sexta-feira, 5 de agosto de 2011

VERO



         Meu nome é Vero e essa é a minha história. A história de um homem que perdeu tudo por ser correto demais. Recebi de meus pais uma educação religiosa e desde pequeno buscava estar sempre ao lado da virtude. Além da bíblia, gostava muito dos livros de ética. Aprendi muito com o povo grego, que tanto valorizou esse tema. Considero-me uma jóia rara, pois as pessoas ao meu redor não dão o mínimo valor à ética. Tudo indica que o império grego acabou e a ética sucumbiu junto.
         Enfim, eu era o espelho do que é bom e correto, não vendo concorrentes em nenhum dos meus próximos. Porém, após ler e refletir bastante, descobri algo que muito me incomodou. Todos sabemos que o certo é nunca faltar com a verdade, porém, percebi que o homem é um ser falso por natureza e eu naquele momento era falso também. Isso porque não nos comunicamos por pensamento, expondo diretamente o que de fato a mente pensou. Na verdade fomos criados com uma espécie de trava que nos faz selecionar quais pensamentos devemos expor por meio da fala. Para mim ficou claro que eu deveria destravar o mecanismo, por se tratar da mais pura falsidade. Eu queria ser um poço de virtude, não podia cometer o tão temido “pecado por pensamento”.
         Após essa descoberta, sentia dor em minha alma quando pensava em dizer “não” mas era obrigado a dizer “sim” seja para parecer politicamente correto ou agradar com vãs mentiras os demais. É o que sucedia quando minha esposa perguntava “Está tudo bem, amor?”. Respondia que sim, mas queria mesmo ser sincero e poder responder “Não, tá tudo uma merda! Você enche meu saco o dia todo! E para de me chamar de amor sempre. É brega.”. Ah, como eu gostaria de expor meu real pensamento! É pena que a pseudo-polidez falava mais alto. Eu precisava dar um basta nisso.
         Um dia aconteceu algo que mudaria minha vida: meu único filho, uma criança alegre e esperta, veio até a mim com um papel e perguntou: “Papai, o que você acha do meu desenho?”. Olhei com curiosidade o desenho. Após, olhei com pena para o garoto. O desenho era horrível. A beleza está na proporção e aquilo era o borrão mais desproporcional já visto pelos olhos humanos. Não sabia se era uma árvore ou um helicóptero. Talvez fosse uma tartaruga. Como se eu estivesse funcionando no automático, já me preparava para responder “Está lindo, meu filho.”, porquanto sempre respondi assim em situações semelhantes. Mas dessa vez não. Se eu respondesse que o desenho estava bonito, meu filho certamente ficaria feliz. Mas será que eu ficaria satisfeito faltando com a verdade? O “turning point” havia chegado. Após hesitar por alguns segundos, respondi confiante: “Quer saber, meu filho? Seu desenho é horroroso.”. O garoto arregalou os olhos e começou a fazer cara de choro, mas não dei a mínima. Tratava-se de uma virada em minha vida. Estava vencendo uma limitação do ser humano e sentia pela primeira vez o gosto da liberdade. A sensação experimentada era tão boa que me empolguei e disse: “Não adianta fazer cara de choro, a verdade é que seu desenho é péssimo. Não sei se é uma tartaruga, árvore ou helicóptero.”. O menino desabou num choro ensurdecedor e com aquela voz de criança em prantos, disse: “É você no desenho, papai.”. Com seus dedinhos miúdos ele apontou para três bolinhas no desenho explicando que eram meus olhos e boca. Fato curioso, eu não tinha nariz. Ele ainda falou: “Não está vendo?”. Incrível, estava claro para ele que era seu pai no desenho. Errado estava eu por não ser capaz de interpretar corretamente. Meu filho ficou arrasado com a história do desenho. Percebi que seguir o caminho correto seria penoso.
         Contarei agora outro acontecimento relativo a minha transformação, digo, evolução. Estava eu andando calmamente na rua em direção a minha casa quando cruzei com três negões capoeiristas que faziam uma apresentação dessa luta. Se os leitores pensam que capoeira não é luta e sim dança ou jogo, esperem até ouvir esse relato inteiro. Um deles tentou apresentar um número no qual deveria correr e em seguida pular um carro dando um salto mortal. O negão errou feio e caiu em cima do carro amassando o teto do veículo e disparando o alarme. Naquela hora tive um pensamento preconceituoso do qual até hoje me arrependo, porém como aqui a lei é “pensei, falei”, não escondi o que havia pensado e disse: “Tinha que ser preto”. O negão, que estava irado por ter errado seu número ficou possuído ao ouvir aquilo. Bufando, ele disse: “Mermão, ta de caô?”