PARTE 1 – VIDA E OBRA
I
Auto-biografia post mortem? Eu poderia ter chamado de
memórias póstumas de Faustino, mas sinto que seria acusado de plágio. Os
leitores devem estar se perguntando como é possível que eu seja capaz de
escrever depois de morto. Ora, é muito simples: Sou onipotente (adoro essa
palavra). Não pensem que me considero um Deus, pois hoje não me considero mais.
Onipotente sou enquanto artista. Assim como Deus, o artista pode tudo, donde se
conclui que é pela arte que chegamos mais próximos de sermos deuses na Terra.
Nós criamos o que queremos, quando queremos, e destruímos o que queremos quando
queremos. Quanto poder! Tudo poder! E quando porventura exageramos, quando
nossa arte passa dos limites e rompe com a moral e os bons costumes – o que
felizmente é bastante comum - nossos pecados nos são perdoados, pois, segundo
Camus, ao artista se perdoam mais coisas. Que os leitores não ousem fazer pouco
desse poder dizendo que as criações do artista, seus personagens e histórias,
não existem de fato. Grande erro! Como diz Umberto Eco, basta falar de algo
para que esse algo passe a existir. A morte de Gustav Von Aschenbach em Veneza
é tão real quanto a morte de Napoleão na ilha de Santa Helena. Não duvidem: o
poder do artista é enorme.
Os leitores mais atentos já sabem que meu nome é
Faustino. Meu pai escolheu esse nome porque ficou fascinado pelo livro Doutor
Fausto, de Thomas Mann – minha querida mãe, deveras religiosa não aprovou a
“demoníaca escolha”. Segundo meu pai, que era sargento e possuía uma cultura
livresca invejável, o Fausto de Mann supera e muito o Fausto de Goethe. Caso os
leitores não tenham lido o Doutor Fausto, recomendo com todas as minhas forças.
Todos nós temos um romance para chamarmos de nosso. Qual é o meu romance? Ora,
se o Doutor Fausto é uma releitura do mito do Fausto, minha vida aqui relatada é
a releitura da releitura. O Doutor Fausto de Mann é o meu romance, o romance da
minha vida.
Meus pais queriam que eu fosse médico, e cheguei a
terminar a faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, minha cidade natal. Mas o
que eu queria mesmo era ser artista. Desde a época da faculdade, sem deixar de
lado os pesados manuais de medicina, li sem cessar os grandes gênios da
literatura, como Dostoievsky, Kafka, Stendhal, e, é claro, Thomas Mann. Como eu
admirava a vida e obra desses homens enormes! Eu queria ser contado entre eles,
queria escrever livros realmente geniais e ser agraciado com o Nobel de
literatura. Eu não acreditava que podia me tornar imortal pela religião – o que
muito entristecia minha mãe - mas pela arte isso seria possível. Imortalidade:
esse era o meu objetivo de vida. Mas para isso eu precisava começar a escrever,
pois um mero leitor não é um artista.
Quando perdi minha mãe para o câncer, aos meus 25
anos, pensei que a terrível dor dessa perda pudesse trazer a inspiração
necessária para o surgimento de uma obra genial. Isso porque eu acreditava que
os requisitos para a genialidade e profundidade fossem dois: dor e solidão. “Dor”,
afinal ninguém faz arte profunda pelo riso e comédia. O artista precisa sentir
a dor da tragédia nas profundezas da alma e expor ao mundo pela arte a ferida
aberta. “Solidão”, pois como disse Gogol “O isolamento alimenta no homem
pensamentos profundos”.
Foi então que, recluso e evitando qualquer contato
humano, inclusive com minha esposa Eugênia, comecei a escrever meu primeiro
livro, “Mundo absurdo”. No livro, Carla, a protagonista inspirada em minha mãe,
é uma mulher religiosa que seguia de coração todos os preceitos divinos e que
sempre cuidou da saúde. Porém, aos 40 anos, ela é acometida de câncer e morre
após meses de intenso sofrimento. Essa é a justiça divina: Fazer reinar o
absurdo.
Terminei o livro e tive a sensação de que algo faltava
nele. A dor sincera estava ali presente, não restava dúvida, afinal escrevi o
livro enquanto estava de luto. Entretanto, onde estava aquele toque
irreconhecível do gênio? João Alfredo, um pintor que adorava usar boina, alto,
magro, narigudo e que era meu melhor amigo – na verdade eu não tinha nenhum
outro amigo - foi o único a ler o livro terminado e deu o seguinte parecer: “O
livro é bom. O estado de saúde da Carla piorando enquanto paralelamente a fé do
filho dela vai diminuindo é sem dúvida meu trecho favorito. Também gostei da
idéia de um mundo criado por Deus e futuramente abandonado pelo seu arrependido
criador, sendo a partir do abandono governado pelo absurdo. Mas confesso que o
livro não me emocionou, e não sei ao certo porque. Só sei que você pode mais
que isso. A imagem que seu livro deixou em minha mente não daria um quadro de
valor. Não publique esse livro”.
Eu tinha João Alfredo em grande estima, porquanto sua
arte cubista visivelmente influenciada por Pablo Picasso, apesar de não atingir
um nível genial, tinha o seu valor devido à natural criatividade do meu amigo.
Portanto, em respeito à sua negativa opinião, escondi meu livro num pequeno baú
preto, cujo dispositivo de tranca consistia numa combinação de três números.
Nem minha esposa Eugênia leu o livro. Na verdade, ela não se interessaria em
lê-lo. Meus assuntos artísticos e filosóficos a entediavam – afinal, que mulher
gosta disso? – e quando eu me trancava no quarto para escrever ela ficava
possessa, dizia que eu estava trocando ela por um livro, trocando vida e amor por
um objeto morto de papel. Ela ignorava o quanto há de vida num livro. Além
disso, Eugênia, assim como meus pais, queria que eu fosse médico, porquanto só
pensava em dinheiro – afinal, que mulher não gosta disso? – e via a arte como
uma inimiga a ser combatida. Ela costumava dizer: “Seja médico, ganhe dinheiro!
Pense na educação de nosso filho. Sua arte não o levará a lugar algum. Se quer
escrever um livro, escreva sobre vampiros, bruxos ou um livro de auto-ajuda.
Esses sim vendem bastante”. Nós não combinávamos em nada, essa era a verdade.
Só estávamos juntos ainda por causa de nosso filho Policarpo, na época com
apenas um ano de idade.
Após o fracasso do meu primeiro livro, comecei a
pensar num tema para o próximo. Eu precisava de outra dor, outra tragédia em
minha vida, pois eu sabia que só assim as grandes obras nascem. Foi então que a
dor veio: Eugênia não agüentou meus períodos de reclusão somados à falta de
dinheiro e surtou, deixando a casa e levando Policarpo com ela. Na audiência, o
juiz não aceitou meus argumentos e deu a guarda de Policarpo para a mãe - sim,
a mãe que havia abandonado o lar. Essa é a justiça dos homens: Fazer reinar o absurdo.
Completamente irado, comecei a escrever meu segundo
livro, “Mulher Demônio”. Nele, tentei colocar toda a dor e raiva que estava
sentindo, bem como tecer ferozes críticas às mulheres. Pensei que sozinho em
casa, sem as reclamações de Eugênia e os choros de Policarpo, eu poderia criar
um livro verdadeiramente genial. Tremendo engano. Pude ver não uma ascensão, mas sim uma queda
no nível de minha arte. Minha segunda obra estava repleta de ressentimento, e o
livro diminuía o leitor ao invés de elevá-lo – e elevar o leitor era minha real
intenção. Tratava-se de outra obra superficial, destinada ao esquecimento.
Quanta frustração! Lá estava eu abrindo novamente o
pequeno baú preto e guardando mais um livro medíocre. Assim como os
delinquentes, meus livros deveriam ser aprisionados, vez que eram nocivos - sim,
nocivos à verdadeira arte, à grande literatura. Mas afinal o que faltava para o
gênio aflorar em mim? No seu excelente conto “O retrato”, o mesmo Gogol entre
outras coisas me ensinou: “Sacrifique tudo pela arte”. Pela arte eu havia
sacrificado minha família. Não era o suficiente? O que faltava sacrificar, meu
Deus? O que mais eu deveria fazer para atingir os cumes da genialidade e
figurar entre os grandes? Será que eu não estava cometendo um erro achando que
existe uma bula ou receita a ser seguida para que qualquer um se torne um
gênio? Havia também o fator hereditário, é claro. Talvez eu não tivesse nascido
com um dom elevado para a literatura. Mas não, nisso era impossível acreditar,
eu tinha talento.
