A PEÇA DO ESTAGIÁRIO
PERSONAGENS
Carlos, o pobre estagiário.
Mãe de Carlos
Tibúrcia, namorada de Carlos.
Vovó caridosa
Velha chata do metrô
Faxineira do escritório
Bob Marley, mendigo da rua de Carlos
Dagoberto, amigo de infância de Carlos
Dr. Von Mitus, o dono do escritório
Jéferson, estagiário amigo de Carloss
P. Dante, funcionário do protocolo
Moleque da xerox
Figurante principal do metrô no final
Adolfo, o chefe de Carlos
Asco, o mais novo estagiário do escritório
Entregador de papel de rua
Delzilene, serventuária
Contra-regra da peça
Figurantes do metrô (todos)
ATO I
CENA I
Ao som de “Peer Gynt – Amanhecer, de Grieg”, CARLOS acorda para mais um dia. Seu quarto está completamente bagunçado. Ele ainda luta contra o sono quando/
ENTRA sua MÃE. Ela pensa que Carlos está dormindo e parte para acordá-lo.
Mãe, gritando - Vamos, acorda logo! (A música é cortada de repente). Já são seis horas.
Carlos, tentando esconder irritação – Eu sei, obrigado.
Carlos se senta na cama, morto de sono.
Carlos (pensamento) – Megera! Bruxa! Com uma mãe dessas não dá. Pior que despertador. Pelo amor de Deus.
Mãe parte para a arrumação do quarto de maneira expansiva, ruidosa, violenta. Sádica, começa pela cama. Expulso, Carlos se levanta. Olha-se no espelho e começa a se arrumar. Uma a uma, veste as peças do terno.
Carlos (pensamento) – Mais um dia de luta nesse escritório. Se eu estivesse aprendendo alguma coisa, tudo bem. Mas só faço trabalho braçal. Que tempo perdido!
Na hora de dar o nó na gravata, Carlos estaca. Mira-se no espelho. Seu semblante muda.
Carlos (pensamento) – Ah, só posso estar brincando. Claro que não é tempo perdido. Nessa vida, a gente sempre acaba aprendendo algo com qualquer experiência, seja ela ótima, boa, regular, ruim ou um estágio. Não tenho dúvidas de que para alguma coisa esse maldito estágio vai me servir.
Mãe – Enquanto você se arruma, vamos conversar: olha, não vou mais pagar esses cursinhos inúteis que você faz. Curso de teatro, aula de russo... Se você quer rasgar dinheiro, rasga o seu. Você agora ganha salário.
Carlos – Bolsa-auxílio.
Mãe – É a mesma coisa.
Carlos – Se fosse a mesma coisa não tinham inventado outro nome. Bolsa- auxílio é o nome bonito que dão para os salários miseráveis.
Mãe – Bom, que fosse soldo, remuneração, esmola, din-din, faz me rir. O recado tá dado. A fonte secou.
Carlos, esquivo, com pressa – Depois a gente vê isso, preciso sair agora. Vou chegar mais cedo no escritório. Tenho que resolver uns pepinos.
Mãe – Mais cedo de novo? Além de te fazer matar todas as aulas, esse escritório tá te ensinando alguma coisa?
Carlos – Com certeza. Ninguém entrega papel tão bem quanto eu.
Mãe – Metido! Cuidado que você ainda pode se dar mal nessas entregas. Nada é tão ruim que não possa ficar pior.
Carlos – Ih, sai dessa. Sem macumba pro meu lado. Nem parece que é minha mãe... Tchau, beijo.
CENA II
No caminho do metrô, Carlos cruza com um entregador de papel e com Bob Marley, o mendigo da rua. O entregador trabalha em alta velocidade, eficiente, cheio de trejeitos e cacoetes profissionais.
Carlos (pensamento) – Ai, que engraçado, olha esse entregador de papel! Eu faço exatamente a mesma coisa que ele e também ganho pouco. Ta certo que ele entrega até melhor que eu. Mas eu entrego de terno!
Carlos se perde em devaneios. Mira o entregador de papel como se não o visse, com o olhar fixo.
Carlos (pensamento) – Como o terno dá poder a quem o veste! É uma das coisas que compensam esse estágio. Ah, quando me chamam de doutor... Que melodia para meus ouvidos!
Após algum tempo, o entregador se incomoda. Pára de entregar papéis, desconfiado e balbucia resmungos entre os quais só identificamos algo como “viado”, “ta me achando bonito?”, “vai procurar tua turma”, “engomadinho escroto”, “bichinha”.
ENTRA BOB MARLEY, o mendigo da rua.
Imediatamente, Carlos volta a realidade. Olha para Bob.