. Bastante incomodado, respondi: “Caô? E eu lá sou de mentir?”. Acreditando poder me salvar daquela enrascada, completei: “Veja bem, todos os brancos falam isso quando estão entre eles. Você vai ficar chateado comigo porque eu tive a decência e a coragem de falar o que todos os falsos falam pelas costas?”. Mal terminei essa frase e o negão me acertou um martelo cruzado na cara. Sentindo aquela dor pude entender o porquê de tal nome. O golpe me deixou meio tonto, e talvez por isso me imaginei numa luta de vale-tudo. Podia ouvir a torcida gritar e ver os holofotes me iluminando. Foi uma sensação maravilhosa. Até que tive a brilhante idéia de tentar aplicar um golpe de jiu-jitsu no negão. Não sei nada de jiu-jitsu, mas pensei “assisto as lutas, isso deve bastar”. Tentei levar um deles ao chão e já me imaginava vitorioso, aplicando um armlock e quebrando o braço dele ou uma guilhotina fazendo-o desmaiar (isso porque o jiu-jitsu é uma arte suave). Na minha visão fantasiosa tudo dava certo, porém na realidade pude aprender da pior maneira possível que o jiu-jitsu é ineficaz contra três negões capoeiristas. Enquanto me atracava com um, os outros dois de maldade chutavam as minhas bolas.
         Com um olho roxo, boca sangrando e membro fálico espatifado saí daquele inferno. Fiquei tão traumatizado com essa experiência que hoje em dia saio correndo quando cruzo com um negro, seja adulto ou criança. Eles me olham sem entender nada. Já bem perto de casa lembro que encontrei um mendigo cambaleante vestindo trapos e cheirando muito mal. Aquele ser grotesco ousou se aproximar, me tocou no ombro, coisa que muito me irritou e disse: “Senhor, peço humildemente dinheiro por caridade. Qualquer centavo serve. Tenho fome.”. Qualquer pessoa não-caridosa nessa situação responderia “Hoje ta brabo.”. Eu, espírito livre e honesto, disse: “Vai trabalhar, vagabundo!”. Ele por sua vez disse: “Vou é te furar, filho da puta!”. Eu então falei: “Vai nada. Todo desnutrido, nem agüenta o peso de uma faca. E, por favor, não usa mais essa colônia francesa à base de álcool e mijo, falou? Fede muito.”. Deixei ele me xingando e saí de lá orgulhoso de mim mesmo. A verdade dói, porém eu sabia que guardá-la dói ainda mais.
         Eu já estava vendo que o próximo alvo das minhas verdades seria minha esposa. Minha esposa tinha uma mania chata de perguntar se eu achava feia alguma parte de seu corpo. Isso me dava nos nervos. Se ela não vai gostar de saber que sim, por que pergunta? Até que um dia ela fez a maldita pergunta: “Amor, existe alguma parte do meu corpo que você não gosta?”. Sempre respondia para alegria dela “Gosto de tudo, você é toda linda”. Mas dessa vez não. Olhando nos seus olhos, respondi: “Não gosto dos seus seios murchos. Lembram a uva passa.”. Não disse aquilo para atacá-la, apenas fui sincero e expus essa que sempre foi minha verdadeira opinião. Ela ficou boquiaberta e perguntou: “Você acha mesmo isso?”. Respondi: “Claro. E eu lá sou de mentir?”. Parece que meu lema “pensei, falei” não agradou minha esposa. Ela pediu o divórcio no mesmo dia. Meu filho só faltou soltar fogos quando soube dessa notícia. Um mês depois ele já estava morando na casa da mãe.
         E aconteceu que meus amigos começaram a se afastar de mim. Minhas verdades chocavam. Eu não mais falava o que eles queriam ouvir. Seus vícios eu denunciava de pronto. Nem liguei para esse afastamento, eles eram um bando de falsos, como todos que me cercavam. Perdi tudo, menos o emprego e a família. Mas eu perderia também esses dois, um de cada vez. Fui demitido do meu escritório por falar ao meu chefe que ele era um babaca. Desempregado, passei a morar na casa dos meus pais. Eles aguentaram durante anos minhas sinceras opiniões negativas sobre a aparência e o jeito deles, sabor da comida, entre outros. Quando chegaram no limite me colocaram num asilo, onde estou no momento. Gosto desse asilo porque ele é branquinho, como o meu caráter. É um lugar puro como o céu, e sei que só estou aqui porque trilhei a senda da retidão. Não pensem que mudei ou me arrependi. Até hoje com meus cabelos brancos defendo a verdade. Até hoje apanho também. Nesse asilo mora um velho alto e forte que nunca toma sua medicação. As enfermeiras já sabem que eu só falo a verdade e, querendo saber se o velho tomou o remédio perguntam pra mim que sempre respondo “Ele não tomou o remédio” . O velho fica enfurecido com o alcaguete aqui e em duas ocasiões já me bateu. Mas eu lá sou de mentir?
        
        




FIM