Pensei em consultar minha bíblia para buscar a
resposta. Portanto, fui reler pela terceira vez o meu romance, Doutor Fausto,
de Thomas Mann, o livro que, não obstante seus demais méritos, esgota o assunto
“criação do gênio”. Esta obra sensacional mostra a trajetória do compositor
musical Adrian Leverkühn desde a infância até o mesmo obter a genialidade. De fato
a dor estava presente na vida do inteligente Adrian, bem como a solidão, a vida
reclusa. Porém, havia um último requisito importantíssimo que eu havia olvidado
por completo: a Doença.
II
Não sei como eu havia esquecido da sagrada Doença. Talvez
isso tenha ocorrido porque na faculdade de medicina sempre ouvi dos tolos
professores que a Doença é um mal que deve ser combatido. Após reler o Doutor
Fausto e perceber como o protagonista Adrian Leverkühn pôde atingir níveis geniais
ao contrair sífilis – a Doença de outro gênio, Nietzsche – passei a pesquisar
sobre o assunto e descobri muito material interessante. Começarei com o próprio
Nietzsche: “São as situações de exceção que condicionam o artista, todas as
situações que são profundamente aparentadas e entretecidas com sintomas
doentios, fazendo parecer impossível ser artista sem ser doente”. Vejam,
“impossível”! O mestre mais uma vez estava certo, Arte e Doença se completam.
Percebo que errei ao começar por Nietzsche, pois todos
os estudos desse mundo devem começar necessariamente pela Grécia. Aristóteles
há milênios já havia notado a relação entre genialidade e doença – aliás, o que
passou despercebido por esse homem? É de sua autoria a seguinte indagação: “Por
que todos os homens que se tornam eminentes em filosofia, política, poesia ou
em artes, são melancólicos?”. Cumpre mencionar que a melancolia era uma Doença
segundo Hipócrates.
O filósofo romeno Emil Cioran, bastante desconhecido
no Brasil - o que é mais um indício da mediocridade desse país - disse: “Não há
absolutamente ninguém que, no fundo de sua alma, não tenha um remorso – por
mais pálido e indeciso que seja – por ter escapado de uma dor ou de uma doença.
É impossível que quem sofra intensa e prolongadamente, embora deseje recobrar a
saúde, não pense numa perda fatal causada por seu provável restabelecimento.
Quando a dor faz parte do nosso ser, é impossível que sua eventual superação
não equivalha a uma perda, assim como é impossível que não provoque um
remorso”.
Outro que aprendeu essa mesma lição dada por Cioran
foi o pintor norueguês Edvard Munch, autor do famoso quadro “O grito”. Munch,
que foi hospitalizado diversas vezes por Doença psiquiátrica, falou: “Um alemão
disse uma vez para mim: ‘Mas e se você pudesse se livrar de muitos de seus
problemas?’ No que eu repliquei: ‘Eles são parte de mim e da minha arte. Eles
são indistinguíveis de mim e isso seria destruir minha arte. Eu quero manter
esses sofrimentos”. Que lindo! Meus leitores, ele tem razão. Será que esse
norueguês teria pintado o genial “O grito” se tivesse uma vida completamente
saudável e feliz? Mas é óbvio que não! Ele teria criado “O sorriso”, um quadro
alegre, com cores vivas, superficial e medíocre. Edvard Munch, esse sim
conhecia os benefícios da Doença! Já Adrian Leverkühn os desconhecia, e somente
por sorte pôde desfrutar de suas delícias. Apesar de saber que a prostituta
estava contaminada, o protagonista do Doutor Fausto só transou com ela porque
queria pecar e receber o castigo por esse pecado. Doença-Castigo! Essa é a prova
de que este homem, ao se dirigir à prostituta, desconhecia os benefícios da Doença,
fonte de sua genialidade, mesmo sendo discípulo do gago Kretzschmar, autor da
seguinte frase: “Se você se desassossega por causa da saúde, somente lhe posso
dizer que ela, na realidade, pouco tem a ver com o intelecto e a arte. Até se
encontra em certa oposição a ambos”.
Eu podia ouvir Gogol falando ao meu ouvido: Sacrifique
tudo pela arte, inclusive sua saúde. Sim, eu era bastante saudável e ativo.
Todo dia eu corria e nadava, bem como cuidava da minha alimentação, pois havia
aprendido isso com a minha mãe, grande defensora de uma dieta balanceada e da
prática de atividades físicas. Mas o que minha mãe havia ganho com essa vida
saudável? Um câncer e uma tumba. Ora, eu dispenso essa maldita saúde, assim
como Cioran, quando diz:: “O estado mais cômodo, mais confortável e menos
comprometedor é o estado de saúde. Ele indica não apenas uma burrice orgânica e
definitiva, como também uma superficialidade dos sentidos, uma ausência total
de qualquer risco, uma incapacidade de ação heróica. Ser saudável significa
andar por este mundo de olhos vendados, não perceber nada dos cumes e dos
penhascos da existência. É possível lutar contra todas as pessoas, mas não
contra os saudáveis, pois eles são tão insensíveis que não podem realizar em
seu âmago nenhuma forma de transfiguração. Considerar alguém saudável é a
maneira que tenho para exprimir meu maior desprezo. A saúde bruta, orgânica –
ou seja, uma saúde irremediável – é tudo o que pode haver de mais detestável
numa pessoa”.
Eu já estava convencido de que a Doença era o que
faltava para nascer o gênio em mim. O verdadeiro gênio não surgiria do óbvio,
do corriqueiro. Jamais! O gênio nasce do novo, e a Doença contribui e muito
para o surgimento desse elemento novo, jamais pensado anteriormente pelos
limitados cérebros saudáveis. Só faltava então escolher que Doença contrair, ou
melhor, conquistar, afinal eu não esperaria a Doença porventura vir ao meu
encontro, mas em verdade eu deveria conquistá-la, pois só assim seria
verdadeiramente merecedor de suas bençãos. Para isso continuei minhas pesquisas
e fiz a seguinte lista meramente exemplificativa elencando alguns gênios e suas
respectivas doenças: Nietzsche, Sífilis; Dostoievsky, Epilepsia; Schopenhauer,
Distúrbio Bipolar; Cioran, Insônia; Baudelaire, Sífilis; Monet,
Cegueira; Beethoven, Surdez; Van Gogh, Distúrbio Bipolar; Schumann,
Alcoolismo e/ou Distúrbio Bipolar; Hugo Wolf, Sífilis; Bukowski,
Alcoolismo; Fernando Pessoa, Distúrbio Bipolar. Eu poderia fazer uma
lista do tamanho do Everest, mas creio que essa já é suficiente.
E então, qual seria a Doença de Faustino? O que
restringia minha ação era o fato de eu não poder escolher algumas daquelas Doenças, que somente abençoam uns poucos felizardos. Eu poderia facilmente me
cegar ou quem sabe me entregar ao alcoolismo, mas como eu poderia, por exemplo,
contrair Epilepsia, a Doença sagrada de Dostoievsky? Martelar minha cabeça não
estava nos planos. Na faculdade de Medicina, aprendi sobre outra Doença que eu
não poderia conquistar, a síndrome de Savant, que confere uma memória
surpreendente a quem a possui. Kim Peek, o Savant mais famoso de todos, decorou
com perfeição mais de 12.000 livros, e era capaz de ler simultaneamente duas
páginas de um mesmo livro e decorá-las com a precisão de um computador – tentem
fazer isso agora. Confesso que quando pensei na Síndrome de Savant fiquei
triste pelo fato de nunca poder contrair essa Doença. Porém, pensando melhor,
era esse o meu objetivo, possuir uma memória capaz de decorar uma biblioteca
inteira? A resposta é não. O que eu realmente almejava era criar algo nunca
antes pensado e nunca antes sentido. Eu não ficaria realizado sendo um
erudito-Savant.
Havia também a Sífilis, a Doença do protagonista do
Doutor Fausto. Thomas Mann, o autor do mencionado livro, num excelente ensaio
de sua lavra, disse o seguinte sobre a Sífilis: “É característico da paralisia
sifilítica que, provavelmente pela hiperemia das partes do cérebro afetadas,
traga consigo ondas de um sentimento ébrio de felicidade e energia, um aumento
das energias vitais e uma potencialização real – ainda que, em termos médicos,
patológica – do desempenho produtivo. Antes de afundar a sua vítima na treva
espiritual e matá-la, a doença a presenteia com experiências traiçoeiras – no
sentido da saúde e da normalidade – de poder, de leveza soberana da iluminação
e de bem-aventurada inspiração que o preenchem com arrepios de veneração de si
próprio, com a convicção de que aquilo não acontecia há milênios, com a
percepção de si mesmo como veículo divino, receptáculo da graça, quase um Deus”.
