não sentia culpa, só alegria. Nós tínhamos um segredo! Pela primeira vez me senti superior às crianças mais velhas. Mas Roberta queria mais, e creio que o exemplo de seus pais liberais influenciou muito nesse aspecto.


DESCOBERTA


O dia estava belo, e nós estávamos novamente sozinhos no play. Enquanto rodávamos-rodávamos, ela disparou: “E se a gente ficasse pelado e um visse o outro?”. Acho que nunca fiquei tão envergonhado na minha vida. “Jura? Por que isso?”. “Bom, é o que namorados fazem, né?”. Sim, um forte argumento! Era o que os namorados faziam, por que não fazer?

Então lá fomos nós de novo para o nosso cantinho em U. A pedidos, fui o primeiro, arriando o short devagar, hesitante, no meio do Pateta, Mickey e cia. Ela observou com muita curiosidade, e, nem seria necessário mencionar, com muita inocência. A criança é má, porém pura, ali um apenas desejava conhecer O Outro. A seguir ela disse: “Agora é a minha vez”. Uma ansiedade me invadiu naquele momento. Finalmente iria contemplar o órgão feminino, a famosa periquita, aquele tabu, que as mulheres escondem de todos com suas roupas. Primeiro ela disse: “Meu peito é assim”, e levantou a blusa escrito Bazooka, que segundo ela se lia Bazóka, porque "álcool" tem dois “o” e se lê assim (a teoria até que era boa...). O peito dela era igualzinho ao meu, não teve graça alguma. Após isso, Roberta abaixou seu shortinho rapidamente. Uma rachadura??? Uma pequena rachadura! Só isso? Nem tem pelos como o sacão do Felipe! Então essa é a famosa periquita, que de periquita não tem nada? Foi o que eu pensei na hora decepcionado. E pensar que por causa dessa pequena rachadura eu iria fazer loucuras no futuro, que inclusive afetariam grandes amizades minhas...

A partir daquele dia, o conhecido “mostra-o-seu-que-eu-mostro-o-meu” se tornou frequente, não só no cantinho em U, como no meu apartamento. Quando enjoávamos de brincar de jogos de tabuleiro, a Roberta, sempre ela, tomava a atitude e dizia: “Vamos tomar banhos juntos?”. Eu, como sempre, concordava. Minha avó Gerusa, que era cega, ficava o dia todo em casa. A gente esperava pacientemente a minha vó ir à cozinha, então nos trancávamos no banheiro. Eu achava que por ser cega, minha vó não saberia de nada, mas a ceguinha era capaz de ouvir como ninguém o barulho do chuveiro, e sentir o cheiro de sabão, xampu e creme. Um dia fomos pegos no flagra, pulando etapas e tomando banho juntos, como os adultos. Vovó perguntou preocupada: “Hugo, Roberta, o que vocês estão fazendo aí trancados?”. Eu fiz sinal para a Roberta ficar quieta e disse, com aquele tom de voz que entrega o erro: “Vó, estou sozinho no banheiro, dá licença?”. Me sequei, coloquei num segundo a roupa e saí do banheiro na cara de pau. Roberta ficou escondida dentro do box abaixada; minha vó fechou a cara e voltou contrariada para a cozinha.

Por essas e outras comecei a perceber que estava fazendo algo errado. Começou a brotar em mim um sentimento profundo de culpa. No domingo, na igreja, o bispo falava sobre pureza e eu sofria com dor na consciência. Mas a gente só fazia mais e mais aquilo (tenho certeza que vocês leitores de alguma forma já atestaram por experiência própria a veracidade da afirmativa “tudo o que é proibido é mais gostoso”). Na banheira nunca tivemos coragem de tomar banho, a Roberta não tinha uma vovó cega.

Quando estávamos mais uma vez no nosso cantinho em U, naquele nosso refúgio onde éramos livres, Roberta, a criança insaciável, foi longe demais: “E se eu desse um beijo no seu, e você um beijo na minha?”. “Opa, calma! Um beijo aí? Mas não é nojento?”. Eu pensava na urina... Bom, se você não quiser, tudo bem”. Essa menina era um poço de respeito.


FIM DO SONHO


Às vezes a gente brigava e ficava de gelinho, e, num dia nublado, por um motivo bobo desses de criança, eu “cortei” os dois dedos mínimos dela unidos, e ficamos sem nos falar por muito tempo. Para não ficar sozinho, eu ia muito brincar com a filha do zelador. Ela fedia a fezes humana, e um dia descobri o motivo, quando brinquei na casa dela e vi pelo buraco da tábua da porta do banheiro enquanto ela fazia suas necessidades, sem cerimônia alguma: Ela nunca se limpava. Pensei em falar pra ela, no intuito de educá-la, mas não tive coragem. A coitada, por falta de instrução, deve andar cagada por aí até hoje. A mulher do zelador, mãe dela, não tinha nada na cabeça. Um dia ela brincou de amarelinha comigo, grávida. Eu perguntei, com toda a sapiência de uma criança de nove anos: “Isso não é perigoso pra saúde do bebê?”. E ela “Claro que não!”. O bebê morreu...

Roberta ficava de longe, nos vendo brincar e morria de ciúme. Eu sentia muita falta dela, e provavelmente ela de mim, mas por orgulho um não foi lá estender ao outro os dois dedos indicadores unidos para serem “cortados”, e assim reatar nossa relação de amor/amizade.

Foi então que, num dia frio e escuro ouvi no play um barulho de carro e gente conversando. Quando olhei pela janela do meu quarto, não podia acreditar no que via: A família da Roberta estava colocando utensílios da casa no carro, fatalmente iriam se mudar do prédio! Roberta não havia me dito nada por causa do nosso maldito gelinho. Como um louco, coloquei a primeira roupa que vi e desci descalço mesmo, de escada, quase voando. Só deu tempo de ver o carro deixar o prédio com meu primeiro amor, para um lugar desconhecido e pra sempre. Enquanto o carro saía, vi Roberta no banco de trás se virando, como se sentisse minha presença, e olhando pra mim um olhar triste e assustado. Eu fiz o mesmo e ninguém acenou com a mão ao outro. Naquele momento senti minha primeira dor por amor, a espécie de dor mais intensa que esse vasto mundo de dores possui (outras muitas me aguardariam no futuro). Após o portão abrir, o carro deixou o prédio lentamente, e eu fiquei no corredor da garagem sozinho com minhas lágrimas.


                                                               FIM








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