Carlos (pensamento) – Nossa, que cheiro horrível para minhas narinas! Tinha que ser o Bob. Esse doidão não desiste. Todo santo dia me pede a esmola que eu nunca dou. Ele nem sabe quem eu sou, vê se pode... pra ele eu sou alguém sem individualidade, um doador de esmolas em potencial como qualquer transeunte. Mas eu sei exatamente quem ele é: Ele é o Bob Marley, o mendigo da minha rua. De alguma forma, ele tem mais a minha atenção do que eu a dele. E ele nem sabe o que quer dizer transeunte...
Bob Marley – “Dotô”, “intéra” um real?
Carlos – Hoje tá brabo!
Bob Marley olha pro lado e segue seu caminho.
Carlos (pensamento) – Mal sabe ele que, no meu caso, tá brabo mesmo. Agora, eu também desconfio dele com esse “intéra”. Todo mendigo tá sempre juntando grana pra comprar algo misterioso. Como se só faltassem esses centavos pro cara realizar o sonho da casa própria.
Carlos se afasta, as mãos protegendo disfarçadamente as narinas. De repente, estaca. A meia distância, volta a observar Bob.
Carlos (pensamento) – Se bem que um amigo meu fez as contas e disse que o Bob ganha de esmola mais do que eu recebo no escritório. Olha lá, aquela coroa deu cinco pratas pra ele! É fato. Ganha mais que eu. Maconheiro vagabundo.
Carlos retoma seu caminho.
Carlos (pensamento) – Pensando bem é justo ele ganhar mais do que eu. O ganho de uma pessoa deve ser proporcional ao que ela faz pra sociedade. O que eu faço? Serviços simples pra meia dúzia de clientes do meu chefe. O que o Bob faz? Ele é o meio usado pelas velhinhas caridosas para irem pro céu. Muito mais importante.
Carlos ouve o diálogo entre a senhora e o mendigo:
Coroa – Olha, nada de comprar drogas com esse dinheiro, hein!
Bob Marley – Sim, claro, “pó” deixar, tia.
Carlos (pensamento) – Fala sério! Além de não entender nada de reggae, a coroa não ta vendo que o cara é um ferrado? Não tem casa, não tem família, não tem nem uma viola, um tambor pra batucar... e ainda por cima não pode usar drogas? Se ela quisesse mesmo o bem do Bob, ela diria: “Toma aqui, meu filho, 5 reais pra você comer e mais 5 reais pra você queimar um fuminho, porque eu sei que aguentar essa miséria careta não deve ser fácil”. Ei, coroa, nem só de pão vive o homem!
CENA III
Num vagão do metrô, uma VOVÓ se aproxima de Carlos visando seu assento.
Carlos (pensamento) – Ah não, vovó, nem vem. Vou fingir que estou dormindo! E faço isso com a consciência tranquila, porque com certeza eu estou mais cansado que você. Sou contra essa rigidez das regras dos transportes públicos. Cada caso é um caso. Por que eu especificamente deveria ceder meu lugar pra você? Ralei ontem e você, aposentada, fez tricô, que eu sei. Sem contar que acordei cedo hoje, seis da madruga. É, você também, que eu sei. Ah, mas você é idosa, está acostumada a acordar cedo. É da condição do idoso.
Vovó – Meu filho, não vê que sou uma senhora de idade?
Carlos – Não vi, estava dormindo!
Vovó – Já que acordou, seja educado e dê o lugar à velha aqui.
Carlos – Que isso, a senhora ta ótima. Ainda dá um caldo.
A Vovó se constrange. Logo em seguida, volta a si e aplica uma bolsada em Carlos.
Vovó – Insolente!
Carlos se levanta e cede o lugar, contrariado.
Carlos (pensamento) – Droga, não tem saída quando a vovó é cara de pau. Olha lá, tem um moleque sentado num lugar laranja! Está lendo um livro pra disfarçar... Outra excelente tática. Tem meu respeito. Quer dizer, mais ou menos. Um livro de auto-ajuda?! Aos 13 anos e meio? Que Coitado precoce! Esse vai ser um futuro estagiário. Eu tenho faro. Hoje dando o migué na véia por um assento, amanhã entregando papel e tirando cópia por qualquer esmola. Fodido.
ATO II
CENA I
No escritório. Carlos chega e logo em seguida vem ADOLFO, seu chefe, ao som do leitmotiv do Darth Vader. Diálogo com o chefe.
Carlos (pensamento), olhando pro chefe – Ai, lá vem esse ser desprezível. O cara não vale uma xerox que ele me manda tirar... Todo ser humano atua com louvor no papel de chefe: Todos conseguem atingir a chatice inerente a esse papel, ainda que sejam péssimos atores. O mesmo vale para o papel de sogra.