Ser agraciado com todos esses benefícios descritos por Mann era bastante tentador.
Imaginem que arte elevada poderia sair de uma união da dor e solidão com essa
energia, esse imenso poder gerado por aquela Doença incrível?
Finalmente, após refletir bastante, resolvi conquistar
a Doença de Adrian Leverkühn, sim, a Doença de Friedrich Nietzsche: Eu havia
escolhido a Sífilis.
III
Havia chegado a hora da conquista. Restava decidir
como eu faria para contrair a Doença sagrada. Eu poderia ir sem problemas num
prostíbulo, vez que estava separado de minha esposa e não tinha a quem dar
satisfação – um dos benefícios da vida de solteiro. Bordel de luxo estava
completamente descartado. Se era para eu me sujar, que a coisa fosse bem feita.
Eu deveria ir num lugar realmente sujo e mal freqüentado, até porque a
probabilidade de encontrar alguma prostituta infectada seria maior. Portanto,
decidi ir numa área de prostituição muito famosa no Rio de Janeiro, a Vila
Mimosa, hoje situada na Rua Ceará, na Praça da Bandeira. Eu nunca havia ido lá
e tinha curiosidade de ver com meus olhos todo aquele lixo. Se você quiser um
dia visitar a Vila Mimosa e alguém te repreender por isso, argumente que o
lugar também é freqüentado por pessoas refinadas, como o poeta Manoel Bandeira,
que vivia por lá.
Numa noite de lua cheia e bastante fria saí da minha
casa na Tijuca e fui em direção à Vila Mimosa buscar o que me era devido,
afinal, a coragem que mostrei com minha atitude me fazia legítimo merecedor da genialidade/Doença.
Se os leitores pensam que aquilo era loucura, agradeço, pois, segundo
Schopenhauer “O gênio está mais próximo da loucura do que do intelecto
mediano”. Por falar em loucura, antes de chegar na Rua Ceará, com seus bares e
suas vielas sujas que lembram um cenário de filme de terror, cruzei com um
velho louco que falava sozinho. Ele estava nervoso e gesticulava sem parar
apontando para cima o dedo indicador. Quando olhei aquele senhor lunático,
pensei que aquele seria necessariamente meu futuro, caso eu contraísse sífilis
e voluntariamente não me medicasse. Pensar que por fim eu seria lançado numa
realidade paralela à nossa, nas trevas exteriores da loucura total, me fez
hesitar naquele momento. Mas não, um homem não pode fugir do seu destino.
“Torna-te aquilo que tu és”, não é essa a lei?
Quando cheguei na rua Ceará, fiquei impressionado com
a sujeira daquele local. Além das garrafas no chão, da lama e do lixo, a
escória da sociedade estava ali. Pisar na Rua Ceará significa sujar no mínimo a
alma. Andando nessa rua em direção ao prostíbulo passei em frente ao Garage, um
point que reúne rockeiros de todos os tipos. Em geral são metaleiros, punks e
skinheads. Os ânimos estavam exaltados, um punk com cabelo moicano vermelho, gandola
verde, calça de exército e coturno preto ameaçava com uma faca um skinhead de
uns dois metros. Todos pareciam estar bastante alcoolizados, inclusive um
metaleiro estava dormindo na sarjeta em cima do próprio vômito. Fiquei bastante
assustado, afinal mortes eram comuns naquela terra sem lei. Um outro punk foi
até uma parede recém pintada e pichou o “A” de anarquia. Esses rockeiros anarquistas são um bando
de jovens-acéfalos-rebeldes-sem-causa que defendem a ausência de governo porque
não querem ser punidos pelas besteiras que fazem. Nenhum deles lê Bakunin ou
Proudhon. No Brasil, país essencialmente ignorante, isso é comum. Observem a
título de exemplo o número de comunistas brasileiros que nunca leram Marx.
Ao chegar efetivamente na Vila Mimosa, fiquei com nojo
daqueles homens imundos com aquelas caras de tarado visando a mera satisfação
da libido. Um bando de tolos, escravos do prazer e do corpo. Ninguém ali
aspirava a grandes feitos, exceto eu. Mas eu devia estar ali junto da escória e
beber daquele chorume. Me sujar era necessário.
As mulheres, em geral semi-nuas, estavam expostas como
legumes de feira. Mulheres maduras, mulheres ainda verdes e muitas, muitas
mulheres podres. Havia mulheres de todos os tipos. Não entendo como um homem
alto e moreno que estava perto de mim, podendo escolher legumes maduros ou até
mesmo verdes, resolveu subir para um dos quartos que ficam em cima dos bares
com o legume mais apodrecido da feira - uma gorda de quase duzentos quilos. Ora,
o preço é o mesmo, vinte reais! Mesmo para os melhores psicólogos o ser humano
continua um mistério.
Eu estava ficando desanimado, porque já havia
percorrido quase todas as vielas e não havia encontrado nenhuma mulher do meu
agrado. Porém, ao entrar num beco sem saída, escuro e bastante pichado, me
deparei com uma mulher sozinha encostada na parede e fumando um cigarro. Ela
era alta, negra, magra, e seus longos cabelos ondulados eram vermelhos com as
pontas amarelas. A mulher trajava uma calça jeans apertada e uma blusa branca
decotada que deixava seus seios volumosos à mostra. Ela não pareceu dar muita
importância à minha presença ali, eu fitava seu rosto, mas não era
correspondido. Me recordo bem que seu cigarro acabou e, após jogar a guimba no
chão ela pegou outro e acendeu-o com um isqueiro. A visão daquela pequena chama
me deixou arrepiado, e senti no meu coração que seria com ela. Percebam, eu não
sabia ao certo se aquela mulher possuía sífilis, ninguém havia me falado nada a respeito.
Mas aquele sentimento foi muito forte. Quando finalmente ela levantou os olhos
e me lançou um olhar, foi como se tivesse atirado uma flecha em mim. Que olhar
intenso! E que maldade naquele olhar! Sem pensar, como se estivesse
hipnotizado, fui ao seu encontro, e disse estar interessado no programa. Após
subirmos uma escada caindo aos pedaços, chegamos num quartinho apertado e
fedorento composto de apenas uma cama pequena. A roupa de cama, por incrível
que pareça, era ironicamente branca, branca como a pureza. Ali, naquele cômodo
pecaminoso travamos o seguinte diálogo, iniciado ante minha recusa de colocar o
preservativo:
- Ei, por que você não quer colocar a camisinha? Está
louco? Posso ter uma doença sexual, é comum na área em que eu trabalho... Você
não ia querer arriscar ser contaminado, não é verdade?
- Ora, mas se é justamente pela doença que eu
alcançarei níveis onde nenhum outro ser humano jamais chegou. Eu não seria
contaminado, mas sim abençoado. Não vou usar camisinha. Eu quero a sua doença.
- Acredite, você já está doente. Primeiro, quem te
falou que eu tenho alguma doença?
- Ninguém. Eu sei porque senti em meu coração algo
muito forte.
- Ora essa, não existe isso de sentir. Sentimentos não
provam nada.
- Aí é que você se engana. Neste mundo existem duas
formas de se provar a veracidade de algo: por meio de evidências ou pelo
sentimento. Eu sei que você tem sífilis.
- Muito estranho, eu não conto isso para ninguém. O
senhor deve ter feito algum truque ou bruxaria. Sim, tenho sífilis, desde os
dezoito anos. Mas, voltando ao assunto, onde já se viu alguém querer ficar
doente? O senhor pode, por favor, me explicar exatamente por que quer a minha
doença? Aviso que a sífilis é uma doença muito séria, você vai se encher de
manchas pelo corpo, vai se sentir cansado, com falta de ar, dor de cabeça,
febre, resumindo, vai dizer adeus à sua saúde. Será que você está preparado
para suportar todo o peso que ela traz?
- Saúde... Minha intenção é justamente dizer adeus a
ela o mais rápido possível. Eu quero a palidez! Eu quero a Treponema Pallidum!
Eu renuncio à fútil saúde, ela nunca criou nada grande. Esqueci de perguntar,
qual é o seu nome?
- Suellen, mas costumam me chamar de Su.
- Suellen, sua preciosa doença forjará o gênio em mim,
justamente por intermédio desses efeitos que você citou, bem como de outros.
Tudo o que eu busco nessa vida é a profundidade, e, segundo um amigo meu
chamado Cioran, “tudo que é profundo nesse mundo só pode brotar a partir da
doença”. Bem, deixa pra lá, você é mulher, você não entenderia...
- O senhor é artista, não é mesmo? Provavelmente
músico ou escritor. Malditos artistas! Vocês são um fardo para a sociedade! São
inúteis, isso quando não são perniciosos. Jamais aguentaria namorar um artista.
- Desculpe eu perguntar, mas, você tem namorado?
- Típico, acha que eu não posso namorar pelo fato de
ser prostituta. Pois se engana! Sou capaz de amar sinceramente alguém, talvez
até mais do que você pode. Ao mesmo tempo, posso fazer programas com pessoas
que nada representam para mim, como por exemplo, o senhor. É algo muito
complexo, você não entenderia...
- Talvez você esteja certa. E então, sem camisinha?
- Vejo que o senhor quer fazer um pacto comigo: Quer
que eu te dê a genialidade a partir da minha doença. Mas até agora o senhor não
me ofereceu nada. O que me dará em troca, sua alma? Dispenso sua alma, ela
seria inútil para mim.
- Eu te daria minha alma, caso ela lhe fosse útil. Eu
pago qualquer preço pela genialidade. Sua doença vale muito, ela não é uma
maldição, mas sim uma benção. Se bem que é um desperdício alguém como você,
desprovida de alma artística, receber um dom tão sublime assim. É como dar
pérolas aos porcos.
- O trecho do “pago qualquer preço” é bastante
tentador. O que tem em mente?
- Bom, posso te dar cem reais. Acho que seria algo
útil para você.
- É bem mais do que eu ganho com um programa. Mas, se
minha doença é tão valiosa assim, quero duzentos.
- Fechado, pagarei assim que terminarmos.
O que deveria ter sido frio como um contrato de compra
e venda, até porque não travamos um diálogo dos mais amistosos, foi quente como
o fogo. Seu corpo negro e nu ardia, estava realmente fervendo. Com seus caninos
pontudos, Suellen me mordeu, a ponto de rasgar minha carne. Suas unhas
arranharam minhas costas até sangrar. Que mulher! A natureza havia forjado ela
para o sexo. E pensar que eu chamava de sexo aquilo que minha mulher e eu
fazíamos. Com Suellen eu queria morrer, morrer de prazer. Aquela experiência
sexual foi tão intensa, que hoje acho graça de Schopenhauer quando ele diz que
os maiores prazeres da vida são os prazeres do intelecto. Só alguém que nunca
conheceu mulheres como aquela pode dizer algo assim – “conhecer” no sentido
bíblico. Acreditem, nada poderia ser mais prazeroso do que aquela inesquecível uma
hora passada com Suellen, a besta-fera do amor.
Percebi com meus atentos olhos que a própria Suellen dava
sinais de que havia gostado, porém, por vaidade, fazia de tudo para esconder
isso. Quando, exaustos, terminamos e nos vestimos, puxei o dinheiro da
carteira, dizendo:
- Aqui estão os duzentos reais pactuados. Cumpri minha
parte.
- Espero também ter cumprido a minha, fiz o que podia
para tal. Agora prometa que nunca mais vai voltar a me ver.
- Prometo. Só uma última coisa: Suellen é o seu nome
verdadeiro?
- Sim, não tenho essas frescuras.
- E qual é o seu sobrenome?
- Não era a última pergunta? Mas não importa, posso
responder. Meu sobrenome é Cubus.
- OK, Suellen Cubus. Foi um prazer indescritível. Devo
tudo a você. Adeus. Nunca vou te esquecer.
- Eu sei que não vai. Acabo de marcar para sempre sua
vida.
IV
Aproximadamente um mês depois do encontro com Suellen,
percebi enquanto urinava que finalmente uma linda ferida havia aparecido. Seria
ela, a maravilhosa Doença mostrando seu primeiro sinal? Ora, não podia ser
outra coisa, mas eu precisava confirmar. Por isso, marquei uma consulta com um
médico, o Doutor Fracastoro, um homem baixinho, bigodudo e pedante. Contarei
agora como o foi o diálogo, digo, duelo travado entre o Doutor Fausto e o
Doutor Fracastoro:
- Boa tarde, Sr. Faustino, qual é o seu problema?
- Na verdade nenhum, Doutor.
- Estranho alguém marcar uma consulta com um médico
sem ter um problema.
- Doutor, gostaria de saber se contraí sífilis, porque
transei sem preservativo com uma mulher contaminada e um mês depois apareceu
uma ferida em meu pênis.
- Vamos dar uma olhada nessa ferida. Senhor Faustino,
aí está o seu problema. Sem dúvidas é um cancro duro. A ferida é vermelha e
bastante firme. Sente alguma dor?
- Nenhuma.
- Sinto informar que o senhor contraiu sífilis.
- Verdade, Doutor? Que ótimo, fico tão feliz!
- Feliz? Você sabe o que está falando? A sífilis é uma
doença horrível!
- Eu sei tudo sobre a sífilis, Doutor, estudei ela na
faculdade de medicina. Inicialmente temos a fase primária, com o surgimento do
cancro duro. Depois vem a fase secundária com aquelas manchas geralmente nas
palmas das mãos e dos pés. Não são as melhores fases da doença, mas são
facilmente suportáveis. A seguir vem a fase latente, onde as ulcerações somem,
e os idiotas pensam que estão curados. Mas ela é traiçoeira, é o silêncio que
precede o esporro. Isto porque após a fase latente, temos a fase terciária com
todo o seu poder. Ah, doutor, a fase terciária... chego a me emocionar só de
pronunciar essas palavras. Com a fase terciária, a única que me interessa, temos
maravilhosas mudanças de personalidade que trazem poder, mudanças emocionais,
e, claro, uma dor de cabeça aqui ou ali. Alucinações também ocorrem nos casos
mais graves, até que a loucura total toma conta do sifilítico. Aqui, em regra,
terminam as bênçãos da fase terciária.
- Sabendo de tudo isso - e devo avisar que inúmeros
sintomas gravíssimos foram omitidos - como o senhor pode comemorar por estar
contaminado?
- Doutor, o senhor já ouviu falar em Nietzsche? Acho
meio difícil, afinal, os manuais de medicina são tão pesados!
- Sim, aquele alemão. Ele era um doente.
- Exato, muito bem.
- Ele precisava de tratamento.
- Aí é o que o senhor se engana.
- Mas que disparate é esse? Parece que o senhor quer
me convencer de que a doença traz algum tipo de benefício. Acorde! A doença só
pode gerar coisas doentias!
- Talvez pro senhor, homem máquina dedicado à ciência
isso seja verdade. Mas para mim, um artista, a doença será o portal para
genialidade, com as bênçãos da fase terciária, criarei obras grandes, Doutor.
Sabe por que recusei seguir carreira na medicina? Porque sei que ser médico é
ser como o senhor, Doutor Fracastoro.
- Contra
principia negantem non est disputandum. Um homem que vê o bem onde todos
vêem o mal não merece conversar comigo.
- Mal... a visão médica é muito tola mesmo. É só
observar os patéticos sinônimos da sífilis: Mal-americano, Mal-canadense,
mal-céltico, mal-da-baía-de-São-Paulo, mal-de-coito, mal-de-fiúme,
mal-de-franga, mal-de-frenga, mal-de-nápoles, mal-de-Santa-Eufêmia,
mal-de-São-Jó, mal-de-São-Névio, mal-de-são-semento, mal-dos-cristãos, males,
mal-polaco, mal-turco. Mal? A sífilis é só bem! É o bem-do-Faustino!
- Suponho então que o senhor não vai querer tratar a
sífilis, correto? Seria tão fácil com a penicilina...
- Tratamento? Jamais. Evitarei esse veneno chamado
penicilina. Ele é antibiótico, logo, é contrário à vida.
- De qualquer forma, vou receitar a penicilina para o
senhor. Não quero ser conivente com essa loucura. Boa sorte, senhor Faustino, o
senhor vai precisar.