Carlos – Bom dia, chefe.
Adolfo – Quero falar com você.
Carlos (pensamento) – Deixa eu adivinhar, quer que eu tire cópias e entregue papel?
Adolfo – Preciso que você tire umas cópias pra mim... E entregue alguns documentos também.
Carlos – Sim, claro. Vou agora mesmo. É... chefe, sem querer pressionar, mas... não teria alguma peça pra eu fazer não? Um recurso talvez?
Adolfo – Peça? Tá achando que isso é teatro? Não, não tem peça nenhuma pra você fazer. Já disse que quando tiver eu te aviso.
Carlos (pensamento) – Ah, ta, espero sentado?
Carlos – Tudo bem, vou ao fórum então.
Adolfo, quando Carlos está quase saindo da sala – Cara chato...
CENA II
Carlos vai até a sala dos estagiários se preparar para ir ao fórum. Diálogo com seu amigo, o estagiário JÉFERSON.
Carlos (pensamento) – Pelo menos esse aí me trata bem.
Carlos – Fala, Jéferson!
Jéferson – Grande Carlinhos! Beleza?
Carlos – Não, vou pro fórum agora. Pelo menos vou poder dar um rolé. Acho que vou aproveitar pra encontrar a Tibúrcia.
Jéferson – Boa, cara. Vem cá, tenho uma idéia aqui pra essa petição que eu tô fazendo, vê se você gosta: ...
Carlos (pensamento) – Ai, toda hora ele tá fazendo petição, que raiva. Não me passam nem petição de juntada...
Jéferson – Tem um trecho aqui: “Vossa excelência não agiu com o habitual acerto”. Sei lá, tá muito formal isso, sabe? Tava pensando em mudar para “Mermão, tu costumava mandar bem, mas nessa decisão tu viajou!”.
Carlos (pensamento) – Ai, poupe-me dessas piadinhas sem graça...
Carlos – Hahaha, muito boa.
Jéferson – Aquele estagiário novo, o Asco é muito cara de pau, né? Não faz nada, fica o dia inteiro no orkut.
Carlos – É mesmo. Um completo inútil. Ih, acho que é ele vindo ali... Fala, Asco, beleza?
Asco – Opa, tudo bem.
Carlos – Então, galera, vou me adiantando pro fórum, valeu!
CENA III
Antes de fazer as tarefas, Carlos encontra sua namorada TIBÚRCIA numa lanchonete perto do fórum.
Carlos (pensamento) – Lá vem ela, finalmente. Por que mulher sempre se atrasa? Será que elas fazem isso de sacanagem?
Carlos – Oi, amor! Desculpa pela ligação a cobrar! É que eu estou sem créditos!
Tibúrcia – Ai, ai... Tudo bem. Então, vamos comer? Estou morrendo de fome.
Carlos – Vamos! Não posso demorar muito, porque tenho que tirar cópia de uns processos e entregar uns documentos.
Tibúrcia – Caramba, tá intelectual, hein. Vai com calma!
Carlos – Ridícula.
Tibúrcia – Eu também não posso demorar, tenho que fazer um recurso de apelação importante!
Carlos (pensamento) – Que raiva! Será que eu sou o único estagiário que não faz nenhuma peça?
Carlos – Ah, legal.
Tibúrcia, logo após servirem os lanches – Ih, tão me ligando do escritório! Alô. Sim. Tá bom, tô indo agora. Ih, Carlinhos, tenho que ir, as coisas estão pegando fogo no meu escritório. Vou comer o lanche andando mesmo. Você paga?
Carlos – Poxa, amor, ia falar pra você pagar. Sabe como é, você ganha ticket refeição e eu não.
Tibúrcia – Caraca! Eu ganho mal, mas você é reduzido à condição análoga à de escravo!
Carlos – Claro que não. Sou abaixo de escravo. Eles pelo menos ganhavam comida.
Tibúrcia – Tá, eu pago. Ai, onde eu fui amarrar meu burro.
Carlos (pensamento) – Caramba, esse escritório tá deixando a Tibúrcia muito gorda! Ainda não tinha detectado essas pelancas laterais.
Tibúrcia – Ouviu? Eu pago! Fala alguma coisa! No que você tá pensando?
Carlos – Em nada, amor.
Tibúrcia – Ah, se eu pudesse ler seus pensamentos...
Carlos – Garanto que não encontraria nada de mais!
CENA IV
Fila do cartório. Diálogo com DELZILENE, a serventuária.
Carlos (pensamento) – Fila, como sempre... Não vou ser atendido nunca! Se pelo menos eu tivesse um livro pra me distrair, como esse advogado bombado... Deixa eu ver o que ele tá lendo: O pequeno príncipe? Fala sério, bombado! Como esse cara arruma tempo pra malhar tanto assim? Ele tá o dia todo no fórum e...
Delzilene – Pois não, doutor.
Carlos (pensamento) – Ah, que lindo! Vou fingir que não ouvi, só pra ela me chamar de doutor de novo!
Delzilene – Doutor, o senhor é o próximo!
Carlos (pensamento) – Agora vou fazer uma pose de jurista, senão, posso não convencer.
Carlos – Oh, sim, é a minha vez, como vai?
Delzilene – O que o senhor deseja?
Carlos, entregando a ela uma boleta – Gostaria de tirar cópias desse processo.
Delzilene – Esse processo está indisponível.
Carlos (pensamento) – Meu Deus! Um milagre!
Carlos - Puxa vida, que pena, volto amanhã então.
Delzilene – Calma, vou dar uma olhada no sistema pra confirmar.
Carlos (pensamento) – Droga... porque ela resolve trabalhar logo na minha vez?
Carlos – Muito obrigado!
Delzilene – É, doutor, me enganei, o processo tá disponível sim. É aquele volumoso ali. É muito pesado, tem vinte volumes. Você pode pegar ele pra mim?
Carlos (pensamento) – Sem problemas, afinal eu sou pago pra isso e não você, né?
Carlos – Claro, pego sim.
Carlos (pensamento) – Olha o tamanho desse monstro! Vinte volumes! Que se dane toda a história que existe por trás desse processo! Dívidas, mortes, lágrimas, tô cagando horrores pra tudo isso! Pra mim ele não passa de uma enorme pilha de papel.
CENA V
Na fila da xerox com o processo volumoso. Um funcionário (moleque da xerox) atende as pessoas da fila.
Carlos (pensamento) – Tenho que carregar o peso de vinte volumes e só quero cópia de vinte páginas... Acho que isso dá mais raiva do que se eu tivesse que tirar cópia integral desse processo. É, talvez não.
Carlos – Boa tarde. Quero cópias da página 2032 em diante.
Carlos (pensamento) – Vê se não erra dessa vez... Ontem esse mesmo moleque errou tudo o que eu pedi. Só não fiquei chateado porque é o cliente que paga!
Carlos – Ah, obrigado! O recibo, por favor!
Carlos (pensamento) após receber o recibo – Hum, deu dois reais. Se eu colocar um zero aqui fica vinte reais e ninguém vai reparar! Ah, eu ganho muito mal e tenho quase certeza que esse cliente é aquela empresa 171 que enganou geral. A literatura já me ensinou que quem rouba ladrão é herói. Fora que todo estagiário faz isso mesmo! Já é um costume, ou seja, uma norma jurídica. Quem sou eu pra contrariar! O que eu tô fazendo é que nem cola no colégio: É errado, mas todo mundo faz. Se estudante que não cola não sai da escola, estagiário que não falsifica recibo não é promovido.
CENA VI
Carlos devolve o processo no cartório. Após, seu celular toca (modelo antiquíssimo, aparelho enorme). Diálogo com o chefe.
Carlos – Hum, celular tocando. Vamos ver quem incomoda... Alô.
Adolfo – Carlos, preciso que você protocole uma petição pra mim hoje.
Carlos (pensamento) – Ei, sai fora, hoje não é o meu dia de fazer isso!
Carlos – Sim, claro, mas hoje não seria o dia do Asco fazer isso?
Adolfo – Seria, mas ele foi embora mais cedo hoje. Tava passando mal.
Carlos (pensamento) – Ah, aquele folgado... que morra!
Carlos – E o Jéferson, não pode fazer isso? É que estou muito enrolado com cópias pra tirar e documentos pra entregar. Não sei se vai dar tempo.
Adolfo – O Jéferson também não pode, daqui a pouco eu e o Doutor Von Mitus vamos fazer uma reunião com ele. Ele vai ser promovido a advogado Junior.
Carlos (pensamento) – Que injustiça! Eu sou muito melhor do que ele!
Carlos – Tudo bem então, estou indo pro escritório pegar a petição.
Adolfo – Tá, vem logo. Cara, eu sei que você tá enrolado e tal... mas, se vira, dá teu jeito.
Carlos – OK. Tchau.
Carlos (pensamento) – Socorro! Que pressão! Será que o Bob Marley aguentaria usar meu terno só por um dia? Duvido...
CENA VII
No caminho do escritório, Carlos encontra Dagoberto, seu amigo de infância.