Após a despedida, me retirei do consultório daquele
ser ignorante – culto nas ciências, porém ignorante do que há de mais crucial,
ou seja, dos conhecimentos mais profundos do ser humano. Não havia dúvidas, eu
era um sifilítico. Começava ali uma nova vida para mim. Era como se eu tivesse
sido batizado por Suellen, mas um batismo pelo fogo, que deixou marcas
indeléveis em mim. O cancro não tinha nada de indelével, porque um mês depois
ele foi diminuindo até sumir completamente. Até que vieram as manchas nas
costas, nos pés e nas mãos. Era a fase secundária da Doença.
V
Eu não pretendia espalhar a todos o que havia feito.
Com certeza me julgariam dizendo que eu enlouquecera. Por isso precisei usar
luvas para esconder as manchas deixadas por Suellen. Que absurdo, luvas em
pleno Rio de Janeiro, a cidade infernal! Indubitavelmente aquilo chamava
atenção. Portanto, quando encontrei num dia ensolarado João Alfredo sentado num
banco da Praça Saens Peña lendo jornal, a primeira coisa que meu amigo fez foi
perguntar por que eu estava de luvas. Eu não sabia se ele me entenderia, porém
resolvi contar a verdade. Então, sentei ao seu lado e travei com ele o seguinte
diálogo:
- Meu amigo, me responda, até onde você iria para
alcançar a suprema genialidade?
- Ah, Faustino, ainda a busca pela genialidade. Quanta
obstinação! Não sei se eu faria grandes sacrifícios. Estou feliz com o nível da
minha arte, ganhei um prêmio ontem num salão com um quadro chamado “Floresta da
Tijuca”, já é o segundo que ganho. Se minha arte é genial ou não, só o juiz
tempo irá dizer. Mas eu perguntei sobre as luvas e você me vem com genialidade.
Não há relação alguma entre os dois. Se fosse pelo menos entre boina e
genialidade...
- Mas entre genialidade e o que se encontra escondido
pelas luvas há bastante relação. Vou tirar as luvas, dê uma olhada.
- Que manchas horríveis, Faustino. O que significa
isso?
- Acredito que Doença e genialidade caminham de mãos
dadas. Você já conhece minha teoria de que as grandes obras são feitas pela dor
e a solidão, mas ela é incompleta, faltava o elemento final, a doença. A
questão é matemática, meu amigo: talento natural + dor + solidão + Doença = genialidade. Resumindo, contraí voluntariamente sífilis visando os
benefícios que essa Doença traz ao artista.
- Faustino, com isso você provou ter duas doenças:
sífilis e um sério distúrbio mental. Não nego que a doença traz benefícios à
arte – veja por exemplo as cores fortes incríveis produzidas pela catarata de
Monet. Todavia, contrair voluntariamente uma doença grave como a sífilis é
loucura.
- Se chego à conclusão de que a Doença é algo positivo
para o artista, e desejo com todas as minhas forças criar uma arte suprema, como
agir? Devo esperar pacientemente que uma Doença surja do nada em minha vida?
Isso seria ilógico, não é verdade? Mais uma vez a questão é matemática.
Premissa 1: A Doença contribui para o surgimento do gênio; Premissa 2: Quero
ser gênio; Conclusão: Quero a Doença.
- Ah, Faustino, você vai enlouquecer completamente, já
posso até ver. Vou perder meu único amigo... Pessoas sozinhas como eu são muito
dependentes dos poucos que fazem parte de sua vida. Você foi irresponsável e
esqueceu da grande lição do pequeno príncipe. Mas me diga, qual é o seu plano
após essa receita de bolo da genialidade? Qual será o tema da sua obra genial?
- Bem, ainda não decidi ao certo, para isso preciso
estar possuído pelo poder da fase terciária da sífilis. Mas tenho lido bastante
a Bíblia ultimamente. Você sabe que não sou dos mais religiosos, porém esse
contato com o mal mexeu bastante comigo. Você tinha que ver como era a
prostituta com a qual tive relações, era o demônio em pessoa.
- Aposto que ela era tão demoníaca quanto qualquer
filha de Eva. Se quiser retomar o assunto do absurdo, tenho uma notícia desse
jornal que pode te interessar. Sabe, estive pensando, acho que somos amigos
porque, além da paixão pela arte, somos capazes de contemplar o absurdo da vida
– coisa que poucos conseguem suportar. O caso é o seguinte: Uma menina jovem e
pura foi assistir um culto religioso numa igreja distante. Quando voltava para
casa, à noite, debaixo de uma forte chuva, um homem a levou à força para um
terreno baldio, espancou-a, depois a estuprou, e por fim ceifou sua vida
mediante pauladas. Meu amigo, é impossível ser religioso. Veja todo o esforço
que essa jovem fez para ir ao culto, para seguir o caminho que ela achava
correto. Que absurdo! Como Deus permitiu aquilo? Sou ateu, não por rebeldia,
mas porque tenho um bom coração. Não acredito em Deus para poupar Ele, porque
se Deus existe, Ele é necessariamente mau.
- Nossa, que história horrível. A maldade do ser
humano realmente não tem limites. Apesar de estar cercado de coisas absurdas à minha volta, de vários narizes falantes vestidos com traje de oficial, não
consigo ser ateu como você. Tive uma experiência com o maligno, João, eu
conheci o diabo, fiz um pacto com ele. E se existe oposição em todas as coisas,
havendo o Diabo, há de haver Deus. Além disso - sempre me vem à mente esse
velho argumento - como alguém pode provar que Deus não existe?
-
Mas ninguém aqui falou em provar que Deus não existe. Não sou ateu pelas
provas. Sou ateu porque sinto forte em meu coração que Deus não existe.
-
João Alfredo, o eterno debochado... Que desenho você tem aí? Preparando algum
quadro novo?
-
Sim, estou pensando em fazer um quadro da praça saens peña, mostrando aqueles
idosos jogando.
- Ora, para que querer imortalizar esse momento
patético? Um bando de velhotes que não adquiriram sabedoria alguma, do
contrário não estariam perdendo seu tempo com fúteis jogos, mas sim em casa
lendo. Eu tenho pena deles! Ficam o tempo todo contando vantagem, dizendo que
fizeram e aconteceram, que já conquistaram lindas mulheres, já foram ricos, famosos,
entre outras mentiras. Escolha um outro tema, meu amigo.
-
Penso também em pintar um retrato seu.
-
Verdade?
Sim. Tive essa idéia na precisa hora em que você me
falou da doença. Este retrato será minha obra-prima. Mas para isso preciso
esperar seu olhar se modificar, e tal mudança ocorrerá quando você estiver
tendo aqueles acessos de poder que Nietzsche teve. Com a iluminação certa, vou
retratá-lo como um Deus na Terra.
- Eu ficaria lisonjeado. Agora preciso ir, estou com
uma dor de cabeça terrível.
- Até logo. Se cuide, meu amigo. Pensando melhor, faça
o que bem entender.
Tempos depois as manchas sumiram e pude guardar minhas
luvas. Eu estava na fase latente, e isso queria dizer que a poderosa fase
terciária estava próxima. Eu não fazia outra coisa a não ser ler e pensar. Sem
emprego, eu me mantinha com empréstimos do banco, mas eu não tinha perspectiva
alguma de pagá-los, e na verdade nem perdia tempo me preocupando com essas
bobagens sem valor. Pensamentos grandes povoavam minha mente. Meu livro estava
por vir.
VI
Um dia, enquanto refletia a respeito daquela notícia
do estupro da jovem religiosa, fui tomado por uma energia incrível, uma
sensação de poder nunca antes sentida por mim. Impossível descrever com
exatidão, era como se eu fosse cem por cento endorfina. Havia um caos dentro de
mim, e então pensei que era a hora de dar à luz uma estrela cintilante.
Portanto, comecei a escrever de maneira febril e incessante, assim como um
médium. Meus olhos chegaram a virar, meu rosto ganhou uma seriedade sinistra,
com as sobrancelhas forçando os olhos e a testa completamente enrugada. Tive
momentos como esse durante meses, e nessas horas em que eu me transformava
parecia que eu havia entregado minha alma ao fazer aquele pacto. Mas no fundo
não foi isso mesmo que eu fiz?
Aproveitando essa energia, fruto do dom diabólico da
fase terciária, pude terminar de escrever meu livro chamado “Suplício – a soma
de todas as dores”. Não vou ficar me gabando, tecendo eu mesmo elogios ao meu
livro (seria realmente “meu livro” ou um caso de co-autoria?). Na parte dois
dessa autobiografia os leitores terão acesso a um artigo de um importante
crítico alemão e poderão conhecer a opinião desse homem que me redescobriu e
divulgou minha obra para todos. Só posso adiantar que, com exceção de João
Alfredo, ninguém quis saber do meu livro, talvez porque ele não fala sobre
zumbis ou vampiros – essas baboseiras estavam na moda. Ninguém queria saber de
dor, quanto mais da soma de todas as dores. Para o brasileiro, bom mesmo é,
como diz uma música famosa, “Nada de tristeza nem de dor”. Se quiserem saber
com detalhes do que trata meu livro Suplício, bem como conferir trechos do
mesmo, leiam a parte dois.