Carlos (pensamento) – Ah, porque todo chefe é babaca? Será que isso é verdade ou eu que invejo a posição dele? Provavelmente os dois. Olha quem vem ali, se não é o Dagoberto! Nossa, não vejo ele há séculos!
Carlos – Fala, Dagoberto!
Dagoberto – Carlos, meu amigo! Quanto tempo!
Carlos – Está sumido, hein! Faz uns três anos que a gente não se vê!
Dagoberto – Pois é!
Carlos – Você já se formou, né? Está se preparando pra algum concurso público?
Dagoberto – Pô, você não ficou sabendo? Passei pra juiz federal no começo desse ano!
Carlos (pensamento) – Que vergonha! Vou dar uma desculpa e vazar antes da pergunta fatal!
Carlos – Parabéns, cara, fico feliz por você! Agora tenho que ir, a gente se esbarra por aí!
Dagoberto – Peraí, mas você nem me falou o que tá fazendo da vida! Tá aí, de terninho, todo engomado!
Carlos – Eu estou estagiando num escritório. Preciso mesmo ir, tenho que fazer um recurso importante. Sabe como é, sou estagiário, mas só faço trabalho intelectual.
Dagoberto – Tudo bem! Depois a gente se fala!
Carlos (pensamento) – “Sempre que um amigo meu faz sucesso, uma parte de mim morre”. Quem foi mesmo o gênio que disse isso?
ATO III
CENA I
De volta ao escritório, Carlos encontra Adolfo conversando com Jéferson.
Adolfo – Parabéns por essa conquista, Jéferson! Agora você vai assumir sozinho o acervo de processos da empresa Láite S/A. Também não vejo problema em te passar o meu acervo de processos, afinal você tem que pegar experiência, né? (Adolfo cutuca Jéferson com o cotovelo, enquanto fala essa última frase).
Jéferson – Como você achar melhor, Adolfo.
Adolfo sai da sala.
Jéferson – Carlos, não sei se você sabe, mas eu sou agora advogado Junior. Preciso que você amanhã tire umas cópias pra mim. E outra coisa: evita ficar encontrando sua namorada durante o expediente, tá? Pega mal.
Carlos (pensamento) – Quem te viu, quem te vê, hein! Antes era “Carlinhos isso”, “Carlinhos aquilo”... O velho Jéferson foi bom enquanto durou.
Carlos – Tá bom. Preciso falar agora com o Adolfo.
No corredor que leva à sala do chefe, Carlos olha uma das faxineiras do escritório.
Carlos (pensamento), sorrindo enquanto olha para a faxineira nada simpática – Ah, nada como ver alguém numa situação pior que a sua! Melhor consolo não há!
Carlos bate na porta
Adolfo – Entra.
Carlos – Oi, chefe, vim pegar a petição.
Adolfo – Tá ali em cima. É pra fazer tudo, hein. Corre, senão não vai dar tempo.
Carlos – Tudo bem.
Carlos (pensamento) – Ferrou, cara, não vai dar tempo mesmo...
CENA II
Carlos literalmente correndo pelos corredores do fórum. Após, diálogo com P. DANTE, funcionário do protocolo.
Carlos (pensamento) – Que situação! Tirei as cópias que faltavam, mas ainda tenho que entregar esses documentos para uns “dizimbas” e protocolar a petição. E o tempo tá voando!
Carlos sai de cena e volta.
Carlos (pensamento) – Ferrou, o Protocolo fecha às dezoito horas em ponto! Falta 1 minuto pra fechar! Meu Deus!
Carlos chega até o protocolo, quando dá de cara com um funcionário fechando a porta na hora.
Carlos – Pelo amor de Deus, amigo, vim correndo e cheguei às dezoito horas em ponto!
P. Dante – Se você assume que chegou às dezoito em ponto, não teremos problema, porque o portão fecha às dezoito em ponto, logo, nesse horário você não poderia entrar... e não entrou. E nem vai entrar.
Carlos – Não faz isso comigo, senhor... (olha o nome do funcionário no crachá) ... P. Dante! Eu vim correndo, fiz um monte de coisa antes! Seja razoável!
P. Dante – Se eu fosse razoável, seria um desperdício trabalhar no protocolo, você não acha? Deixo a razoabilidade pros juízes. Eu não preciso dela. Eu só cumpro ordens... fechei a porta no horário certo. Chegasse mais cedo...
Carlos, ajoelhado – Senhor Dante, minha vida vai ficar um inferno! Tenha sentimento cristão, por favor! Peço piedade!
P. Dante – Meu amigo, não vou ganhar nada quebrando o seu galho. Pelo contrário, se eu deixar você entrar, é possível que eu perca o meu emprego.
Carlos – Se eu não conseguir protocolar essa petição, com certeza perderei meu subemprego!
P. Dante – Depois você arruma outro. Não posso fazer nada por você.
Carlos (pensamento) – Mas que filha da puta... É nessas horas que vale a pena saber russo, dá pra xingar à vontade que ele não vai entender nada.
Carlos (sussurrando) – Synsuki [syn soguiá] (filho da puta em russo)
P. Dante – Disse algo?
Carlos – Não, só tava pensando alto.
P. Dante – Não, peraí, eu ouvi sim. Você falou russo?
Carlos – Da! (sim em russo) Você fala russo também?
P. Dante – Claro! Petrovsky Dante, mamãe me ensinou desde pequeno. Haha!
Dá um forte abraço emocionado em Carlos.
Carlos (pensamento) – Nossa, que mundo pequeno! Acho que finalmente essas aulas de russo vão servir pra alguma coisa! Na certa ele agora vai me deixar entrar.
Carlos – Por favor, pozhaluĭsta [pajaulsta] Petrovsky, deixe seu tovarishch [tavarish] (camarada em russo) entrar...
P. Dante – Entrar? Como assim, entrar? Já disse que não pode entrar. Fica insistindo em entrar... já fechou! Ublyudok [ubliudoq] (bastard em russo)!
P. Dante entra e fecha a porta do protocolo.
Carlos – Nãaao! Skaravurska do inferno!!!
CENA III
Carlos volta pro escritório cabisbaixo. Diálogo com Adolfo.
Adolfo – Então, conseguiu fazer tudo?
Carlos – É... bem... não...
Adolfo, gritando com desespero – NÃO??? COMO ASSIM???
Carlos – É que... aconteceu uma coisa...
Adolfo – Fala logo, porra!!!
Carlos – Não consegui protocolar a petição. Cheguei na hora que o protocolo fechou.
Adolfo – Tá de sacanagem... Tu tá fudido! O último dia do prazo era hoje! Pra sua sorte, o Doutor Von Mitus, que nunca está no escritório, está bem ali, na sala dele. Lembra que ele veio pra reunião do Jéferson? Tu é um cara morto, Carlos, vou falar com ele agora o que aconteceu. Que jeito bom de ser apresentado ao dono do escritório, hein...
Adolfo sai.
Carlos (pensamento) – Tô morto mesmo! Socoooooorro!!! Cara, preciso pensar no que fazer... Fujo? Coloco a culpa no Adolfo? Não, aí é cavar minha sepultura de vez...
Carlos ouve um grito de Von Mitus e se assusta (grito harmoniza com um acorde diminuto pra dar um clima de terror). Adolfo volta.
Adolfo – O Doutor Von Mitus quer uma explicação agora. Vamos pra sala dele. E pense bem no que você vai falar.
ATO IV
CENA I
Reunião com o DOUTOR VON MITUS, o dono do escritório. Na sala, além dele, se encontram Carlos e Adolfo.
Adolfo – Doutor Von Mitus, esse é o Carlos, estagiário.
Carlos – Muito prazer, Doutor!
Carlos estende a mão e fica no “vácuo”.
Von Mitus, rispidamente – Um desprazer!!!
Carlos e Adolfo abaixam a cabeça juntos e um breve silêncio se dá ali.
Von Mitus – Eu quero ouvir da sua boca o que aconteceu...
Carlos – Bem, eu estava muito atarefado, mesmo assim achei que podia dar conta de tudo. Acabou que não deu tempo de protocolar a petição que eu levei. Assumo inteiramente a culpa, Doutor. E infelizmente, só posso pedir desculpas pelo ocorrido.
Adolfo, sem chamar atenção, suspira aliviado.
Von Mitus – Mas você é muito burro. Logo a petição? Por que não protocolou a petição antes e deixou de tirar alguma cópia?
Carlos – Pensei que as cópias fossem importantes...
Von Mitus – Não, não eram. A petição sim era importante. Você sabe o que era exatamente?
Carlos – Não sei exatamente, Doutor, não deu tempo de ver.
Von Mitus – Era um recurso de apelação. Numa ação de dois milhões de reais. DOIS MILHÕES! Esse é o defeito de vocês estagiários: Parece que pra vocês aquilo é só um papel... não há comprometimento algum!
Carlos (pensamento) – Caramba, que detetive! Acertou em cheio!
Carlos – Não, Doutor! Sei que eu errei, mas isso que o senhor falou não se aplica a mim, porque eu sempre leio os processos pra saber o que está acontecendo neles e aprender mais.