Quando terminei o Suplício, lembrei do baú que
aprisionava meus primeiros dois livros. Finalmente eu havia criado algo grande.
Meu livro não foi parar no baú. Eu estava ansioso para mostrar o Suplício a meu
amigo João Alfredo, entretanto eu sofria com dores de cabeça, fadiga e falta de
ar, por isso fiquei em casa de repouso por três dias até recobrar minhas
forças.
Já recuperado, fui com o Suplício em mãos até a casa
de João Alfredo na Rua Uruguai. Tivemos uma conversa rápida e por fim deixei o
manuscrito original do livro com ele. Eu confiava tanto em João Alfredo que
deixaria até minha vida aos seus cuidados.
Uma semana depois, João Alfredo me convidou ao seu estúdio
para conversarmos sobre meu livro “Suplício – a soma de todas as dores”. O
estúdio do meu amigo, que fica nos fundos de sua casa, estava repleto de
quadros, sua atividade artística estava intensa e criativa. Ele me mostrou o
belo “Floresta da tijuca”. Nesse quadro, João, num lugar da floresta chamado
“Açude da solidão”, pintou ele mesmo no centro da tela, com sua característica
boina e as mãos para trás, contemplando sozinho o açude. Verdadeira ode à
solidão, o quadro emociona bastante ao transportar-nos para um locus amoenus e mereceu receber aquele
prêmio. Ao lado do Floresta da Tijuca estava o quadro que ele pintara contra a
minha vontade: o “Praça Saens Peña”. Por sorte meu amigo não me ouviu, o quadro
é cheio de vida e beleza. Com seus cabelos brancos brilhantes os idosos jogando
cartas exibem sorrisos contagiantes. Idealizar aqueles velhos não me agradou
muito, mas o quadro é realmente incrível, obra de um pintor já maduro.
Numa mesa havia uma gravura de Napoleão fazendo sua
famosa pose colocando a mão direita dentro do colete da roupa. Pensei em
perguntar se João pretendia pintar Napoleão, mas na hora meu amigo retirou a
proteção de uma tela que estava coberta. O quadro lembrava o Guernica de
Picasso, sendo, porém, uma mistura de sangue, lágrimas, semblantes tristes de
trabalhadores com traços tipicamente brasileiros, alguns rostos até desesperados,
e, como não poderia deixar de ser, havia também uma grande cruz, símbolo do
maior sofrimento. Após me mostrar aquele quadro impressionante, meu amigo
disse:
- Levei dois dias para ler seu livro e outros dois
dias para pintar essa belezura. Seu nome é “A soma de todas as dores”, mas
provavelmente será apelidado de Guernica brasileiro. Adaptei a idéia de soma de
todas as dores, transformando nas dores do povo brasileiro. A cruz, além do
evidente símbolo de sofrimento, também retrata a esperança do pobre povo. Não
acredito em Deus, mas defendo a utilidade da religião. Meu amigo, sinto que
atingi a genialidade com esse quadro. Seu livro também é realmente genial,
Faustino. Vejo que o pacto deu certo.
- Por um acaso você já ouviu falar num caso de pacto
com o diabo no qual este não cumpriu sua parte? É evidente que daria certo.
Homens podem às vezes descumprir sua palavra, o diabo jamais.
- Agora vamos às críticas. Você diz que Jesus sofreu
por cada um de nós, sofreu todas as dores. Porém eu digo que a dor sentida por
ele na cruz foi a mesma sentida pelos dois criminosos crucificados com ele.
Talvez alguns homens já tenham sofrido mais que Jesus, porém não receberam o
merecido reconhecimento. Emil Cioran talvez.
- Jesus não sofreu apenas na cruz, ele teve
hematidrose, ou seja, ele suou sangue por todos os poros. Com a pele alterada
pelas hemorragias do suor de sangue, imagine a dor que ele sentiu ao receber
chibatadas que fizeram seu sangue espirrar como jatos. Depois foi coroado com
uma coroa de espinhos que penetraram em seu couro cabeludo rompendo os inúmeros
vasos sanguíneos que ali se encontram e fazendo-o sangrar abundantemente. Após,
Jesus, completamente fraco carregou, descalço, sua cruz por um percurso de
cerca de 600 metros. Após o percurso, aí
sim ele sofreu na cruz.
- É, meu amigo, e nós às vezes reclamamos de uma
topada ou um arranhão. A soma de todas as dores. Quem suportaria isso? Você
suportaria a soma de todas as dores?
- Bom, em prol da genialidade já estou suportando a
soma de inúmeras dores. Minha cabeça às vezes parece que vai explodir.
- Você tem muita coragem, Faustino, isso ninguém pode
negar. Bom, talvez Aristóteles negue, afirmando que sua coragem na verdade é
temeridade. Preciso tecer outro comentário. No seu livro, Deus julga o monstro que
estuprou e matou a menina – aliás, aguardo os agradecimentos pelo tema que eu
lhe indiquei. A idéia de um julgamento divino é tão engraçada. Ora, o Direito
não é eterno e imutável, ele muda constantemente. Com base em quais princípios
Deus fará seu julgamento? Ele usará o mesmo Direito e moral vigente na época do
Réu? Será que Deus é garantista? Será que ele é adepto das lutas de classe, da
justiça como instrumento de justiça social? Ou será um juiz conservador, fiel
aos ideais da burguesia? Será que ele ao menos existe? Ai, que piada...
- Não deboche, João Alfredo, há mais coisas entre o
céu e a terra do que sonha o teu vão ateísmo.
- Sabe no que penso às vezes? O céu existe, todos
podemos ver. Mas e o paraíso, meu amigo, será que ele existe? Se existir mesmo
o paraíso, será que é permitido debochar lá? Isso muito me preocupa, só sei
viver debochando. É minha arma para combater o absurdo ao meu redor.
- Não sei se é permitido debochar lá, mas hoje tenho
certeza de que, assim como o inferno, o paraíso existe. Só não sei como ele é.
- Montesquieu já havia reparado nisso: as religiões
não têm dificuldade em descrever o inferno, afinal sabemos que um lugar com
fogo que queima eternamente a carne de nosso corpo seria ruim para todos.
Porém, as mesmas religiões têm dificuldade em descrever o paraíso, pois o que é
bom para mim pode não ser para você. Um lugar onde anjos tocam trombetas ou
flautas? Que tédio! Um lugar onde poderei viver eternamente com minha família?
Que tortura!
- Ainda bem que me separei da Eugênia. Assim não corro
o risco de viver eternamente com ela. Com meu filho Policarpo sim eu viveria
feliz eternamente. Aliás, que saudade do meu filho, não o vejo há muito tempo.
- É impossível ser feliz vivendo eternamente com
qualquer pessoa, mesmo se for a pessoa mais incrível do mundo. A eternidade por
definição não tem fim, mas imagine que ela durasse míseros dois bilhões de
anos. Você agüentaria viver ao lado de alguém por dois bilhões de anos? Não
precisa responder. Um último comentário sobre o livro: Quando Deus julga aquele
monstro, vejo claramente você julgando e condenando ele. Estou certo? Seria o
efeito da sífilis te dando aquela sensação de ser um Deus somado ao fato de
você não suportar o absurdo da impunidade daquele maldito e puni-lo com suas
próprias mãos?
- Isso eu não vou responder. Eu escrevo, meus críticos
interpretam. Até logo, meu amigo.
Após nos despedirmos, fui em direção à minha casa. Meu
andar era grave, corpo ereto, passos lentos e ritmados. No caminho, próximo à
praça Saens Peña, tive uma alucinação horrível. Avistei alguém crucificado, bem
no meio da Praça. Muitos daqueles velhos jogadores desocupados gritavam, e fui
chegando mais perto para saber ao certo o que estava acontecendo. Quando fiquei
bem próximo à confusão, vi que eu era o crucificado. Quando reparei que na
cabeça do Faustino crucificado havia uma coroa dourada, minha cabeça começou a
doer na hora. A dor era lancinante e aumentava progressivamente. Tentei salvar
meu outro eu crucificado, mas fui impedido pelos velhos que me seguraram. Um
deles era o Doutor Fracastoro, que ria sem parar de modo debochado. Quando a
dor ficou insuportável dei um grito desesperado e a alucinação findou. Eu
estava suando muito e bastante assustado. Um transeunte viu que eu não estava
nada bem e me levou até minha casa. Lá repousei bastante e quando acordei me
senti melhor. Porém, minha situação só iria piorar. As trevas estavam por vir.