Von Mitus – O que mais precisa acontecer pra você ver que prazo é importante??? É preciso que sua mãe morra pra você ver que ela é importante?
Carlos (pensamento) – Ai, deixa a minha velha fora disso.
Carlos – Não, Doutor.
Von Mitus – Então por que você perdeu o prazo??? Não dava pra saber que prazo é importante sem perder ele?
Carlos – Doutor, sempre dei muito valor aos prazos.
Von Mitus – Ah é? Pois então me diga, qual é o prazo do recurso de apelação?
Carlos, respondendo como um soldado – Quinze dias, Doutor!
Von Mitus – Errado! Vou contar uma história pra você: Perguntaram a um advogado “Qual o prazo do recurso de apelação?”. Ele respondeu: “Um dia”. Depois perguntaram “Qual o prazo do agravo de instrumento?” Ele respondeu: “Um dia”. O homem que fez as perguntas disse então: “Caramba, você não sabe nada de recursos”. O outro respondeu: “Pode ser, mas eu nunca perco um prazo”.
Todos os prazos duram um dia! Se quiser continuar trabalhando aqui, coloca isso na sua cabeça. Já conhecia essa história?
Carlos (pensamento) – Como não conhecer a única história existente no mundo jurídico?
Carlos – Não, Doutor. Obrigado pelo ensinamento, não vou esquecer.
Von Mitus – Acho bom mesmo. Aqui vai outro ensinamento: Se, por exemplo, eu quebrar essa cadeira na sua cabeça...
Carlos (pensamento) – Meu Deus, é agora que ele vai surtar!
Von Mitus - ... eu estarei cometendo um ilícito e vou ter que pagar por ter praticado esse ato. Mas se você perdesse o prazo, toda vez que eu cruzasse com você eu daria uma gargalhada e pensaria: “Olha lá o ‘estagiotário’ vindo! Quebrei a cabeça dele e não paguei nada por isso, porque ele perdeu o prazo!”. Você não suportaria cruzar comigo...
Carlos (pensamento) – Depois desse esporro eu realmente não vou aguentar cruzar com você!
Von Mitus - Você ficaria famoso no escritório. As pessoas falariam: “Você viu aquele estagiário? Gente boa ele, né? Pena que, com um mês de escritório, deu um prejuízo de dois milhões!”.
Carlos – Sim, Doutor, compreendo a gravidade do meu ato. Peço desculpas.
Von Mitus – Desculpas não prolongam prazo! Sabe, cara, eu tenho quarenta e nove anos e trabalho em escritório há trinta anos. Trinta! Eu tô cansado, cara...
Carlos (pensamento) – Que coincidência! Eu trabalho há trinta dias e também já tô de saco cheio!
Von Mitus – Vou te dar mais uma chance, mas é a última! Isso porque ainda podemos ganhar esse processo... Posso confiar em você?
Carlos – Sim, Doutor! Não errarei mais!
Von Mitus – Então suma da minha sala. (Adolfo faz positivo com a cabeça). Você também, Adolfo.
CENA II
Carlos e Adolfo saem da sala do Doutor Von Mitus.
Carlos (pensamento) – Que humilhação! Como vou conseguir olhar pro Von Mitus depois dessa? Como vou conseguir viver depois dessa? Não posso nem dizer “Calma, vai melhorar”, porque a tendência é a pressão aumentar quando eu virar advogado. Que vida! Por que eu não escolhi educação física? Em vez de escritório e clima fúnebre, academia e clima de festa! Mas não... fui na onda dos meus pais e me ferrei!
Adolfo – Quero as cópias que eu te pedi.
Carlos – Sim, estão aqui. Desse aqui eu consegui.
Adolfo – Boa, cara, brigadão!
Carlos – Esse aqui estava indisponível, não deu pra tirar.
Adolfo – Pô, tá mandando mal, hein.
Carlos – Esse outro eu tirei.
Adolfo – Valeu.
Carlos – Mas esse daqui estava sumido, não deu pra tirar cópias.
Adolfo – Fala sério, né, Carlos. É, minha vó já dizia: “Quem quer, vai; quem não quer, manda”. Mas, enfim, pensei que o Von Mitus fosse te demitir. Eu te demitiria, se estivesse no lugar dele. Vou embora agora. Você pode ir também, mas amanhã chega cedo, porque você tem várias coisas pra fazer no fórum... de Duque de Caxias.
Carlos olha o chefe com um olhar de derrotado.
Carlos – Tudo bem, vou chegar cedo. Até amanhã.
Carlos vê duas faxineiras cochichando.