VII
Fiquei quase uma semana sem sair de casa e meu amigo
João Alfredo ficou bastante preocupado comigo. Por isso, João resolveu me
convidar para assistir a Orquestra Sinfônica Brasileira tocando a 1ª Sinfonia
de Mahler no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Mesmo com o corpo fraco, aceitei
o convite e resolvi escolher uma roupa para ir ao concerto. Eu deveria
caprichar na escolha, afinal a elite do Brasil – se é que ela existe - estaria
presente. Tive então o seguinte pensamento: “Muito me incomoda me vestir como
os outros. Se sou superior a todos, por que devo me vestir igual a eles?”. Foi
então que resolvi vestir um sobretudo preto, uma cartola que eu havia usado
numa festa à fantasia e uma bengala. Simplesmente a roupa mais fora de moda
possível. Todos reparariam. Quando fui me olhar no espelho, vi que minha barba
estava imensa e meu cabelo completamente embaraçado. Eu parecia um profeta
fanático com roupas do século XIX. Eu estava pronto para o concerto.
Na porta do Municipal recém reformado, João Alfredo
não resistiu e fez o seguinte comentário sobre a fachada do teatro: “Que
dourado exagerado! Quanto mau gosto”. Meu amigo resolveu trajar um terno preto,
estava igual a todos ali. Nem sua característica boina foi usada. Quanto mau
gosto! Isso é roupa de artista? Na porta
do Municipal, comprei um guaraná natural com ginseng e após, entramos.
Confesso que não gosto da OSB. Na minha opinião é uma
orquestra que toca sem força e sem alma, que não tem noção da profundidade da
música que está tocando, que toca Mozart como quem toca Martinho da Vila.
Porém, qual não foi minha surpresa ao ver que a orquestra sob a regência do
judeu brasileiro Igor Szczerbacki estava irreconhecível. Quanto poder! Que
milagres um maestro pode fazer! E ainda existem tolos que duvidam de sua
importância. O começo da Titan de Mahler, aquele primeiro movimento pastoril já
me fez sair do corpo. Fui transportado para o açude da solidão, acompanhado dos
pássaros que cantavam por meio daquelas flautas mágicas. O segundo movimento
também estava impecável. Eu não estava acreditando naquilo, parecia que eu
tinha diante de mim a Filarmônica de Berlim, mas os músicos eram os mesmos de
sempre. Seria um caso de pacto grupal com o maligno? Acho que não chegava a
tanto. Lembro daquele músico americano que disse o seguinte a respeito de tocar
sob a batuta do maestro Arturo Toscanini: “Eu não sabia que podia tocar tanto
assim”.
O terceiro movimento, a marcha fúnebre do caçador, foi
interpretado de forma lenta e incrivelmente profunda. Eu podia ver aquele
cortejo fúnebre dos animais, com seus rostos tristes, enxugando com lenços suas
lágrimas e carregando o caixão do caçador. Coelhos, cervos, todos animais
presas por excelência, emocionados pela morte daquele que se, vivo estivesse,
mataria possivelmente todos eles. Por que então aquele semblante afetado? Por
que toda aquela tristeza? Não deveriam estar sorrindo, dançando uma sarabanda
ao invés de fazerem uma triste marcha fúnebre? Ora, é muito simples. O caçador
fazia parte da vida daqueles seres, e sua morte equivaleu a uma perda para
eles. E agora, como seria a vida daqueles bichos sem terem que fugir do
caçador? E se não aparecesse por lá um outro caçador? Com a morte do caçador
aquelas presas perderam o seu objetivo de vida.
Daí o motivo da tristeza.
Por fim, estoura o prato e se inicia o quarto
movimento. É o começo de movimento mais forte, inesperado e assustador da
história da música. Uma senhora que estava sentada ao lado de João Alfredo se
assustou tanto que deixou cair todos os pertences que estavam em seu colo. Próximo ao final da
sinfonia, a orquestra toca o tema triunfal “tantan-tan-tan-tan-tan-tantantan”. Esse tema eleva de tal forma o ser humano que os
trompetistas tocam-no de pé. Nessa hora, eu estava tendo o famoso orgasmusical
– quem se dedica à música erudita pode desfrutar desse outro tipo de orgasmo. A
emoção era tanta que quando percebi, estava de pé assim como os trompetistas. A
senhora que havia se assustado pediu para eu me sentar, mas desistiu vendo que
eu estava tomado por uma real e forte emoção. Quando soou o acorde final, lancei um “bravo” com todas as minhas forças. Após, um estrondo de palmas como
fogos de artifício. Quando as palmas finalmente enfraqueceram, eu, completamente empolgado, gritei “Ich
bin der König!”. As palmas pararam na hora. Enquanto todos olhavam assustados
aquele barbudo com sobretudo e cartola, meu amigo João Alfredo percebeu que meu
olhar havia se modificado. Segundo ele, meus olhos brilhavam e era como se eu
pudesse ver mais longe que os demais. “É chegada a hora, vamos ao meu estúdio”.
Após o concerto, fomos direto ao estúdio de João
Alfredo. Ali meu amigo me eternizaria criando o “Retrato do meu amigo
sifilítico”, sua obra-prima. Esse quadro se encontra atualmente no Louvre e é
um dos quadros mais famosos do mundo. Meu amigo conseguiu atingir o efeito de
luz esperado, uma luminosidade realmente divinal. Porém, meu olhar não está
nada divinal, mas sim incrivelmente poderoso e demoníaco. Meu cabelo bagunçado lembra
o de Beethoven, e se repararmos bem, a luz em cima dos meus cabelos tem o
formato de uma coroa. Meu amigo pediu para que eu fizesse a famosa pose de
Napoleão, então coloquei a mão direita por dentro do sobretudo, sendo desta
forma retratado por João. “Faustino, um doente que se achava gênio”, seria essa
a mensagem que aquele quadro transmitia? Talvez; combinaria com o deboche
característico de João Alfredo. Só sei que ninguém me convencerá de que é coincidência
o fato de haver a Doença na magnum opus
de meu amigo.
Meu espírito estava alimentado por toda aquela dose de
arte elevada que naquele dia pude desfrutar: música e pintura de primeira
qualidade. Enquanto andava nas ruas como um ser superior deve andar, vim
meditando sobre como viver para a arte é viver plenamente. Nenhuma dor é à toa.
Nenhum acontecimento na vida é em vão. O amor do artista à vida é pleno e incondicional.
Arte é vida, a única vida possível – pelo menos para mim. Aquele dia artístico
me estimulou a escrever um novo livro, portanto, apressei o passo para chegar
logo em casa e dar à luz a outro livro genial. Todavia, quando me encontrava na
porta de casa tive outra terrível alucinação: Eu via minha ex-esposa Eugênia
com meu filho Policarpo. Porém, aquela Eugênia tinha os cabelos vermelhos com
as pontas amarelas e seus dentes caninos estavam mais pontudos e expostos do
que o normal. Quando ela apontou o dedo indicador para mim, fiquei
completamente paralisado. Ela então deu uma gargalhada e disse: “A mulher é a
forma que eu assumo para agir na Terra”. A seguir, suportei a maior dor de toda
a minha vida: Eugênia foi lentamente em direção a Policarpo, colocou suas mãos
no pequeno pescoço do infante e, rindo, começou a estrangular o próprio filho.
Eu estava paralisado, nada podia fazer. Somente pude gritar “Pare! O que está
fazendo?”, mas ela não parou. O rosto de Policarpo foi ficando roxo até que o
menino fechou os olhos para não mais abri-los. Após um grito de terror, voltei
à realidade.
Ainda estava de pé, em frente à porta de casa, com o
corpo mole e a respiração ofegante. Apoiei a cabeça na porta e chorei como
nunca havia chorado. Aquilo era demais para mim. Sem pensar em nada, eu, o
superior Faustino, me ajoelhei ali mesmo e, em voz alta fiz a seguinte oração a
Deus: “Meu Deus, peço perdão. Cometi um pecado gravíssimo, fiz um pacto com o
Demônio e agora estou pagando o alto preço dessa minha atitude. Sei que não sou
uma pessoa das mais religiosas, mas se estou ajoelhado falando sem achar que
falo sozinho, isso deve significar algo. Por mais nebulosa que seja, existe uma
fé sincera em meu coração. Estou muito arrependido, meu Deus. Se for da tua
vontade, traga minha saúde de volta, retirando todo e qualquer efeito da
sífilis. Amém”.
Recebi de Deus a resposta negativa logo após terminar
a oração. Uma voz doce sussurrou ao meu ouvido a seguinte frase: “Pacta sunt servanda”.
VIII
Deus não interferiria no meu caso. Portanto, voltei a
esquecê-lo. Com a sífilis, eu era Deus, e não havia a necessidade de outro. Resolvi
adotar a cartola, o sobretudo e a
bengala como meu traje oficial – e único, a julgar pelo odor exalado por minha
roupa. Vestido dessa forma, eu costumava andar pela praça Saens Peña marchando
e cantando com vigor aquele tema da 1ª de Mahler “tantan-tan-tan-tan-tan-tantantan”.
O populacho é mau e não poupou a anedota: fiquei conhecido como o “Tan-tan da
Tijuca”. Na verdade, eu não estava completamente louco, mas sim no limiar entre
a razão e a loucura. Aproveitando esse filete de razão que eu ainda tinha,
escrevi uma carta a meu filho Policarpo, dando conselhos a ele e de certa forma
me despedindo. O teor da carta denuncia que seu autor não estava cem por cento
lúcido.
Se não me engano, dias após a carta eu havia
enlouquecido completamente. Mas afinal, quem possui a régua capaz de medir com
precisão onde termina a lucidez e começa a loucura? Difícil atestar ao certo
isso, mas no meu caso nem tanto, pois eu comecei a viver numa realidade
paralela. Por exemplo, sempre que cruzava com uma mulher na rua, eu fugia
correndo dela, gritando: “Der teufel!”. Um dia cruzei com João Alfredo próximo
à Rua Uruguai. Ele me disse: “Boa tarde, Faustino”. Respondi: “Descobri que sou
o rei da Espanha”. Meu amigo me olhou com um semblante triste e não conteve o
choro. Ele entendeu que havia perdido seu único amigo para sempre.
Comecei então a escrever um novo livro, chamado
“Faustinus Rex”. O livro ficou incompleto, mas não chorem, ele é fruto de uma
mente louca. Talvez um dia nasça alguém preparado para ler e entender esse
livro maluco, que rompe não só com a moral e os bons costumes, mas também com a lógica.
Minhas atitudes loucas não tinham fim. Um dia, quando
passeava na Praça Saens Peña, cruzei com um velho que carregava uma caixa de
dominó. Dei um tapa na caixa e gritei: “Vai pra casa ler, seu velhote! Teu
tempo de joguinho já era”. Os dominós caíram no chão e enquanto o idoso fazia
um esforço enorme para catá-los, dei um chute espalhando todos pelo chão. Que
os leitores me perdoem, eu estava louco.
Resolvi guardar o Faustinus Rex no baú preto, não
porque achasse que meu livro não tinha valor – na verdade pensei na época que
escrevia uma obra prima – mas sim porque queria escondê-lo de todos enquanto eu
não o terminasse.
Mais uma vez eu me enfurnei em casa, deixando meu
amigo preocupadíssimo, principalmente porque agora eu estava completamente
louco. João Alfredo pensou até em contratar alguém para cuidar de mim, mas tal
não foi preciso: num dia quente e claro de verão, meu coração parou de bater.
IX
Meu corpo foi levado para uma capela da Tijuca e ali
se deu uma cerimônia religiosa. Entre os poucos presentes estavam meu filho
Policarpo, Eugênia, João Alfredo e Doutor Fracastoro (aposto que esse maldito
quis ver de perto a suposta vitória da visão médica da Doença). Pouco antes do
discurso do padre – um careca com cara de santo chamado Panelotti – eis que
aparece Suellen, trajando roupas um pouco curtas demais para um funeral. Mesmo
sendo um narrador onisciente ignoro como Suellen ficou sabendo da minha morte.
Pude observar como Suellen e Eugênia trocaram olhares seguidas vezes. Ali se
deu o encontro das duas mulheres da minha vida, a mulher-demônio com a
demônio-mulher. Finalmente o padre Panelotti iniciou seu discurso, a seguir in verbis: “Amados irmãos, estamos aqui
reunidos em virtude do funeral de Faustino. Indubitavelmente Faustino tinha um
bom coração, mas ele cometeu erros gravíssimos em sua vida, sendo o maior
inimigo dele mesmo. Sua vida deveria ter sido limpa, mas Faustino resolveu se
sujar contraindo voluntariamente a sífilis. A sífilis é o castigo de Deus aos promíscuos,
que são marcados pelas erupções. Deus só retirará essa doença maldita da Terra
quando o último devasso temer a Ele. Quando esse dia chegar só haverá brancura
e pureza. Meus irmãos, eis que vos digo que Faustino não morreu em virtude da
doença: Faustino se matou pelo veneno do pecado. Sua doença em verdade não era
a sífilis, mas sim o orgulho. Faustino deveria dedicar sua vida a Cristo, mas
se deixou levar por vãs e demoníacas ambições que corroeram sua alma bem como
sua saúde física. Meus irmãos, vamos aprender com o erro dele. Faustino queria
ser grande, queria ser o maior. Eis que vos digo que devemos almejar sermos os
menores, os mais humildes. Quem é o maior no reino dos céus? Os humildes como
as crianças. Se querem ser grandes, sejam pequeninos. Lembrem-se que os últimos
serão os primeiros. Irmãos, quando compreendi e dominei a língua latina foi a
pior fase da minha vida, a única na qual minha fé vacilou. Conheci a obra dos
autores estóicos na língua original e iniciei uma busca desenfreada pelo saber.
Chegou uma hora em que, me rendendo a torpes vaidades, resolvi que também
queria ser grande como aqueles homens. Lembro com bastante vergonha dessa época
tenebrosa da minha vida. Atualmente todos os livros do mundo estão no meu index
pessoal; o único permitido é a Bíblia Sagrada de nosso Deus. Leio diariamente a
Bíblia, e posso garantir a vocês que esse livro preenche todos os anseios dos
seres humanos e contém todas as respostas para suas mais profundas indagações.
O resto da literatura é lixo, e só existe para tirar o foco das coisas
sagradas. Citando o próprio Cioran, autor que Faustino tanto idolatrava, “O
mito bíblico do pecado como conhecimento é o mais profundo mito inventado pela
humanidade”. Esse romeno infeliz sabia muito bem que estava pecando. Que Deus
tenha misericórdia de sua alma. Meus irmãos, que nossa vida seja dedicada única
e exclusivamente a Jesus Cristo. Se não seguirmos seus preceitos como a
humildade e o amor ao próximo, sabemos bem o que nos espera: Um inferno quente
que queimará nossa carne por toda a eternidade, cheio de diabretes malignos que
nos espetarão com tridentes afiadíssimos e nos infligiram as mais penosas
torturas. Contudo, se seguirmos os mandamentos de Deus iremos para o céu, um
lugar onde... bem, um lugar... como posso dizer... feliz e calmo, onde anjos
tocam harpa e... cantam coros divinais, resumindo, onde tudo é do bom e do
melhor. Para terminar, deixo essas palavras: Escolhei hoje a quem sirvais.
Porém, eu e minha casa serviremos ao Senhor”.
Após a cerimônia religiosa o caixão com meu corpo foi
levado ao cemitério do Caju. Enquanto vagava pelo cemitério (sim, os mortos
assistem seu próprio funeral), vi grandes mausoléus, como o do Visconde do Rio
Branco. Eu queria também ser enterrado num mausoléu imenso, de preferência em
um nos moldes do Taj Mahal; porém, uma espécie de gaveta estava à espera do meu
caixão. Nem no chão pude ser enterrado, eu era indigno de retornar ao pó da Terra. Também queria lotar o cemitério no meu enterro; na verdade, estavam ali presentes apenas dez pessoas. O artista não deve se preocupar com a fútil fama, mas
sim com sua arte. Contudo, como isso é difícil! Quem não quer ser lido,
comentado e homenageado? Queria que o mundo inteiro chorasse a minha morte,
porém morri sem obter a fama visada.
E foi assim que o Faustino que respirava, andava e
comia deixou o mundo. Um outro Faustino, composto da soma de minha obra e da
lembrança de minha vida ainda persistiria na Terra.
FIM DA PARTE 1