Carlos (pensamento) – Ai, essas faxineiras são muito fofoqueiras. Aposto que tão conversando sobre o esporro que eu tomei. A vizinhança toda deve ter ouvido os gritos. Ah, também, coitadas, elas passaram dos quarenta e ganham a mesma coisa que eu. Só resta fofocar mesmo...
Adolfo – Carlos, já ia esquecendo: hoje é o dia de você receber sua bolsa-auxílio.
Adolfo puxa um monte de nota de 10 reais.
Adolfo – Confere aí se tem 380 reais. Fala sério, você nunca recebeu tanta nota, né? Assina aqui.
Carlos – Chefe, eh, saiu uma nova lei de estagiários que me beneficia. Agora os estagiários têm o direito de receber as passagens. Eu vou receber a mais pelo transporte, certo?
Adolfo – Você acha que merece receber as passagens depois da merda que você fez? Bom, se você acha que merece, por que não pede pro Doutor Von Mitus agora?
Carlos – Eh... pensando bem, deixa pra lá, até amanhã.
CENA III
No metrô, Carlos está morto de cansaço. Não há diálogos, apenas a marcha fúnebre da sonata nº 12 de Beethoven tocando. O metrô está lotado, mas por sorte um lugar vaga e ele senta.
Carlos – Minha vida é uma verdadeira prisão. Estou cercado de pessoas que dominam a arte de tolher minha liberdade. Como mudar essa situação, meu Deus? Aquele escritório é um inferno, eu só fico entregando papel e tirando xerox... e eu queria tanto fazer uma peça jurídica...
Já sei! Posso fazer uma peça... mas de teatro! Ah, seria perfeito! Pela primeira vez EU estaria no comando. Não precisaria receber ordens do Adolfo nem vômitos verbais do doutor Von Mitus! Minha mãe pararia de debochar de mim! E mais, se eu ficar famoso, acho até que consigo arrumar uma namorada sem as pelancas da Tibúrcia! É isso, vou fazer uma peça! E o melhor de tudo: sem precisar da autorização do meu chefe! Ah, me aguardem! (e adormece falando)
A luz se apaga, e alguns segundos depois acende com a velhinha reclamona cutucando Carlos. Ele acorda cheio de raiva, quase levanta para dar o lugar pra ela, mas muda de ideia.
Carlos – Não, peraí. Cansei dessa peça desse jeito. CORTA! Você, ô figurante, você dá o lugar pra essa velha chata, não eu. Vai, senta lá, vovó, não enche minha paciência.
A velha e o figurante obedecem, meio assustados. Entra um contra-regra com o texto nas mãos.
Contra-regra – Poxa, Carlos, não é assim que tá no texto não...
Carlos – Que se dane o texto, a peça é minha e eu termino como quiser. Agora o controle é meu. Vem, Stravinksy, vem comigo! Faz cara de feliz aí hein porra! (fala pro figurante, que abre um sorriso forçado, enquanto começam os acordes finais do “Pássaro de fogo”, de Stravinsky sob a regência do estagiário).
FIM
Muito maneiro!
ResponderExcluirMt show cara! ta de parabéns!! aguardo as próximas!
ResponderExcluirMuito bom! Acho que você devia esquecer filosofia, direito e tudo o que lhe desviar deste caminho: escrever. Não conheço muito bem seus outros talentos, mas este, sem dúvida, na minha parca opinião,é o maior deles. Quando se tem vários talentos, é difícil escolher e se manter num deles. A criatividade, às vezes, pode ser dolorosa. Muito mais no início da vida.
ResponderExcluirObrigado, pessoal! Teruska, eu tava pensando em dar aulas de filosofia, por isso tive a idéia de fazer esse curso. Além de amar filosofia, preciso desse ganha pão! Meus empregos já me dão um pão na verdade, mas um pão muito simples, apenas com manteiga. Queria um pão mais refinado, com frios e cremutcho. Mas vou pensar no que faço da minha vida. Viver só de escrever deve ser o máximo mesmo...
ResponderExcluirO problema todo deste planeta é este. Você tem que sobreviver e pior: não basta. É preciso mais que o pão de cada dia. Quem vive sem um licor beneditino depois do pão?rs Para viver de escrever é preciso ser mais que escritor: há que ser compulsivamente pobre e resignado.:-)
ExcluirCara ! Tu Escreve muitooooo !!!! Acho que deu umas 352 mil letras ! :) Excelente!!!!
ResponderExcluirEu estou ensaiando um livro, mas não consegui desenvolver mais que 2 capítulos. E o interessante que meu "quase" livro também tem trilha sonora. :)
Parabéns !!!!
Fiz algumas mudanças, mas a essência continua ae! Rumo aos palcos! (em 2037 talvez)
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